Luísa Sobral: “Quando se tem só um filho, parece que não há tempo para nada. Hoje tenho quatro e tenho imenso tempo”

Blitz Posto Emissor

Podcast

Com o primeiro romance, “Nem Todas as Árvores Morrem de Pé”, nas lojas, Luísa Sobral veio ao Posto Emissor falar sobre a inspiração do seu livro, mas também sobre a sua relação com a fé e a forma como recentemente passou a ver a morte. O festival Sónar, a ‘festa’ dos Blasted Mechanism, música nova e os concertos dos próximos dias fazem também parte do podcast desta semana da BLITZ

Luísa Sobral é a convidada desta semana do Posto Emissor, podcast da BLITZ. A artista falou com Lia Pereira sobre “Nem Todas as Árvores Morrem de Pé”, o seu primeiro romance, editado este ano.

A inspiração do livro, que a autora encontrou numa história verídica passada em Vila Real, onde um casal de idosos alemães se suicidou em conjunto, foi um dos temas da conversa com a cantora e compositora.

A ligação de Luísa Sobral com a religião e a fé, a forma como encara a morte – e que mudou depois de começar a fazer voluntariado numa unidade de cuidados paliativos -, a recente viagem à China e o dia em que escreveu ‘Amar pelos Dois’, canção que, na voz do seu irmão Salvador Sobral, ganhou o Festival da Eurovisão em 2017, foram também abordados.

No episódio nº 233 do Posto Emissor, falamos ainda sobre o primeiro fim de semana do festival de Coachella, música nova, o festival Sónar e a festa de 30º aniversário dos Blasted Mechanism, que tiveram lugar no passado fim de semana, e os concertos da próxima semana completam o podcast desta semana.

Ouça aqui edições anteriores do Posto Emissor:

Presidente da República associa-se ao luto pela morte do magriço José Carlos

Marcelo Rebelo de Sousa destacou “memoráveis prestações” do antigo jogador do Sporting

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, apresentou os seus “mais sentidos pêsames” pelo falecimento do magriço José Carlos, antigo internacional português, aos 83 anos, que morreu no sábado.

“O Chefe de Estado apresenta os mais sentidos pêsames à sua família e amigos, e a todos os clubes cujas cores defendeu com enorme dedicação”, refere, numa nota na página da presidência.

José Carlos, que representou a seleção portuguesa em 36 ocasiões, fez a sua carreira na CUF, Sporting, durante 12 épocas, e Sporting de Braga.

O Presidente da República destacou ainda as “memoráveis prestações nos relvados nacionais e nos clubes por onde passou”.

Terminada a carreira de futebolista, José Carlos foi treinador do Recreio de Águeda, Boavista, Famalicão, Varzim, Desportivo de Chaves, Gil Vicente e Penafiel.

Por Lusa

António Salvador eufórico na vitória sobre o Benfica em voleibol feminino

Presidente do Sp. Braga assistiu ao triunfo sobre as águias no jogo 2 da final do campeonato nacional

A equipa de voleibol feminino do Sp. Braga derrotou o Benfica (3-2) no jogo 2 da final do campeonato nacional, tendo agora uma vantagem de 2-0 numa decisão à melhor de 5, o que significa que o título pode ser conquistado na próxima quinta-feira, na Luz. 

O jogo teve casa cheia na AMCO Arena, pavilhão do Sp. Braga, e nas bancadas estava António Salvador. O presidente do emblema arsenalista celebrou de forma visivelmente eufórica a vitória da equipa de voleibol feminino, que está a um passo de conquistar um inédito título na história do emblema bracarense.

O responsável máximo do Sp. Braga acompanhou o desafio ao lado de Ricardo Vasconcelos, diretor-geral das modalidades do clube, e também André Viana, responsável do gabinete da presidência, estratégia e media.

Por Record

A crónica do Moreirense-Nacional, 1-1: cimeira produtiva selou permanência

Empate deixou cónegos e insulares com os objetivos da época praticamente resolvidos

Foram comedidos os festejos das duas equipas no final da partida, cientes de que só a derrota do AVSSAD no Estádio da Luz selava praticamente as contas da permanência. O objetivo seria confirmado apenas ao início da noite, após o triunfo do Benfica, vincando a ideia de que o empate entre Moreirense e Nacional foi o melhor resultado possível porque serviu para encararem com tranquilidade o que resta do campeonato. Aliás, só uma conjugação muito improvável de resultados até final evitará este cenário.

Por José Santos

Pedro Proença dá os parabéns a Diogo Jota: «Um dos embaixadores de excelência»

Presidente da FPF recorda importância do avançado português na conquista do Liverpool

O presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), Pedro Proença, deu os parabéns a Diogo Jota, que ontem entrou aos 68 minutos.

“Felicito Jota pela conquista. Obrigado por ser um dos embaixadores de excelência do talento português, o qual também coloca ao serviço da Seleção Nacional”, lê-se na nota da FPF.

Relacionada

Por Record

Estado, o construtor? Muita ilusão e pouca habitação

O problema da habitação está, muito justificadamente, no centro do debate político. Sobre o tema há dois consensos: o primeiro é que faltam casas no mercado, o que tem feito inflacionar os preços; o segundo é que o Estado deverá ter um papel relevante na resolução do problema como promotor de construção.

O primeiro é um facto inquestionável, independentemente das diferentes opiniões que possa haver sobre as causas da escassez de oferta. O segundo é um desejo que está muito longe de se concretizar.

Tal como a Saúde ou a Educação, a habitação é um dos bens sociais onde o Estado deve ter um papel fundamental, garantindo que toda a gente tem uma casa condigna. Isso pode ser feito com medidas de três grandes grupos: o Estado constrói habitação pública que cede a pessoas que, comprovadamente, não possuem rendimentos para conseguir uma habitação de outro modo; o Estado incentiva a construção ou recuperação de imóveis por privados; ou o Estado subsidia directamente as pessoas para que possam suportar os custos de comprar ou arrendar uma casa no mercado.

