Amadeu Guerra e as “entidades terceiras”

Pela pena de Mónica Silvares, no ECO, soubemos que o PGR tem na gaveta a última edição do sempre elucidativo relatório de acompanhamento do PRR, coordenado pela procuradora-geral adjunta Ana Carla Almeida. Para recordar os mais distraídos, recordo que esta procuradora coordena o think tank, grupo de reflexão foi criado em agosto de 2020 por Lucília Gago, “orientado pelo propósito de análise antecipatória e multidisciplinar, das respostas jurídica, administrativa, económica e financeira, veiculadas através dos fundos europeus, (…) identificação das áreas de elevado risco de comportamentos fraudulentos e avaliação de contributos para a definição de estratégias de prevenção e combate a fraudes na utilização desses recursos”. Reavivo, igualmente, a memória de quem me lê quanto ao facto de Ana Carla Almeida ser uma especialista em fundos europeus, tendo sido escolhida pelas instâncias europeias para a Procuradoria Europeia e preterida pelo Governo de Costa.

Os leitores são a força e a vida do jornal

O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue – nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para [email protected].

Empreendedor de Famalicão cria plataforma de “boleias solidárias”

Um empreendedor de Vila Nova de Famalicão criou uma plataforma de “boleias solidárias”, que quer transformar a mobilidade em Portugal e que em alguns casos pode proporcionar uma poupança superior a 500 euros, foi anunciado esta quinta-feira.

Em causa está a iObi, que se propõe tirar milhares de carros da estrada com partilhas seguras e inteligentes.

“A IObi foi selecionada no programa Voucher para Produtos Verdes e Digitais, promovido pelo IAPMEI e cofinanciado pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), como reconhecimento do seu valor como solução nacional de mobilidade responsável”, refere o fundador da plataforma, em comunicado.

O financiamento do PRR foi de 30 mil euros.

A poupança mensal para os utilizadores pode variar entre 30 e 180 euros, “podendo mesmo ultrapassar os 500 euros, em alguns casos”.

Segundo os promotores, a iObi permite a partilha de boleias entre “pessoas de confiança”, como colegas, vizinhos ou membros da mesma organização, reduzindo custos, tráfego e emissões, “enquanto liga comunidades e facilita deslocações em zonas com fraca cobertura de transporte público”.

O projeto arranca com um piloto nos concelhos de Vila Nova de Famalicão, Braga e Guimarães, com ambição de expansão nacional já nos próximos meses.

Segundo João Oliveira, a iObi distingue-se por três elementos-chave, que representam uma “nova abordagem” à mobilidade.

Em primeiro lugar, os “círculos de confiança, que consistem em grupos privados e verificados, como colegas, vizinhos ou membros de instituições, em que a partilha de boleias é feita entre pessoas que já se conhecem, aumentando a segurança e a aceitação do serviço.

Em segundo, a tecnologia SNAP (Sem Necessidade de Agendamento Prévio), um sistema inteligente de emparelhamento em tempo real que permite encontrar boleias de forma imediata, sem necessidade de marcações.

Por fim, as “rotas parciais”, que possibilitam compatibilizar trajetos mesmo quando os pontos de origem e destino não coincidem totalmente.

“Estes mecanismos tornam a iObi uma alternativa viável e complementar ao transporte público, particularmente eficaz em zonas suburbanas e periurbanas, onde as opções existentes são limitadas ou pouco adaptadas às necessidades reais da população”, acrescenta João Oliveira.

Entre os benefícios da plataforma, e além da poupança, destaca a redução do número de carros em circulação, especialmente nas horas de ponta, e a diminuição significativa das emissões de CO2, com potencial para evitar mais de 10 mil toneladas até 2026.

Aponta ainda o fortalecimento das redes locais de apoio, promovendo uma maior ligação social entre cidadãos.

A iObi está a estabelecer parcerias com autarquias, empresas, universidades e associações, permitindo a criação de redes locais de mobilidade partilhada, integradas nas políticas de sustentabilidade e responsabilidade social.

“As autarquias têm aqui uma oportunidade concreta de melhorar a mobilidade local com impacto imediato. A iObi está pronta para ser parceira na construção de territórios mais acessíveis, ecológicos e solidários”, sustenta ainda João Oliveira.

Câmara de Pombal faz empréstimo de 9,8 milhões de euros para aumentar capacidade de investimento

A Câmara de Pombal aprovou esta quinta-feira a contratação de um empréstimo de cerca de 9,8 milhões de euros para reforçar a capacidade de investimento do município, disse o presidente da autarquia, Pedro Pimpão.

O nosso objetivo é reforçar a capacidade de investimento do município. Estamos, neste momento, no início da fase de execução física e financeira do Portugal 2030, com alguns projetos que conseguimos já algum financiamento comunitário, mas temos outros projetos que precisamos de demonstrar maturidade nessas intervenções, para podermos depois submeter a financiamento comunitário”, disse.

Nesse sentido, a Câmara tem de “aumentar a capacidade de investimento, para poder avançar com intervenções” que considera relevantes, explicou o autarca, referindo que a “boa gestão financeira” permite ter esta capacidade de recurso à banca.

