O charme popular irresistível do Gospel brasileiro


Há uns tempos gravei um pequeno depoimento para a Conversa com o Bial, programa da Globo. Queriam ter a perspectiva de alguém não-brasileiro sobre o fenómeno do crescimento dos evangélicos especificamente na música. Hoje até artistas como o Caetano Veloso incluem canções de louvor nos seus concertos. A música feita por evangélicos no Brasil é tão marcante que até quem não tem fé pode acabar próximo do seu impacto popular. Lá, seguindo a referência norte-americana original, chamam-lhe também gospel.
O engraçado é que há uma história do gato e do rato quando se pensa na relação entre a música e a igreja. Abreviando muito, a música popular do mundo ocidental não existiria sem a igreja. O rock nasceu da tentativa de ter igreja sem Deus. Como assim? A meio do século XX nos Estados Unidos os músicos levaram para fora do santuário os êxtases oferecidos sobretudo pelo pentecostalismo evangélico—queriam manter o fervor prescindindo da santidade. Assim nasceu o rock’n’roll: vamos imitar o domingo de manhã ao sábado à noite. Culto sem o Criador (e também é por isso que qualquer concerto tenta oferecer hoje o espírito mais aproximado de uma comunidade unida numa crença).
Anos mais tarde, e novamente nos Estados Unidos (o palco preferido da vida moderna), houve cristãos que tentaram a desforra. Se num primeiro momento o Inferno pareceu ganhar com o rock, ao dar igreja sem Deus, depois a igreja quis o rock sem o Diabo—daí nasce o rock cristão. O rock cristão, admitamos, é ridículo. Mas o ridículo do rock cristão só existe pelo ridículo do rock em si mesmo, que é tentar ter o arrebatamento da adoração sem Deus. Todo o rock, com ou sem Deus, é uma expressão voluntária do ridículo.
Mas também é verdade que as histórias mais interessantes nascem da frustração do projecto original. Se o rock tentou ser igreja sem Deus, e se o rock cristão tentou ser rock sem o Diabo, o chamado Gospel brasileiro entra em cena com uma personalidade muito particular. Nada nem ninguém que chega ao Brasil fica na mesma: o Gospel brasileiro não é igual ao Gospel americano. E o Bial queria saber como é que eu olhava para isso, daqui do outro lado do mar. Falei-lhe destas minhas teorias (que não foram incluídas no curtíssimo depoimento que foi para o ar) mas tive também de admitir duas fases diferentes da minha relação com a música evangélica brasileira.
Quando era adolescente voltei-me contra a música evangélica brasileira que desde a infância me influenciava (e a todos evangélicos portugueses). Quis dar o meu grito do Ipiranga. Virei o evangélico que em Portugal se sentia na necessidade de não gostar de nada de que os evangélicos gostassem. Estava na Faculdade, tinha amigos intelectualmente sofisticados, sentia-me de esquerda. A música feita por evangélicos no Brasil era obviamente um subproduto tão ou mais desinteressante do que a sua inspiração norte-americana. Eu tinha o esclarecimento de o entender. A maior parte dos evangélicos em Portugal não. Por isso, até corrigia o português de alguns cânticos que de lá me chegavam. Eu era diferente.
Até que fui tendo a oportunidade de ser reconhecido no meio onde ambicionava chegar: a música portuguesa. A FlorCaveira, editora que inventei com amigos, caiu no goto da crítica nacional. Dei por mim como participante da história da cultura contemporânea do meu país. Ganhei um lugar. Senti-me à vontade com a elite. Mas esse período foi curto. Quem dorme com a imprensa, acaba com a cama feita por ela. Em menos de nada as modas passaram e eu, sem talento para me manter relevante, tornei-me um has been.
Uma vez mais, concluí que as coisas mais interessantes tendem a ser tentativas destinadas ao fracasso. O meu fracasso abriu-me horizontes para compreender o fracasso dos outros. É aí que sobressai a graça—a graça divina e a piada—aquilo que Deus nos oferece especialmente quando a nossa ambição se revelou provinciana. Não há desilusão maior do que atingir o nosso sonho.
Curiosamente, o Gospel brasileiro tenta o sonho americano. Imita o que chega dos Estados Unidos sem vergonha e, muitas vezes, sem noção—está fadado a tentar ser o que nunca conseguirá, porque o americano do sul nunca chegará a ser do norte. Nesses encontros e desencontros, o que ninguém esperava é que, no processo, se tornasse algo interessante. Sim, o Gospel brasileiro é hoje mais interessante do que o americano porque o esforço do primeiro criou um impacto maior do que o prestígio do segundo.
O Gospel brasileiro, ao imitar a música dos americanos do norte mais privilegiados, oferece aos americanos do sul uma expressão verdadeiramente popular. O Gospel brasileiro dificilmente será aceite pelo gosto da elite mais esclarecida, mas não pode ser negado como a manifestação mais sincera do povo que ela visa defender. A música evangélica brasileira é o que os revolucionários sempre sonharam como o resultado das massas emancipadas pelo poder de um texto. Marx não queria a revolução do proletariado, Marx queria o charme popular irresistível do Gospel brasileiro.
A música evangélica é no Brasil cantada por cerca de 30% da população (perto de 60 milhões de pessoas) e é ouvida por ainda mais. É uma força de mercado imparável. Até o empresário mais satânico consegue imaginar os lucros das igrejas. A pessoa no supermercado ouve as músicas do culto. Este tipo de capitalismo religioso nem o Max Weber imaginou. O Gospel brasileiro faz de pobres ricos, e mete estrelas a cantar a adoração dos anónimos. A música religiosa no Brasil mete o mundo ao contrário.
Logo, se ainda há rock’n’roll no mundo, certamente ele está no Gospel brasileiro. Antes detestava, agora adoro.