Ao longo das últimas décadas já houve de tudo um pouco. Nos anos 90, por exemplo, tivemos a bonificação de juros no crédito hipotecário para jovens – que muitos pais aproveitaram largamente, comprando casas em nome dos filhos. Depois disso, foram sendo lançados vários sistemas de incentivos ou subsidiação, ao ponto de nos perdermos já no seu labirinto.

No Portal da Habitação contamos, só para arrendamento, com nove modalidades diversas de apoio, algumas delas nascidas no âmbito do programa Mais Habitação do anterior governo do PS: Arrendar para Subarrendar, Arrendamento Acessível, Apoio Extraordinário à Renda, 1º Direito, Porta de Entrada, Arrendamento Apoiado, Porta 65 Jovem, Porta 65 + e Compensação aos Senhorios.

Mais recentemente, o governo da AD lançou, para jovens até aos 35 anos, a garantia pública até 15% do valor do imóvel no crédito à habitação e a dispensa de IMT e Imposto do Selo.

Portanto, do lado dos apoios ao arrendamento ou à aquisição não é por falta de medidas ou de anúncios governamentais que o problema não está, pelo menos, a ser travado.

Se estas são as medidas certas para terem o efeito pretendido já é uma coisa completamente diferente. Pelos resultados e adesão a alguns destes sistemas, diríamos que não. Nalguns casos, até podemos suspeitar que o custo burocrático para lançar e manter activos alguns apoios deve ser superior ao benefício dado a quem precisa de casa.

E depois temos o Estado construtor, onde muita gente deposita grande esperança para solucionar o problema. Teoricamente, não é descabido. Portugal é dos países da União Europeia onde o parque de casas do Estado tem um peso mais baixo.

Dos 2% de casas públicas em Portugal fazem parte as dezenas de milhar de habitações construídas sobretudo na década de 90, ao abrigo do Programa Especial de Realojamento, destinado a proporcionar uma casa a quem vivia em muitos bairros de barracas que foram crescendo, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

O PER, que fez 30 anos recentemente, consistiu num projecto lançado pelo então governo de Cavaco Silva em articulação com as autarquias. A sua execução levou à construção de 34 mil habitações públicas, permitindo a eliminação de diversos “bairros de barracas” em 28 concelhos, onde viviam 130 mil pessoas.

Uma intervenção massiva do Estado na habitação com resultados nem sequer é nova, como se vê. Porque é que não acontece de novo?

A resposta, dada por toda a evidência que vamos acumulando, é que o Estado é hoje incapaz de planear, de se organizar e de executar programas de médio e longo prazo que requerem esse tipo de requisitos.

Não por falta de recursos financeiros. Há — ou houve, este será um tempo verbal mais adequado — financiamento disponível através do Plano de Recuperação e Resiliência. E mesmo sem este, o Estado goza hoje de um equilíbrio financeiro onde seria possível encontrar verbas para a habitação.

Também não faltarão funcionários. Nos últimos 10 anos, o número de funcionários públicos aumentou mais de 100 mil, para o recorde absoluto de 750 mil.

Falta, sobretudo, organização e sentido de missão. São vários os exemplos da actual incapacidade de execução do Estado. Da falta de um inventário de património imobiliário do Estado, para que se conheçam que imóveis existem e em que condições estão, até casos simbólicos com que nos vamos cruzando de edifícios públicos devolutos há muitos anos sem qualquer utilização. O mais simbólico será a antiga sede do Ministério da Educação, no centro de Lisboa (Av. 5 de Outubro), que está fechado desde 2018. Em sete anos, o Estado não conseguiu ainda fazer dele uma residência para estudantes universitários.

Para também podemos olhar para a reabilitação do IP3 — a estrada nacional que liga Coimbra e Viseu e que todos os governo prometem fazer. Ou para a modernização da linha ferroviária da Beira Alta, que está encerrada desde 2022  e que, se reabrir este ano, terá um atraso superior a sete anos em relação ao calendário inicial.

Os exemplos de inoperância, de incapacidade de planear e executar e de impunidade face a todos os bloqueios e derrapagens são demasiados. Os governos deviam ser os primeiros a ficar preocupados com a impossibilidade de cumprir os mínimos dos seus projectos e promessas.

A crença de que o Estado que temos hoje vai desempenhar um papel fundamental na resolução do problema da escassez de habitação é, por isso, uma ideia de uma ingenuidade que chega a ser romântica.

António Costa tinha prometido uma habitação condigna para todos nos 50 anos do 25 de Abril. O 25 de Abril acaba de fazer 51 anos. Falta de vontade política? Não, pura falta de capacidade de execução de políticas.

A herança geopolítica do Papa Francisco

A análise da ação geopolítica de uma figura religiosa requer metodologias que transcendem a avaliação do poderio militar ou económico, requerendo um enfoque sobretudo em soft power e influência global. Ainda que um líder religioso não disponha de exércitos — como ironicamente questionara Stalin ao desdenhar “quantas divisões tem o Papa?” — a sua capacidade de moldar eventos políticos não pode ser subalternizada. A Santa Sé, embora careça de hard power, exerceu historicamente uma considerável influência diplomática e cultural, influenciando correntes de pensamento, mobilizando fiéis e intervindo em crises globais. Um método efetivo para determinar essa influência é examinar como as suas iniciativas espirituais se repercutiram no cenário internacional e que mudanças político-sociais decorreram da sua liderança pastoral. Em síntese, analisa-se a autoridade moral e a rede global de seguidores que conferem peso às ações e pronunciamentos da Santa Sé.