Entre esses investimentos, o presidente daquele município do distrito de Leiria apontou a ampliação do Parque Industrial Manuel da Mota, com a criação do polo III, “numa área superior a 30 hectares”, cuja aquisição de terrenos ronda um milhão de euros.

“Continuamos o nosso objetivo de aumentar os espaços, os terrenos, para expandir e para criar novas empresas no nosso território, empresas que tenham emprego qualificado para fixar os jovens”, adiantou.

Outro exemplo é o Centro de Formação Automóvel da Escola Tecnológica, Artística e Profissional de Pombal, na ordem dos três milhões de euros.

“É um investimento também avultado, mas que vai tornar esta escola uma referência a nível nacional na área da formação automóvel e vai criar uma nova atratividade para Pombal”, considerou.

O autarca elencou ainda a requalificação da Casa Mota Pinto, um investimento na ordem de um milhão de euros “há muitos anos desejado em Pombal”.

“Temos o projeto terminado e, portanto, só estamos à espera deste financiamento para podermos avançar com a intervenção na reabilitação desta casa”, declarou o presidente da Câmara e recandidato ao cargo nas próximas eleições autárquicas.

Em maio de 2010, quando passavam 25 anos sobre a morte de Mota Pinto, o Município de Pombal, então liderado por Narciso Mota, lançou uma medalha evocativa do antigo chefe do Governo e apresentou o projeto do Centro de Estudos Carlos Alberto da Mota Pinto.

Três anos mais tarde, o então primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, procedeu ao lançamento da primeira pedra do centro, entretanto designado de Casa Mota Pinto.

Em 2023, o município anunciou que estava a rever o projeto de 2010 para avançar com o investimento na casa onde nasceu e viveu o antigo primeiro-ministro Mota Pinto (1936-1985).

Carlos Mota Pinto foi primeiro-ministro de 22 de novembro de 1978 a 07 de julho de 1979, segundo o sítio na Internet do PSD, partido do qual foi presidente entre março de 1984 e fevereiro de 1985.

No lote dos investimentos estão, igualmente, a ampliação do Parque de Lazer do Vale da Sobreira, os parques verdes do Carriço e Vila Cã/Carvalhos, o Centro Cívico de Associativismo e Etnográfico, e a aquisição de um edifício no Largo São Sebastião, na sede do concelho, para fins habitacionais, de acordo com informação enviada à agência Lusa pelo município.

40% dos estrangeiros que adquiriram nacionalidade portuguesa em 2023 são israelitas

Das 41.393 pessoas que receberam passaporte português em 2023, os mais representados foram os israelitas, com 16.377 cidadãos. De todos os “novos portugueses”, 40% são descendentes de judeus sefarditas. Esta informação consta nos últimos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), citados pelo Expresso esta quinta-feira.

Do número total de estrangeiros naturalizados naquele ano, 24.408 não vivem no país, ou seja, 60% dos cidadãos estrangeiros que adquiriram a nacionalidade portuguesa vivem fora de Portugal. A tendência que se tem verificado desde 2021, de que existem mais estrangeiros a viver no estrangeiro a adquirir nacionalidade do que aqueles que residem em Portugal, poderá vir a ser revertida caso as alterações do Governo à Lei da Nacionalidade se venham a materializar.

[A polícia é chamada a uma casa após uma queixa por ruído. Quando chegam, os agentes encontram uma festa de aniversário de arromba. Mas o aniversariante, José Valbom, desapareceu. “O Zé faz 25” é o primeiro podcast de ficção do Observador, co-produzido pela Coyote Vadio e com as vozes de Tiago Teotónio Pereira, Sara Matos, Madalena Almeida, Cristovão Campos, Vicente Wallenstein, Beatriz Godinho, José Raposo e Carla Maciel. Pode ouvir o 7.º episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui, o quarto aqui, o quinto aqui e o sexto aqui]

o zé faz 25 — imagem para link nos artigos

A proposta, que será debatida esta sexta-feira no Parlamento, pretende uma revogação da naturalização dos descendentes de sefarditas — medida que foi aprovada unanimemente em 2013, durante o mandato de Pedro Passos Coelho enquanto primeiro-ministro. Depois dos cidadãos israelitas, o segundo lugar na lista é ocupado por brasileiros, que representam 23,5% de todos os casos de 2023, seguido, com uma grande diferença, por cabo-verdianos (4,3%) e ucranianos (3,5%). Um total de 2795 cidadãos da Nepal (1156), Índia (776), Bangladesh (513) e Paquistão (350) obtiveram nacionalidade portuguesa.

Os dados divulgados pelo INE revelam também que apenas um quarto de todas as nacionalidades adquiridas foi concedida a estrangeiros que residiam em Portugal há pelo menos seis anos — o número mais baixo dos últimos 15 anos. Destes, 30% são de países de língua portuguesa, como Brasil e Cabo Verde, com uma grande representação de ucranianos e nepaleses no número total de casos. Recorde-se que a nova proposta do Governo prevê o duplicar do tempo mínimo de residência para se adquirir a nacionalidade portuguesa, passando de cinco para dez anos.

