Será que estamos prontos para ter esta conversa


Há poucas palavras que causem tanta urticária coletiva como “impostos”. É pronunciá-la e assistir, em segundos, a uma crise existencial: “Pagamos demais!”, “O Estado rouba-nos!”, “E depois é só tachos!”. Há algo de maquiavélico neste desabafo nacional. E compreendo. Mas também há algo de profundamente ingénuo. Porque, sejamos francos, se há coisa que verdadeiramente nos une enquanto sociedade – para além do amor ao café e do ódio ao VAR – é o esquecimento conveniente de que, desde que nascemos, estamos rodeados de coisas pagas com… impostos.
O debate sobre a carga fiscal está, mais uma vez, na ordem do dia. Afinal, é mais fácil culpar o IRS pelo saldo bancário do que refletir sobre como tornarmos o Estado mais eficiente.
Sim, lamento estragar o mito do self-made citizen, mas o parto no hospital público, as vacinas no centro de saúde, os manuais gratuitos, a estrada que nos levou à escola e até a professora que nos ensinou que Camões não é uma app, tudo isso foi pago com os impostos de todos. E, repito, de todos. Não foi com magia. Tudo isto existe porque há impostos.
No entanto, a forma como hoje se fala de fiscalidade em Portugal parece retirada de um sketch: “Os impostos deviam baixar já! Urgentemente! Rápido!” – diz-se. E eu pergunto: e depois? Cortamos a despesa? Reformamos a máquina? Ou simplesmente começamos a ter de pagar as contas por inteiro? Porque a questão não pode ser apenas “como cortar impostos”, mas sim “como tornar o Estado mais eficiente para que os impostos que pagamos façam realmente sentido”. Isso sim, era um debate de verdadeiro serviço público.
Ao longo dos anos, fomos confundindo investimento com despesa e reforma com cortes. A saúde é um excelente – talvez o melhor – exemplo disto mesmo. Aumentámos, ano após ano, o orçamento da saúde e, no entanto, os tempos de espera para consultas e cirurgias continuam a encher páginas de jornais e salas de espera. Porquê? Porque durante demasiado tempo se achou que o problema era falta de dinheiro, e não de organização. Atirar verbas para um sistema ineficiente é como encher um balde furado: por mais que se tente nunca vamos conseguir completá-lo.
Mas o que falhou? Falhou a reforma. Falhou a coragem de olhar para dentro da administração pública e reconhecer que os serviços precisam de mais do que orçamentos. Precisam de objetivos, metas, métricas e, vá, um pouco de sentido de urgência. Sistemas de incentivo à produtividade? Ótima ideia. Recompensar equipas que gerem bem os seus recursos? Parece-me sensato. Medir desempenho? Inovador, quase revolucionário aos dias de hoje. A responsabilidade e a eficiência não são inimigas do Estado Social. São os seus melhores aliados. Porque um Estado que desperdiça, por muito justo que seja, deixa de ser ético.
Há, portanto, uma falha geracional grave na forma como estamos a educar as novas gerações para o papel dos impostos na sociedade. Falamos-lhes dos direitos, esquecemo-nos de lhes falar dos deveres. Mostramos-lhes os serviços, ocultamos lhes a fatura. Criamos consumidores do Estado, mas não cidadãos conscientes da sua manutenção. E assim, ano após ano, vamos perpetuando o ciclo: exigimos mais, pagamos a contragosto e protestamos com o coração, mas com pouca razão.
O mais curioso é que muitos jovens portugueses dizem que querem sair do país por causa da “carga fiscal”. Mas depois escolhem emigrar para países como a Suécia ou a Alemanha – onde a carga fiscal é, imaginem, ainda maior. Mas afinal, o que há lá que não há cá? Transportes públicos gratuitos e que chegam a horas, filas de espera que não duram três invernos, universidades públicas acessíveis e de qualidade, e serviços que funcionam com uma previsibilidade quase aborrecida. Ou seja, nesses países não se protesta por pagar impostos… porque se vê claramente para onde vão.
Por cá, a sensação é outra: pagamos muito, vemos pouco, e somos frequentemente tratados com indiferença pelos serviços que supostamente são nossos. Resultado? Cria-se uma cultura de descrédito no Estado, como se o problema estivesse no próprio conceito de contribuição, e não na sua gestão. A consequência mais grave disso? Uma geração que cresce a ver os impostos como um assalto e não como um investimento coletivo.
E é aqui que temos de fazer a viragem. Não é o valor dos impostos que está em causa – é a sua tradução em bens públicos de qualidade. Precisamos de uma Administração Pública que se veja como motor de desenvolvimento e não como uma engrenagem emperrada. Precisamos de dirigentes públicos com formação, visão e coragem para reformar. E precisamos, urgentemente, de um pacto nacional para a eficiência, que nos devolva a confiança de que vale a pena contribuir.
Porque, verdade seja dita, ninguém gosta de pagar por um serviço medíocre. Mas ninguém se importa de investir quando sente que está a construir algo que é seu. O imposto não é o vilão. O desperdício, esse sim, é o verdadeiro ladrão.