Um exemplo paradigmático dessa dinâmica foi o pontificado de João Paulo II (1978–2005). A atuação do Papa polaco demonstrou, de forma concreta, como um líder religioso pode influenciar os rumos geopolíticos da história. João Paulo II abraçou a missão de enfrentar a opressão comunista no Leste europeu, onde nascera. Em junho de 1979, numa peregrinação histórica à Polónia, repetiu as palavras que proferiu no início do seu pontificado na varanda da Basílica de S. Pedro e bradou perante a multidão “Não tenham medo! Abram as portas a Cristo”, insuflando motivação, coragem e união à resistência anti-soviética. O seu compromisso espiritual e político alimentou movimentos democráticos sindicais como o Solidarność (Solidariedade) de Lech Walesa, expondo a falta de legitimidade do regime comunista. Em pouco mais de uma década, o Muro de Berlim ruiu e a Guerra Fria conheceu o seu fim, praticamente sem derramamento de sangue. Analistas e protagonistas da época creditam substancial parcela desse desfecho à influência do Papa. O próprio Mikhail Gorbachev, último líder da URSS, reconheceu que “o colapso da Cortina de Ferro teria sido impossível sem João Paulo II”. De modo semelhante, Walesa – líder sindical e político polaco e Nobel da Paz – chegou a atribuir “50%” da queda do Muro de Berlim à atuação de João Paulo II. Tal avaliação não diminui a complexidade dos fatores envolvidos, mas atesta que a liderança moral e espiritual de Karol Wojtyla foi catalisadora na erosão da ideologia comunista na Europa do Leste e na consequente conclusão da Guerra Fria. Este caso emblemático indica a metodologia: comparar objetivos proclamados pelo líder religioso e eventos políticos subsequentes, buscando correlações fundamentadas em testemunhos, documentos e análises históricas. No caso de João Paulo II, há consenso de que a sua herança geopolítica inclui o papel decisivo que exerceu para enfraquecer o comunismo e promover a liberdade nos países sob órbita soviética.

Com esse precedente histórico-metodológico, pode-se aplicar uma abordagem análoga ao Papa Francisco, identificando e examinando os traços geopolíticos do seu pontificado. Se João Paulo II foi o “Papa da Guerra Fria” por excelência, avaliemos de que forma Francisco — um Papa do sul global, eleito em 2013 — imprimiu sua marca geopolítica no tabuleiro internacional.

O Papa Francisco emergiu rapidamente como líder religioso com uma ampla agenda geopolítica. Manifestou posicionamentos e iniciativas de impacto global em diversas frentes: foi voz influente em defesa de migrantes e refugiados, denunciando a “globalização da indiferença” diante das crises humanitárias; mediou discretamente a reaproximação diplomática entre EUA e Cuba em 2014; advogou por justiça social e económica criticando o capitalismo selvagem; e promoveu a consciencialização ambiental com a encíclica “Laudato Si”. Diversos observadores notam que Francisco se empenhou num leque diversificado de questões internacionais, do clima às desigualdades, ampliando o escopo de envolvimento político do papado.

Dentro desse conjunto multifacetado, destaca-se uma iniciativa peculiar de Francisco que combina uma dimensão eclesial interna e implicações geopolíticas: a convocação do Sínodo sobre a Sinodalidade (2021–2024). Para além de se focar em problemas específicos globais, o Papa voltou-se para a própria estrutura de participação e governo dentro da Igreja Católica, lançando um processo sinodal universal sem precedentes, cujo tema foi “a sinodalidade em si mesma”. O conceito de sinodalidade refere-se, em essência, à natureza comunitária e à dinâmica de participação de todo o Povo de Deus na vida e missão da Igreja. A Comissão Teológica Internacional da Santa Sé caracterizou a sinodalidade como “modus vivendi et operandi da Igreja povo de Deus”, que manifesta concretamente a condição de comunhão, o “caminhar juntos” reunindo-se em assembleia e contando com a participação ativa de todos os seus membros na missão evangelizadora. Implica uma Igreja menos hierárquica, onde leigos, clero e hierarquia caminham lado a lado. O próprio Papa Francisco sublinhou que a sinodalidade é dimensão “constitutiva” da Igreja – não um slogan ou moda passageira, mas parte integrante de sua essência, desde o Concílio Vaticano II. Esta ênfase indica que o Papa encarava a sinodalidade como um caminho de renovação e fortalecimento institucional, destinado a envolver a comunidade global de 1,3 mil milhões de católicos num discernimento comum.

O Sínodo sobre a Sinodalidade, convocado por Francisco, envolveu as dioceses do mundo inteiro em consultas e diálogo, culminando em assembleias sinodais em Roma. Nesse contexto, ganha relevo especial a relação deste sínodo com a situação eclesial na Alemanha. Nos últimos anos, a Igreja alemã empreendera um “Caminho Sinodal” próprio (Der Synodale Weg), que se tornou fonte de tensões com Roma e de especulações sobre um possível cisma. Compreender a herança geopolítica de Francisco requer analisar esta questão alemã, e como o Papa lidou com ela, especialmente através da convocação do sínodo global.

A Igreja na Alemanha vivera, a partir de 2018, um abalo sísmico decorrente da revelação de milhares de casos de abusos sexuais cometidos por clérigos nas décadas anteriores. Uma investigação da Conferência Episcopal Alemã expusera falhas graves na gestão desses abusos, mergulhando a Igreja numa crise de credibilidade. Em resposta, os bispos alemães, em conjunto com uma forte representação leiga do país, iniciaram em 2019 o “Caminho Sinodal Alemão” (CSA): um processo plurianual de debates e deliberações na tentativa de promover reformas e prevenir novos abusos. A própria origem desse sínodo nacional evidenciara o seu caráter de “reação a um momento de crise”: na apresentação dos documentos orientadores reconhecera-se que a “crise dos abusos” teve um impacto devastador na Igreja alemã, funcionando como um sinal dos tempos que impelia à renovação. O “Texto de Orientação” do CSA, adotado em fevereiro de 2022, estabeleceu as bases teológicas da iniciativa – um encontro plurianual de bispos e leigos para discutir quatro temas: poder, sacerdócio, mulheres na Igreja e sexualidade.