Pinto Luz e Pedro Alves apupados pelos militantes do PSD de Setúbal: apoio a Dores Meira continua a ser polémico

Miguel Pinto Luz, ministro das Infraestruturas, e o coordenador autárquico do PSD, Pedro Alves, apareceram de surpresa na reunião que a comissão política de secção tinha marcado para esta quinta-feira à noite. E não foi uma boa surpresa. O apoio à candidatura de Maria das Dores Meira, antiga autarca comunista, continua a ser polémico e esta noite os militantes de Setúbal fizeram sentir o desagrado a dirigentes nacionais do partido.

O plenário da concelhia de Setúbal tinha sido agendado para que o presidente da distrital, Paulo Ribeiro, falasse aos militantes sobre a decisão de o PSD, pela primeira vez, não concorrer em Setúbal com uma candidatura própria, ao arrepio da vontade dos militantes locais. Paulo Ribeiro, que é também secretário de Estado da Administração Interna, não foi sozinho e, segundo relatos feitos ao Expresso por fontes presentes na reunião, Pinto Luz e Pedro Alves não foram bem recebidos.

Houve apupos durante as intervenções de ambos, para tentar convencer os militantes setubalenses de que a escolha da antiga autarca da CDU é a melhor solução. Ouviram-se então, entre alguns aplausos, apupos e gritos de “é uma vergonha” logo no final da intervenção de Pedro Alves. Miguel Pinto Luz terá sido ainda mais intensamente apupado quando terminou de falar. Mas não ficou por aqui.

“Isto foi um filme”, diziam ao Expresso no final da reunião, “ele não devia ter vindo sem avisar, ninguém gostou”.

As mesmas fontes adiantam que Pinto Luz interrompeu depois a intervenção do antigo candidato à câmara e antigo ministro social-democrata Fernando Negrão. Miguel Pinto Luz tinha feito questão de referir que, pela primeira vez, um coordenador autárquico e um vice-presidente do PSD marcavam presença numa reunião de militantes do PSD de Setúbal.

Quando Negrão tomou a palavra, reconheceu isso, mas sublinhando que a presença de ambos não eram para resolver um problema, mas sim para “impor uma solução” que os militantes rejeitam. Terá sido nesse momento que Miguel Pinto Luz interrompeu o atual vereador social-democrata e houve um momento de ânimos exaltados. Um das fontes presentes diz que o ministro estava fora de si, “desvairado” mesmo. E terá abandonado a sala no meio de gritos, no que um dos presentes classifica de “lamentável”.

Fernando Negrão tem sido um dos mais vocais militantes a lamentar em público a imposição da direção nacional, considerando que com esta escolha, o PSD desiste de todo um distrito.

A concelhia de Setúbal já tinha manifestado o seu descontentamento com a imposição da vontade da cúpula do Partido, tendo anunciado que retirou, simbolicamente, a confiança política ao líder da distrital de Setúbal, Paulo Ribeiro

Contra factos não há argumentos. Há silêncio

A Oficina da Liberdade, em parceria com o grupo LeYa, promove o lançamento de um livro sobre Javier Milei da autoria do professor Phillip Bagus, que estará nas bancas a partir do próximo dia 08 de Julho e que é prefaciado para a edição em Portugal pelo próprio Presidente da República Argentina.

É um livro que recomendo vivamente porque o fenómeno é mal compreendido em Portugal, em grande parte por desconhecimento do que aconteceu na Argentina no último quarto de século, mas também porque a generalidade dos politólogos, economistas e comentadores da actualidade em geral, parecem não possuir as ferramentas conceptuais para perceber o personagem. Colocar Milei no compartimento da alt-extrema-paleo-ultra direita revela uma preguiça mental a que, infelizmente, o pós-modernismo já nos habituou.

O pano de fundo é a Argentina, um dos poucos casos da História contemporânea de um país que foi desenvolvido, um dos mais ricos do mundo há pouco mais de um século, que caiu na indigência. Como Milei bem explicou, a causa dessa queda foi ter abraçado as políticas do Socialismo.

Só por esse motivo, por ter apontado correctamente o motivo do fracasso da Argentina, Milei começou atacado pela esquerda um pouco por todos os lados. Existe uma certa ironia nisso. Toda a gente sabe que o Socialismo fracassou, até a esquerda. De tal forma que muito poucos se afirmam socialistas em público e os políticos do quadrante evitam a palavra. Preferem substituí-la por eufemismos como “progressista”, ou “de esquerda” quando se referem à sua ideologia, ou chamar “justiça social”, “políticas igualitárias” ou “defesa das minorias” às políticas socialistas que continuam a implementar. Com a excepção de Portugal e Espanha onde continuam a controlar grande parte do aparelho estatal, a palavra “Socialista” desapareceu das siglas dos partidos do ramo. Mas quando Milei diz algo óbvio, que o Socialismo destruiu a sociedade e a economia argentina, é logo apelidado de fascista, como se isso não tivesse acontecido na URSS, na Coreia do Norte ou em Cuba. Ironicamente, o único país socialista que vai revelando algum êxito (em grande parte por ter abandonado o Socialismo versão maoísta) é a China. País que raramente a esquerda progressista utiliza como exemplo a seguir.