Durante cerca de três anos, bispos e leigos alemães discutiram propostas reformistas em quatro grandes áreas (poder e estrutura de governo na Igreja, moral sexual, forma de vida e disciplina do sacerdócio, e a participação feminina nos ministérios). Dentre as resoluções aprovadas constaram, por exemplo, pedidos para que Roma considere a ordenação de mulheres ao diaconato, a revisão do ensinamento do Catecismo sobre homossexualidade, a flexibilização do celibato sacerdotal e a criação de órgãos sinodais deliberativos permanentes no âmbito local.

Tais deliberações, embora sem efeito canônico imediato, foram vistas pela Santa Sé como risco de desvio doutrinário e de rutura da disciplina eclesial, especialmente a ideia de um Conselho Sinodal permanente na Alemanha que reuniria bispos e leigos com poder de decisão colegial – órgão que poderia enfraquecer a autoridade episcopal individual e a primazia romana. Em várias ocasiões, o Papa Francisco e altos cardeais expressaram preocupações. Já em 2019, Francisco escrevera uma longa Carta ao Povo de Deus na Alemanha, exortando-os a manter a comunhão com a Igreja universal e a não “transcender em desvios” ao buscar reformas. Posteriormente, em janeiro de 2023, o Papa aprovou uma missiva da Secretaria de Estado que proibia explicitamente a criação do aludido “Conselho Sinodal” alemão, por considerá-lo inconciliável com a estrutura hierárquico-sacramental da Igreja. Em novembro de 2023, o próprio Francisco reiterou partilhar a “preocupação com a Igreja da Alemanha”, reconhecendo que “grandes porções” dessa Igreja local ameaçavam “afastar-se cada vez mais do caminho comum da Igreja universal”.

É nesse contexto delicado que se pode inserir a convocação do Sínodo sobre a Sinodalidade pelo Papa Francisco que, ao anunciar um processo sinodal global em 2021, poderia também ter em vista absorver a experiência sinodal alemã num contexto mais amplo, diluindo tensões locais e evitando uma cisão. De facto, a Santa Sé deixara claro, já em 2021, que esperava que “as propostas do caminho [sinodal] na Alemanha pudessem ser incorporadas no caminho sinodal da Igreja universal.” Ou seja, Roma indicou explicitamente que as inquietações e sugestões vindas da Alemanha deveriam alimentar o discernimento de toda a Igreja, e não desembocar num concílio nacional autónomo. Essa integração serviria dois propósitos: enriquecer o diálogo sinodal mundial com as perspetivas alemãs e, simultaneamente, desestimular qualquer tendência de isolamento ou rutura por parte da Igreja na Alemanha. Francisco parece ter adotado uma estratégia de globalização e/ou universalização da reforma: em vez de um confronto frontal com os alemães, abriu espaço para que seus anseios fossem debatidos globalmente, sob a moderação de um Sínodo universal, que por sua natureza reforçaria a unidade católica. Essa abordagem conciliadora reflete um traço típico do Papa argentino: a preferência por “evitar choques frontais”, confiando que “o tempo é superior ao espaço”, como ele próprio mencionara em documentos programáticos, priorizando longos processos de diálogo a imposições imediatas.

Em termos geopolíticos e eclesiais, esta iniciativa de Francisco enfatizou o caráter católico (universal) da Igreja. Ao trazer a Igreja alemã “de volta ao coro” num processo participativo envolvendo todas as culturas, o Papa reforçou a mensagem de que não há igrejas nacionais autossuficientes acima da comunhão universal. Lembrou, na prática, que “a fé de cada Igreja particular está sempre localizada na fé de toda a Igreja”. De facto, diversas autoridades eclesiásticas sublinharam que o motivo fundamental para frear certas iniciativas unilaterais era a preocupação com a unidade da Igreja. Ao comentar o caso alemão, o cardeal Ouellet, então prefeito emérito do Dicastério para os Bispos, referiu: “o fundamento desta moratória [sobre o conselho sinodal alemão] é a preocupação pela unidade da Igreja”. Essa unidade, que é espiritual, mas também visível e institucional, tem implicações geopolíticas: a Igreja Católica atua como agente global precisamente porque mantém a sua coesão interna. Uma fragmentação – por exemplo, o surgimento de uma “Igreja nacional alemã” cismática – significaria a perda de parte da autoridade e influência unificada que o papado exerce no mundo. Vale lembrar as lições da história: o cisma protestante do século XVI, iniciado em solo alemão, não apenas dividiu a cristandade, mas alterou profundamente o equilíbrio político na Europa, gerando graves conflitos e realinhamentos de poder. Guardadas as devidas proporções, um cisma no século XXI, ainda que localizado, seria uma derrota geopolítica para a Igreja de Roma, minando sua reclamação de representar 1,3 mil milhões de católicos numa só voz em questões universais (moral, diplomacia humanitária, defesa da paz, etc.). Além disso, internamente, os fiéis sofreriam as consequências da divisão: líderes católicos alertam que divisões profundas no episcopado são “um desastre para os fiéis”, confundindo o povo de Deus e minando a sua confiança. Em suma, evitar o cisma não seria apenas questão de disciplina eclesial, mas também de preservação da relevância e força moral unificada da Igreja no cenário mundial.