Mas o Socialismo não morreu, simplesmente mudou de pele como as serpentes. Na feliz expressão de Hayek, o Socialismo é um erro intelectual pelo que, na medida em que esse erro continue a ser cometido, o Socialismo continuará a prosperar. Especialmente quando esse erro passa despercebido. Um dos grandes triunfos da Economia enquanto ciência, foi desmascarar a pretensão de que o Socialismo era o caminho para uma sociedade mais próspera. Houve um tempo, que a esquerda actual prefere ignorar, em que os socialistas acreditavam que as economias socialistas, com o seu planeamento central e propriedade pública dos meios de produção iam ser mais prósperas que as outras. A famosa frase de Nikita Kruschev ao Ocidente – “vamos enterrar-vos” – fazia referência a essa crença que, num futuro próximo (duas décadas), a URSS iria ultrapassar os Estados Unidos em riqueza material. Os socialistas actuais são mais cautos, prometem uma riqueza materialista sim, mas não material. A riqueza está na construção de uma sociedade mais justa, mais solidária, mais inclusiva, um discurso que só apela a quem dá por garantido o acesso a bens e serviços em quantidade e qualidade. O mundo nunca conheceu antes a abundância actual, abundância essa que não foi conseguida através de políticas económicas socialistas, pelo contrário. É por isso que a guerra ao Socialismo de Milei é cultural. Economicamente o Socialismo não tem a mínima hipótese enquanto crença racional.

No entanto a ciência económica também está em crise. Esse é um tema que daria para uma tese e não cabe num artigo de jornal. Mas é suficiente com dizer que, na ânsia de abraçar os métodos das ciências exactas, a Economia sacrificou a Teoria à Prática sendo que, sem Teoria, a Prática dificilmente terá utilidade. Concretamente, para poder medir os fenómenos que tratam, os economistas reduzem a complexidade qualitativa dos conceitos a grandezas quantitativas que possam medir. Por exemplo, crescimento económico passa a ser produção nacional, e produção nacional aquilo que o PIB mede. Obviamente que não há nenhum economista que não saiba que isto é apenas aproximadamente correcto. Mas na hora de tentar prever o futuro (que é, no fundo, o motivo pelo qual os economistas se focam em imitar a metodologia das ciências exactas – prever com rigor) nenhum economista tenta prever o crescimento económico, mas sim o valor do PIB que depois é utilizado como sinónimo de crescimento económico. Entenda-se que, do ponto de vista económico, dificilmente se vai encontrar um indicador que quantifique melhor essa realidade para o consenso da profissão, mas isto leva a situações caricatas, como a de políticos (que já comandam directa ou indirectamente quase metade das economias ocidentais apesar de todos sabermos que a economia centralmente planificada fracassou) tentarem manipular o valor do PIB para as que as regiões que governam apresentem pequenas variações positivas neste indicador de ano para ano e assim presumir de êxito económico nas suas políticas.

Fruto desta forma de pensar, muitos economistas insuspeitos de socialismo apostaram que as reformas que Milei queria implementar na Argentina iriam provocar uma grande depressão no país porque eram “regressivas” – leia-se – iriam fazer contrair o PIB (que, acreditavam, entraria numa espiral deflacionária devido a algo que aprenderam de Keynes e que nunca fez muito sentido). O tal temor a “políticas de austeridade” que fez que muitas economias europeias tivessem perdido a oportunidade de reverter rapidamente a crise económica há década e meia, mesmo aquelas governadas à direita teoricamente insuspeitas de socialismo, porque a tal austeridade consistiu não em reduzir o gasto, mas em reduzir o ritmo do seu aumento. Aumento esse que, mesmo sendo menor que o originalmente projectado, foi financiado através do aumento da dívida pública, dos impostos e finalmente da inflação, que é o imposto sobre a insolvência do Estado e é geralmente pago pelos mais desfavorecidos.

Milei tinha, neste aspecto, a duvidosa vantagem de a inflação já ser elevada, da ordem dos 30% mensais, pelo que o primeiro e mais importante passo era acabar com esse imposto escondido e tão socialmente injusto. Acreditem ou não, muitos economistas reputados, não necessariamente ligados à esquerda, previram que a Argentina entraria na tal espiral deflacionária de crescimento económico, apesar de verem positivamente a redução da mesma. Como seria de esperar, a tal esquerda progressista celebrou com júbilo os primeiros dados de redução do PIB para afirmar alto e a bom som que as políticas económicas “ultradireitistas” de Milei estavam a fracassar. Foi este temor, o temor de ver o PIB reduzir, o que impediu uma reforma profunda na Europa depois da crise de 2008. Mas Milei, armado com um sólido conhecimento de Economia, sabia que essa contracção era inevitável. Quando o Estado desperdiça os recursos dos contribuintes (ou pede emprestado para desperdiçar esses mesmos recursos) o PIB reage positivamente mesmo quando aquilo que se está a produzir não crie riqueza, pelo contrário, seja um foco mais de destruição da mesma. Mas se o parasita que provoca esse aumento no PIB não for alimentado, esses recursos ficam disponíveis para que os indivíduos na economia sem planeamento centralizado (leia-se de livre iniciativa e livre mercado) produzam aqueles bens e serviços que têm valor e, o que é melhor, criem as condições para um crescimento aritmético ou mesmo exponencial futuro, coisa que o desvio de recursos constante do parasitismo estatal impede. É por isso que, a partir de meados de 2024 a economia argentina passou a registar, não crescimentos do PIB raquíticos da ordem dos 1,5%, mas crescimento do PIB real de 5,8%, indiciando que o crescimento económico real seja maior, já que a economia estatal ainda está a ser. Curiosamente, quando os dados positivos começaram a ser publicados, o PIB argentino deixou de ser utilizado como argumento que espelhava a política económica do Milei. O mesmo sucedeu com a redução do indicador de pobreza de 52% para 31%. De repente, todos aqueles que estavam preocupados com a pobreza na Argentina (e receitavam mais socialismo para a combater), deixaram de se alegrar com a redução real da mesma.

Outro dos argumentos “económicos” arremessados contra Milei, este a propósito dos bons resultados no combate à inflação, que desceu dos 30% mensais acima referidos para 1,5% no último indicador publicado no mês passado, foi o de que o motivo pelo qual os preços deixavam de subir com tanta fúria era a redução brutal do consumo por parte da população, algo que “obrigava” os produtores a baixar os preços para escoar essa mesma produção. Aqui, dois tipos de confusão económica foram misturados. Dois conceitos que os Keynesianos propagaram. Um, mais filosófico, é que consumo é sinónimo de riqueza, e dois, mais falacioso, que a inflação não é consequência da política monetária. Começando pelo último, a inflação não desapareceu porque os produtores se tenham visto obrigados a reduzir preços pela redução do consumo. A inflação desapareceu porque o governo deixou de alimentar o monstro das bolachas. A manutenção de superávites fiscais significou que, pela primeira vez em muito tempo, o governo Argentino começou a resgatar mais pesos da economia Argentina que aqueles que descarregava. Isto aumentou a solvência do peso, que deixou de ser um expediente para saquear a população e em que esta não confiava, para ser um crédito de um Estado solvente que pode servir como reserva de valor. Voltando ao primeiro conceito, consumo não é riqueza, consumo é destruição de riqueza, já que é impossível comer um bolo e manter esse bolo ao mesmo tempo. Mas é a utilização da riqueza para obter um fim que se pretende mais valioso. Por este motivo, as políticas que estimulam o consumo (ou, como se costuma dizer, a Procura) não criam riqueza. As necessidades humanas são infinitas, pelo que só aquelas que podem ser economicamente satisfeitas devem ser consumidas numa economia sustentável. Só esse consumo não destrói riqueza.

Mas, ainda por cima, é falso que o consumo se tenha reduzido na Argentina, pelo contrário, o consumo privado agregado aumentou, em particular o consumo de serviços como o turismo e de bens duradouros como carros ou electrodomésticos. O único consumo que diminuiu foi o chamado consumo maciço, quer dizer, o gasto em bens de consumo imediato, indicador ao qual a esquerda progressista se agarrou como a um prego a arder. No fundo, é mais um indício de que os argentinos estão paulatinamente a abandonar a economia de subsistência em que foram submergidos e a satisfazer outro tipo de fins mais refinados. A apreciação do peso, o crescimento dos salários reais e a descida das taxas de juro que resultaram das políticas económicas sãs de Milei estão a contribuir para que assim seja.

Os argentinos ainda têm um longo caminho a percorrer, com muitos altos e baixos, antes de voltarem a ser uma economia desenvolvida. E não existe nenhuma garantia de que tal venha a suceder se voltarem a escolher o Socialismo. Mas enquanto o silêncio dos detractores de Milei persistir, sabemos que os argentinos estão no bom caminho.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.

A decadência da esquerda explicada em espanhol

Durante este século, até 2025, os partidos da esquerda portuguesa valeram, em conjunto, entre 59% do voto (em 2005) e 41% (em 2011). Por que caminhos é que, este ano, desceram para 31,8%? Um desses caminhos chama-se, por exemplo, José Sócrates, se por esse nome designarmos o sistema de poder que, nos últimos 20 anos, nos deu o escândalo da corrupção e o choque da bancarrota. O outro caminho chama-se António Costa, a quem o país deve a mais brusca e inesperada revolução social desde a década de 1960, com a decisão de abolir qualquer controle efectivo da imigração em 2017.

É verdade que os eleitores portugueses não reagiram logo. Mas quando, em 2023, a polícia encontrou 75 mil euros nas estantes do chefe de gabinete de Costa, lembraram-se das acusações a José Sócrates, e quando, em 2025, até Pedro Nuno Santos deixou de poder continuar a ignorar o caos migratório, repararam na irresponsabilidade de António Costa. O resultado, nas eleições deste ano, foi o PS passar a terceiro partido e a esquerda à sua expressão mais singela em 50 anos.