Graças, em parte, à abordagem abrangente de Francisco, o Caminho Sinodal Alemão chegou ao fim em 2023 sem romper formalmente com Roma. As palavras de Dom Georg Bätzing, presidente da Conferência Episcopal Alemã – “Wir sind und bleiben katholisch” (“Somos e continuaremos a ser católicos”) – confirmam que, apesar das tensões, a intenção era buscar mudanças dentro da Igreja, não fora dela. A intervenção do Papa, ao abrir caminhos de diálogo e segurar as rédeas nos momentos críticos, foi crucial para que os anseios de renovação na Alemanha não descambassem em rutura.

Ao avaliar o legado do Papa Francisco sob o prisma geopolítico, conclui-se que o seu principal feito foi preservar a unidade da Igreja Católica diante de ameaças de cisma, especialmente no conturbado caso alemão. Num mundo fragmentado e polarizado, Francisco investiu no fortalecimento das estruturas sinodais e na audição global das dioceses como antídotos contra divisões internas. A sua herança geopolítica manifesta-se na habilidade em evitar que diferenças regionais se transformassem em fissuras irreparáveis no corpo eclesial. Tal legado é tanto mais notável por ter sido construído sem coerção, mas por meio de apelos à comunhão, à oração e ao diálogo paciente. Em última análise, Francisco mostrou que a geopolítica do papado, no século XXI, passa menos pela conquista de novos territórios de influência e mais pela manutenção da integridade universal da Igreja, uma integridade que lhe permite continuar a ser um ator global. Evitar um cisma – com todas as suas potenciais consequências negativas para milhões de fiéis e para a posição da Igreja no concerto das nações – representa, pois, uma vitória geopolítica silenciosa, porém de alcance histórico. Essa vitória consiste em reafirmar que, sob o Sucessor de Pedro, a Igreja Católica permanece una e sinodal, caminhando decididamente rumo ao futuro sem se fragmentar. Em suma, o pontificado de Francisco deixa como marca indelével a garantia de que, apesar de crises internas sem precedentes, prevaleceu a unidade – e com ela, a continuidade da missão universal da Igreja no mundo contemporâneo.

Obesidade: a doença silenciosa e desvalorizada que adoece o coração

É uma das questões mais graves e urgentes de saúde pública em Portugal. Com 28,7% dos adultos obesos e 67,6% com excesso de peso, os desafios são crescentes. Estes dados não são apenas um reflexo de hábitos alimentares ou de estilo de vida, mas também um sinal claro de que a obesidade precisa ser tratada com seriedade, pois é uma doença crónica e multifatorial, ou seja, dependente de muitos fatores.

A obesidade está diretamente associada a diversas doenças cardiovasculares, como o enfarte do miocárdio, o AVC e a diabetes tipo 2 — três das condições mais prevalentes e que têm um impacto devastador na saúde da população. O facto de a obesidade ser um fator chave no aumento da mortalidade cardiovascular é algo que não podemos ignorar. O excesso de gordura corporal provoca uma série de efeitos negativos no organismo, como resistência à insulina, inflamação crónica, aumento da pressão arterial e alterações no perfil lipídico [avaliação que permite medir os níveis de diferentes tipos de gordura no sangue, incluindo o colesterol total, o mau colesterol (LDL), o bom colesterol (HDL) e os triglicéridos]. Estes fatores tornam o corpo mais vulnerável e criam um ambiente ideal para o desenvolvimento de doenças do foro cardiovascular graves. Ignorar este contexto é dar margem a um ciclo de saúde fragilizada e de sofrimento para os doentes.

Embora fatores comportamentais e ambientais influenciem a prevalência da obesidade, não podemos desconsiderar o papel fundamental da genética. Acredito que uma abordagem eficaz deve levar em conta a predisposição genética de cada doente. Nem todas as pessoas têm a mesma facilidade ou dificuldade em controlar o peso, e isso está diretamente relacionado a genes que influenciam o metabolismo, o apetite e a resposta hormonal. Para muitas pessoas, a luta contra o peso é quase uma batalha biológica, mais difícil de vencer do que para outras, o que reforça a necessidade de um tratamento personalizado e com compreensão das suas condições individuais.

O tratamento da obesidade deve envolver várias especialidades e ser adaptado a cada caso. Acredito que a terapia comportamental é uma das chaves para o sucesso a longo prazo. Não basta apenas mudar os hábitos alimentares ou aumentar a atividade física; a pessoa precisa de apoio para lidar com questões emocionais e psicológicas que frequentemente acompanham o processo de emagrecimento.

Relativamente aos medicamentos que temos disponíveis, a tirzepatida representa uma verdadeira revolução no tratamento da obesidade, atuando em dois mecanismos, não só ajudando a reduzir o apetite e aumentando os níveis de saciedade, mas também regulando os níveis de glicose. O que mais impressiona é o impacto que esse medicamento pode ter no dia a dia do doente e a nível socioeconómico, com menos gastos em internamentos, procedimentos invasivos e reabilitação a longo prazo no tratamento das doenças associadas à obesidade. Os estudos mostram que a perda de peso foi superior a 20%, um resultado notável que pode rivalizar com o que a cirurgia bariátrica alcança, mas sem os riscos e a complexidade de uma cirurgia.

Existem outros medicamentos, como é o caso do semaglutido e do liraglutido, que têm sido muito usados e têm demonstrado ser uma ferramenta eficaz na perda de peso em muitos doentes. Não podemos subestimar o impacto que esses medicamentos têm na vida dos doentes e na forma como a obesidade pode ser tratada, mesmo em estádios mais avançados.