Nada disto aconteceu por acaso. A esquerda nunca recuperou ideologicamente do descrédito do socialismo nos anos 1980. Compensou esse vazio mental desenvolvendo uma implacável técnica de poder, assente na ocupação do Estado, na dependência do eleitorado, e numa agressiva e torpe polarização política contra direitas que sempre tratou como “fascistas”. O que sucedeu foi que esta técnica de poder, que em certos anos entregou à esquerda a maioria dos governos ocidentais, era insustentável. Na Europa, gerou uma estagnação económica, mal contrabalançada por défices e dívidas.

No país ao lado, passa dobrado em espanhol o filme que já conhecemos de cá. O líder socialista Pedro Sánchez, como António Costa em 2015, esteve para sair de jogo. Acachapou-se no governo, com menos votos do que o PP desde 2023, à custa de uma geringonça monstruosa, amarrando a si tudo o que é esquerda e mais os nacionalismos periféricos, incluindo os inclinados à ilegalidade e ao terrorismo. No palco, Sánchez faz de Pasionaria woke contra a “direita”. Por detrás da cortina, como sabemos agora, os seus apaniguados saqueavam o Estado com a grosseria de delinquentes endurecidos.

Sánchez estava rodeado de gente que explorava os recursos públicos em benefício pessoal. Mas mesmo depois de todas as revelações, continua a ter na mão o PSOE, as restantes esquerdas e os pequenos nacionalismos. Por mais que se digam “incomodados”, não o abandonam, aterrorizados com a perspectiva de eleições. Depois de Sanchéz, sabem que será o dilúvio. Até lá, aproveitam para lhe arrancar mais “contrapartidas”.

Poderá argumentar-se que as direitas também tiveram os seus abusos de poder, como o PP em Espanha, ou os seus desvarios migratórios, como Angela Merkel na Alemanha. Mas à direita, foram expedientes. À esquerda, são ideologia. Daí que a esquerda não consiga emendar erros nem renegar delinquências. Identificou o “progressismo” com o culto de um Estado omnipotente e woke, encarregado de destruir todas as tradições e todos os laços sociais que não consistam em dependência do Estado. Por isso, para a esquerda, o Estado está sempre certo, mesmo quando a sua expansão serve a malfeitores para enriquecer pessoalmente; e a nação é sempre um “crime” patriarcal e racista a expiar e a abolir, mesmo que, num mundo em mudança, seja uma das últimas âncoras de coesão e segurança da sociedade.

As esquerdas, que no século XIX foram o anti-poder, não têm agora defesas perante o poder e aqueles que dele abusam. Já nem o instinto de sobrevivência funciona para as fazer fugir do barco. A esquerda espanhola há-de chegar onde a portuguesa já chegou.

Economia de guerra russa

Quem se der ao trabalho de estudar seriamente o impacto real dos orçamentos militares e das economias em tempo de guerra perceberá que a economia russa assenta, cada vez mais, em artifícios, manipulação estatística e propaganda. Os números oficiais do PIB são fabricados para manter a ilusão de estabilidade e progresso. Quando Moscovo admite publicamente a possibilidade de uma recessão, é porque a situação interna já ultrapassou o ponto de dissimulação propagandística. O próprio Ministro das Finanças, Anton Siluanov, chegou há pouco tempo a reconhecer a necessidade de aumentar impostos e a possibilidade de contração, mas foi rapidamente forçado a “emendar” as suas declarações. O mesmo Siluanov que chegou a sugerir que o aumento de impostos talvez não fosse suficiente, antes de afirmar que se tinha expressado mal, quando o Kremlin quase cuspiu o café ao ouvir alguém dizer a verdade, logo de seguida afirmou que “a Rússia não tem uma recessão, tem um arrefecimento planeado da economia”. Delicioso, até porque a alternativa que restava a Siluanov, caso não corrigisse a franqueza seria sem querer tropeçar e cair de alguma janela de um 12º piso de um prédio, mas a verdade é simples: o dinheiro está a acabar.

O Ministro das Finanças russo que, no painel da manhã do Sberbank durante o Fórum Económico Internacional de São Petersburgo, afirmou que o orçamento russo enfrenta turbulências significativas, em entrevista logo de seguida à TV oficial, afirmava que as sanções europeias afectam mais a UE do que a Rússia, cuja economia se mantém estável graças a reservas sólidas, dívida baixa e défice controlado. O problema que desmonta a narrativa é que Siluanov foi acompanhado na análise pelo presidente do Sberbank, German Gref, que descreveu a economia como uma “tempestade ideal” devido às altas taxas de juros e à baixa produtividade, acrescentando que a valorização do rublo agrava o déficit orçamental, provavelmente exigindo novos financiamentos de mercado até o final do ano. Falta saber quem dos “aliados” estará disponível para os financiar se for o caso! Confiscarem o património de Abramovich e outros oligarcas corruptos, é uma ideia útil que podem seguir, pelo menos do que lhes resta, ou vá lá, mantendo a ironia, falarem com a presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, Dilma Rousseff.