Porém, os medicamentos, embora inovadores e eficazes, não devem ser vistos como uma solução isolada. Nos casos mais graves de obesidade, a cirurgia bariátrica continua a ser uma opção válida, com resultados impressionantes na perda de peso e remissão de várias doenças. No entanto, creio que essa decisão deve ser tomada de forma cuidadosa e após avaliação de uma equipa com profissionais de várias especialidades, garantindo que o doente tenha suporte psicológico e acompanhamento contínuo.

Acredito também que, para que qualquer abordagem seja verdadeiramente eficaz, deve haver uma articulação coesa entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares. A integração entre médicos de família e hospitalares é crucial. Os médicos de família têm um papel central na identificação precoce da obesidade, no seguimento contínuo e no apoio ao doente em todas as etapas do tratamento. Já os médicos hospitalares — incluindo endocrinologistas, internistas, cardiologistas e cirurgiões — desempenham uma função indispensável na abordagem das complicações. Essa colaboração entre níveis de cuidados é fundamental para evitar fragmentação e garantir um tratamento contínuo e eficaz.

Em suma, a obesidade deve ser tratada com a seriedade que merece. Ela não é apenas uma questão de estética ou disciplina pessoal, mas uma doença crónica e sistémica que afeta múltiplos órgãos e compromete a qualidade e a esperança de vida. Na minha opinião, o sucesso no tratamento da obesidade depende de uma resposta coordenada e integrada, envolvendo todos os profissionais de saúde e as instituições, garantindo que cada doente receba um cuidado holístico, adaptado às suas necessidades.

Susana Silva Pinto é médica assistente de Medicina Geral e Familiar na USF S. Tomé – ULS Médio Ave, doutorada em Medicina e professora auxiliar convidada na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. É ainda membro do núcleo coordenador do Grupo de Estudos de Doenças Cardiovasculares da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar e editora da Revista Portuguesa de MGF. É uma das cronistas convidadas do Arterial, a secção do Observador totalmente dedicada às doenças cérebro-cardiovasculares.

Antes de sair, temos três perguntas relacionadas com o artigo que acabou de ler. É um mini-questionário muito rápido e totalmente anónimo.
Participe aqui.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Novartis

Com a colaboração de:

A respeito de denúncias anónimas em época eleitoral

Uma bula de Clemente VII lançou as bases da mais longa e obsessiva perseguição de consciências que a história humana conheceu. A denúncia anónima caluniosa e os testemunhos da mesma jaez, mesmo de condenados nos tribunais comuns e sem acesso directo aos alvos da denúncia, marcavam o fio condutor da investigação. Estes papéis sediosos integravam o processo como se fossem coisas sérias e constituíam mesmo a “notícia de crime”.

Também os “indícios suficientes” previstos nos Regimentos inquisitoriais eram viciados pela vontade dos inquisidores. Uma vez posto o foco sobre um infeliz, anos de agonia lhe estavam prometidos, com provas toscas no sentido da sua perseguição, nunca da sua defesa, e ainda que relativas a factos genéricos, a puras generalidades, saídas da pena e da boca de quantos tinham ódio e vontade de magoar e desqualificar os destinatários da sua fúria incontida.

Não era averiguada a idoneidade dos denunciantes, nem das testemunhas por eles indicadas, nem a sua baixa condição moral, nem o seu real acesso aos factos, nem a sua sede de vingança ou qualquer outro rancor presente no seu coração. Pelo contrário, era atiçada a coragem da asneira aos mais doentios biltres, que ganhavam de súbito um novo estatuto social, passando amiúde de condenados a castigadores.

A plebe mais rasca era usada contra pessoas de valor superior. Qualquer um, por mais inocente e honrado que fosse, corria o risco de ser alvo da Inquisição, incluindo fidalgos, nobres e religiosos, fossem cristãos-novos ou velhos. Todos tiveram a sua porção. Aos cidadãos mais indignos, dava-se-lhes a possibilidade de serem iguais a si próprios e, imputados os réus, a linguagem daqueles tornava-se ainda mais desabrida, pelo encantamento sinistro que a situação lhes proporcionava. Pessoas iradas contra os réus juravam ter visto e ouvido as maiores loucuras, mesmo que os não conhecessem pessoalmente ou com eles não houvessem privado em anos recentes. Outro tipo de denunciantes existia também. Muitos processos relativos a heresias judaizantes nasceram de denúncias de católicos bem reputados na sociedade ou mesmo de cristãos-novos radicalizados que por qualquer razão pretendiam vingar-se dos maiores entre a sua grei.

Nos casos em que a prova era absolutamente pífia e escassa, o processo era mantido em banho-maria pelo tempo necessário, até que aparecessem novos factos e testemunhas animadas com a desgraça que recaíra sobre o réu. Foi sempre táctica inquisitorial compensar o defeito com um grande número de documentos e pessoas contra aquele que se pretendia punir, mesmo que o não conhecessem de todo.

Por meses e anos escondia-se dos denunciados o nome dos denunciantes, das testemunhas e a matéria investigada, obrigando as vítimas a adivinharem as imputações e a dizerem tudo o que sabiam para tentarem evitar uma acusação formal que de outro modo, aliás de qualquer modo, seria certa. Os próprios advogados não tinham acesso aos autos completos, e sim à versão vaga.

Para o réu, nunca era possível uma justificação plena, a menos que os inquisidores se revoltassem contra os denunciantes e as testemunhas de que se serviam. Raramente acontecia. Eram quase sagrados. Quando o réu tinha a sorte de os conhecer, anos depois, e se rebelava contra eles, era punido tão duramente como se tivesse ofendido os oficiais e ministros do Santo Ofício.

Começava o processo inquisitorial. Nada havia de mais lento. Muitos réus morreram de velhice ou doença sem verem a sua causa decidida. Chamados à mesa, eram perguntados pela sua genealogia, a mais longínqua possível, como se dela tivessem culpa. Mencionavam que não tinham pecado. Mais ninguém os queria ouvir. Assinavam o termo e voltavam para o cárcere, acompanhados por guardas que não deixavam de os pressionar para confessarem culpas que não tinham e para delatarem terceiros, única forma de se livrarem do processo. Atemorizados por esta chantagem, muitos pediam nova audição perante a mesa. Porém, quando a mesma não se destinava a confessar, eram vergastados violentamente por tal atrevimento.

Na fase processual seguinte, já com a presença de um letrado com vestes indignas de advogado, eram lidos os depoimentos dos denunciantes e testemunhas. Os “crimes” eram sempre relativos a mesquinhezes e as circunstâncias de tempo em que pretensamente teriam ocorrido difíceis de precisar. Alegadamente havia muitos anos que o réu prevaricara de forma determinada. Dava-se-lhe a palavra. Tudo dependia deste momento, uma vez que, postas as contraditas, estavam lançados os dados. Se logo ali não confessasse, assinava o termo e voltava para a masmorra, onde muitos se suicidavam dando cabeçadas nas paredes.

Daí a outro tempo, por vezes anos, chamavam o réu à mesa para nomear testemunhas, contraditas e coartadas. Esta fase de nada valia. Invariavelmente as testemunhas que indicava eram consideradas “defeituosas e reprovadas em Direito”, em duas palavras, indignas de crédito e amiúde co-autoras da mesma infracção que lhe estava imputada, caso em que seriam processadas também.

Seguia-se a sala do tormento. Poupamos o leitor a esta descrição, tal como às condições em que o réu vivia no ergástulo. Em regra, confessava. Queria ir embora. Em troca da liberdade tão amada, fazia o que fosse preciso. Mas não saía dali sem vergonha, em corpo no auto e com uma vela na mão, sendo certo que, com tal confissão, os seus familiares ficavam para sempre ligados ao crime de judaísmo.

Para a posteridade ficou um trabalho inquisitorial assente em dezenas de milhares de processos escritos com uma precisão e um detalhe quase clínicos. Este foi o Santo Ofício por terras lusas, um tribunal penitencial de quantificação da culpa por questões de fé e de acicatamento do que de pior existe no coração humano. O contexto social era favorável. O crime da fé equivalia ao crime da corrupção na modernidade. À queima de cristãos-novos seguiam-se danças e jogos de canas para festejar o acontecimento. Multidões alegres e excitadas com o “escrutínio” da moral pública apoiavam o trabalho dos inquisidores e nunca os deixavam de nutrir com novas denúncias, invariavelmente integradas no processo.

Na cidade do Porto, como noutras, os homens de letras ou de bens, os bem-sucedidos em geral, foram sempre os alvos predilectos dos denunciantes e dos poderes estabelecidos que deles faziam uso apaixonado. Um exemplo disto sucedeu aquando de uma visitação inquisitorial em 1618, quando mais de uma centena de pessoas foi alvo de denúncias dos seus maiores inimigos e do caso resultou igual número de prisões, emigração em massa dos que escaparam aos presídios e, conforme consta de documentos oficiais da Câmara Municipal, a total destruição da economia de uma cidade onde outrora os judeus pagavam 38% dos impostos e ainda davam cartas no comércio internacional.

Existiram cinco Regimentos para pautar o trabalho da Inquisição: 1552, 1570, 1613, 1640 e 1774, o último dos quais tentou humanizar um pouco os anteriores, pois já então se sabia que dezenas de cristãos-velhos ricos e de rigor católico impecável haviam sido falsamente denunciados e punidos por serem judaizantes. O diploma de 1774 acabou com as denúncias anónimas para início de investigação e exigiu que se tomasse “a mais exacta e rigorosa informação sobre a vida, costumes, crédito, probidade e reputação dos denunciantes e testemunhas”. “Se as denúncias foram dadas por inimigos, que conjuraram com testemunhas contra os denunciados, para o fim de os oprimirem e vexarem, [o processo] não procederá pelas ditas denúncias, e serão logo presos os sobreditos denunciantes e testemunhas por eles referidos, para se proceder contra todos como falsários”.

Não se limitando a referir vagamente a expressão “indícios de crime”, antes a conectando com qualificativos como a “qualidade e veemência” dos mesmos, o Regimento de 1774 rezava que “Toda a pessoa que testemunhar falso em Mesa do Santo Ofício será açoitada publicamente e degradada irremediavelmente para as Galés por tempo de dez anos”.

E de facto, o país viria a assistir a algo até então inédito. Testemunhas que haviam jurado falso foram punidas e viram os seus depoimentos queimados solenemente. Estávamos no século XVII e já existiam certos cuidados que hoje parecem esquecidos.

Habitação: o país não é socialista nem neoliberal

 Já tive ocasião de escrever que estou bastante cético em relação à solução política que irá resultar destas eleições legislativas. Não serão as eleições aquilo que dará mais estabilidade política ao país. Mas ao menos aproveitemos para que sirvam para debater algumas das políticas mais importantes nos próximos anos e uma delas é, sem dúvida, a habitação.

Temos um ministro da coesão territorial, Castro Almeida, que acaba de afirmar que “o país não é socialista, o mercado é que deve fazer o preço das casas.” Esta afirmação tem vários problemas. Aparentemente Castro Almeida considera que a habitação é uma mercadoria como o pão e o leite, produzidos em mercados competitivos, em que o Estado e as autarquias não devem intervir. Acontece que não é. A habitação é uma necessidade humana fundamental para a qualidade de vida e tanto assim é que a Constituição lhe dedica especial atenção. Outro problema é que Castro Almeida considera implicitamente o mercado como uma abstração onde vigora apenas a lei da oferta e da procura. Ora qualquer mercado é estruturado por um conjunto de instituições e de leis que determinam o seu funcionamento. O que é a nova lei dos solos, que defende, e que facilita a transição de terrenos rústicos para urbanos, que não uma alteração nas regras de funcionamento do mercado? Ou seja, o mercado da habitação não é exógeno à política de habitação, mas também construído por este, daqui a contradição da afirmação do ministro.