O sistema bancário russo encontra-se tecnicamente falido. O maior banco do país, o Sberbank, assumiu nesse fórum que não concedeu um único rublo em crédito a novos negócios em 2024. O crédito secou porque os bancos foram forçados a redirecionar os seus recursos para sustentar a indústria de guerra. As taxas de juro oficiais rondam os 20%, mas na prática os financiamentos empresariais operam entre os 24% e os 34%, valores economicamente incomportáveis. A construção civil, tradicional um barómetro do dinamismo económico em qualquer país civilizado, está em colapso: a produção de aço caiu 4% em apenas um ano, e o consumo interno de aço para construção recuou 24%. Fábricas, habitações e infraestruturas estão a estagnar ou a parar por completo, em muitos casos.

A inflação real ronda os 30 a 35%, muito acima dos dados oficiais manipulados. Ainda que o Kremlin negue, o caso dos bens alimentares é critico e a situação é ainda mais dramática. Para tentar conter o caos, o regime subsidia diretamente os salários no sector militar. São pagos bónus de recrutamento, remunerações inflacionadas e compensações avultadas por morte, o que diz bem do estado da arte a que a guerra conduziu. Este ciclo gera um consumo artificial que, em vez de aliviar a economia, apenas alimenta uma espiral inflacionária insustentável.

A escassez de mão de obra nalguns sectores é real, mas não representa crescimento económico até porque no sector civil existem milhares de empresas que fecharam portas. A vaga de despedimentos ainda não se reflete em pleno nas estatísticas oficiais do desemprego, mas é apenas uma questão de tempo. Entretanto, mais de 1,7 milhões de jovens russos — qualificados e maioritariamente contrários à guerra — fugiram do país. Estão a contribuir para o crescimento de outras economias, enquanto a Rússia perde o seu futuro humano e técnico. Já para não referir nos milhares de jovens que mensalmente são perdidos no moedor implacável de carne da frente de batalha.

Face a este colapso progressivo, o Kremlin responde com medidas de desespero: expropriações de empresas privadas para tentar encaixar liquidez imediata. Entre os casos recentes estão o maior exportador de cereais, o aeroporto de Domodedovo e uma importante empresa metalúrgica. Objetivo? Tentar angariar 13 mil milhões de dólares. É confisco puro, à boa e antiga moda soviética, disfarçado de nacionalização estratégica.

A guerra, que Putin deseja e o Kremlin vendeu como um catalisador para o crescimento do sector de defesa, está a revelar-se uma armadilha autoimposta. Quando o conflito terminar e, mais cedo ou mais tarde terá de terminar, centenas de milhares de trabalhadores militares e civis regressarão a um mercado de trabalho que já não existe. A indústria civil vai a caminho de ser dizimada, as exportações continuam bloqueadas por sanções, e o Estado estará falido. Muitos dos empréstimos concedidos às fábricas de armamento e à demais indústria da guerra nunca serão pagos. Essas empresas, dependentes de um único cliente, o próprio Estado, ficarão sem procura. Os aliados da Rússia poderão voltar a ser compradores, mas são cada vez menos os aliados e cada vez mais sucata o que tem para oferecer. A banca entrará em colapso com o incumprimento desses créditos. As poupanças evaporar-se-ão num sistema financeiro sem reservas nem confiança.

O petróleo, tradicional tábua de salvação do Kremlin, não tem servido de escudo. Nem mesmo o conflito entre Israel e o Irão fez subir os preços de forma sustentável, antes pelo contrário. A volatilidade continua, e as receitas energéticas, por si só, já não bastam para sustentar uma economia em coma induzido.

Alheios a isto o Kremlin continua a “bombear” os seus relatórios: no primeiro trimestre, a queda nas receitas de petróleo e gás foi de 10%, o déficit orçamental aumentou 183% em comparação ao ano passado, e cada quinto rublo (20,8 %) gasto do tesouro não foi apoiado por receita real. De acordo com as previsões do ministério, “as finanças continuam a escrever romances”; o preço do petróleo dos Urais, que era de US$ 70 em janeiro, não subirá acima de US$ 53 até o final do ano, mas, como já se referiu Moscovo que não quer aumentar impostos para não irritar as empresas, terá de investir ainda mais no Fundo Nacional de Bem-Estar Social e também reduzir os gastos do governo. Quer isso dizer que Putin vai atirar menos misseis contra hospitais, escolas e infraestrutura critica ucraniana? Não, os russos é que vão ficar mais pobres.

A maior ironia? A economia de guerra russa nem sequer está a ser eficaz. Não surgiram fábricas modernas, a produção de armamento está aquém do necessário, e faltam componentes, know-how e máquinas. A China, por mais “parceira estratégica” que se diga, não fornece tecnologia de ponta e, as alternativas disponíveis são obsoletas. A Rússia está a fabricar o passado com ferramentas do passado.

O fim está escrito. A dúvida já não é “se”, mas “quando”. E quando o “crash” chegar, poderá não ser o resultado de sanções ou derrotas no campo de batalha. Será um colapso interno, visível nos bolsos vazios, nas fábricas encerradas e nos supermercados de prateleiras vazias. A Rússia não será destruída pelo Ocidente — será destruída por ela própria. E, se e quando acontecer, ninguém virá em seu socorro. Nem deve ir, porque há regimes que só aprendem através da dor. E essa dor já começou!

Cortes nos impostos e nos apoios sociais. Congresso aprova “grande e belo projeto de lei” de Trump

O Congresso dos Estados Unidos aprovou esta quinta-feira o polémico pacote legislativo orçamental de Donald Trump, que vai agravar o défice dos EUA em 3,3 biliões de dólares na próxima década.

O diploma prevê mais cortes de impostos, aumenta as despesas com a defesa e o controlo da imigração e reduz programas de assistência como o Medicaid, um programa de assistência médica financiado pelo Governo norte-americano.

Já segue a Informação da Renascença no WhatsApp? É só clicar aqui

O projeto de lei, que inclui grandes reduções fiscais e cortes na despesa, já tinha passado no Senado, na passada terça-feira, embora por uma margem mínima de votos.

O Presidente Donald Trump tinha definido o prazo de 4 de Julho, o Dia da Independência nos Estados Unidos, para aprovação do pacote legislativo e deverá recebê-lo em breve para assinatura final.

O pacote legislativo motivou uma troca de acusações entre Donald Trump e Elon Musk, o antigo conselheiro do Presidente norte-americano.

Sobre uma morte a pés juntos

Há manhãs onde o mundo em que acordamos não faz sentido. Manhãs em que percebemos, de repente, que a vida não se cumpre no tempo certo. Como um jogador que corre isolado para a baliza e, já a festejar o golo, é abalroado por trás. Sem hipótese. Sem aviso.

Ontem de manhã, Portugal preparava-se para voltar ao tribunal. Para enfrentar mais um capítulo do julgamento da Operação Marquês. Um país a tentar fazer contas com o seu passado e com o seu cansaço. Mas a primeira página não foi essa. Foi a de um acidente. De um despiste em Espanha. De dois irmãos. Um deles, Diogo Jota. Tinha 28 anos. Três filhos. Acabara de casar. Voltava a Liverpool. E o país parou.

Alguém dirá que é só comoção. Que “vende”. Que há outras mortes todos os dias. Que em tantos lugares morrem dezenas, centenas, e não há lágrimas nem indignação. Mas a ideia de que o mundo se atrasa quando alguém morre, vale mais do que as hesitações. É um salva-vidas da dignidade humana, uma cura da cegueira feroz da máquina do mundo.

Choramos onde somos feridos. Diogo Jota e o irmão não eram apenas dois rapazes. Eram todos os filhos. Eram o filho que fecha a porta do carro e vai para a escola com a bola numa mão e a mochila a escorregar das costas. A imagem desse quotidiano em que cabem todos os sonhos do mundo. O marido, o pai, o irmão, o filho que viaja de noite enquanto temos que ir dormir, porque o dia, amanhã, começa cedo. Ou esse instante banal onde a vida ainda é promessa. Ou esse momento onde uma mãe e um pai dizem um para o outro: “A nossa missão está cumprida”.

É verdade, há lutos que são orações sem palavras. Há lutos que são uma forma de escuta. Como há uma forma de santidade que talvez só seja visível na capacidade de parar.

É comum dizer-se que se aprende a morrer. Que a morte é o grande momento da nossa vida. Que nos devemos preparar. Mas há mortes que não se dão a esse luxo.

Lembro-me do diário de Michael Paul Gallagher, o teólogo irlandês que, pouco antes de morrer, confessava um arrependimento. No meio da fadiga, da náusea e da má disposição causada pelo cancro, as lições que havia dado sobre os momentos terminais da vida pareciam-lhe absurdas.

A morte do Diogo e do irmão não se explica. Não se aceita. Não se racionaliza. Como o Cristianismo ensina: carrega-se. Com raiva. Com incredulidade. E, se tivermos sorte, partilha-se.

Não há lugar melhor, nem “lugar depois da curva da vida”. Dizê-lo ou prometê-lo é mascarar o absurdo, é revestir de ilusão o que não é, senão, ferida e sem sentido. Afinal de contas a Ressurreição e o Paraíso não são nada isso. Não são um golpe de magia, autoajuda ou saída limpa. Não são acaso. Não são destino. São algo que nos é sempre arrancado. Como Jurgen Klopp escreveu: “Deve haver um propósito maior, mas não o consigo ver”.

Ontem, sem o saber, voltámos a Troia. Fomos Príamo a caminhar pela noite, de joelhos na tenda de Aquiles, só a pedir: “Deixa-me levar o corpo do meu filho comigo”.

Ontem, porque há mortes que são de todos, algo em nós ficou naquele lugar, na berma da estrada.

1 8 9 10 11 12 642