A ideia, perigosa, que apenas o mercado é que deve fazer o preço das casas, deve ser levada às últimas consequências para se perceber o que significa. Já aqui abordei a crise da habitação que é uma bomba relógio prestes a explodir se não houver políticas públicas adequadas e sustentadas no tempo para a enfrentar. Embora o problema seja geral é mais grave em Portugal onde desde 2015 os preços das habitações subiram 68% quando em média na União Europeia subiram 37%. Deixar o mercado livre, significa aceitar um processo de gentrificação ainda mais acelerado das nossas cidades, onde já não apenas as classes mais desfavorecidas, mas a classe média baixa e a classe média estarão condenadas ou à emigração ou à suburbanização, pois não conseguem competir, nem na aquisição nem na renda, com diferentes tipos de procura: para airbnb, para construção de novos hotéis, para especulação imobiliária e para não residentes com maior capacidade aquisitiva que os portugueses. A opção política clara a fazer é se pretendemos subordinar a habitação exclusivamente à dinâmica do crescimento do turismo excluindo os residentes nacionais, ou se queremos compaginar o turismo com políticas públicas que promovam o direito à habitação, a coesão social e a inclusão de cidadãos nacionais de diferentes estratos sociais nas nossas principais cidades.

Tem havido algum debate sobre o tópico da habitação e ele consta dos programas dos partidos políticos que, em geral, reconhecem como problema essencial do país. Porém, esse debate não tem sido em geral sustentado por dados empíricos. Se o fosse facilmente se perceberia que Portugal é dos países que menos gasta (em percentagem do PIB) em políticas públicas de habitação. É dos países que tem menor peso de parque habitacional público ou de “rendas sociais”, e essa diferença é abissal para a maioria dos países europeus que não são propriamente socialistas (e.g. Áustria, Finlândia ou França). Raramente os partidos clarificam de onde vem o financiamento para as suas propostas no domínio da habitação. Várias vezes referem a necessidade de parcerias com os municípios, mas também não se percebe como se implementam essas parcerias. Vários partidos referem a necessidade de aproveitar parte do parque habitacional devoluto, mas ninguém parece sugerir a obrigatoriedade dos municípios revelarem qual a utilização que estão a dar ao principal instrumento que têm de combate a esta situação que seria adotarem uma taxa de IMI agravada a casas degradadas e devolutas. Mais transparência seria benéfica.

Apesar destas semelhanças há diferenças que importa assinalar. No essencial os partidos de direita (PSD/CDS e Iniciativa Liberal) consideram que a solução para o problema habitacional passa por medidas que afetam a oferta privada de construção de nova habitação, diminuindo a burocracia associada ao licenciamento, convertendo solos rústicos em urbanos, e aplicando os fundos europeus para a construção, em parceria com os municípios. Não consideram relevante restrições associadas ao alojamento local, tendo já o governo AD regredido nesta dimensão. No essencial advogam que a defesa irrestrita do direito de propriedade deve prevalecer sobre medidas que podem atenuar esse direito. Preveem parcerias público-privadas na construção de habitação e algumas medidas de impacto menor ao nível da fiscalidade (IMT, IMI, imposto selo) para incentivar a aquisição de habitações por parte dos jovens. Se algumas medidas de desburocratização merecem ser ponderadas, outras no campo fiscal parecem de eficácia duvidosa como a redução do IVA da construção para 6%, o que pode ter um impacto residual no preço das casas novas dado que o que determina a variação dos preços, e a repercussão do imposto, são as elasticidades da oferta e da procura. A ambição em relação ao papel do Estado no setor é muito pequena. A nova AD, parece satisfeita em criticar o PS por não ter conseguido executar o que prometeu no PRR na construção de novas habitações e mantem a promessa já feita anteriormente de para além das 26.000 casas previstas no PRR adicionar mais 33.000 que se candidataram ao PRR e não obtiveram financiamento. Ora este total de 59.000 novas casas, mesmo que seja conseguido, não é mais do que 1% do nosso parque habitacional ou seja quase nada.

De entre os partidos de esquerda é dada maior prioridade ao problema da habitação e isso nota-se quer no conjunto mais exaustivo de medidas que propõem, e que afetam a oferta e a procura, quer na terminologia usada. O PS define a habitação como “o maior desafio nacional”. Pretende criar instrumentos permanentes de financiamento de construção de habitação pública, embora não avance com detalhes sobre a forma destes instrumentos. Defende a reposição da regulação do alojamento local e que se incentive a sua passagem a arrendamento de alojamento permanente. Pretende rever a fórmula de cálculo de atualização das rendas de forma a considerar a evolução dos salários. Tem algumas propostas interessantes e outras que não fazem muito sentido como a afetação de parte dos dividendos da CGD à política de habitação. O Livre começa com a necessidade de “garantir o direito à habitação: com prioridade à pública e cooperativa”. E abre logo com dois objetivos, o de criar o serviço nacional de habitação, como pilar do Estado social, e o de alcançar 10% de habitação pública ou de arrendamento acessível em 2040, começando pelas tais 59.000 casas, mas continuando a aumentar a oferta pública neste período até às 600.000. No contexto europeu alcançar 10% não é de modo nenhum um valor excessivo.

Estamos em campanha eleitoral. É natural que os partidos mostrem as suas diferentes propostas. Mas, voltando ao tema do nosso anterior artigo o que é essencial – após as eleições que ditarão um parlamento fragmentado sem maioria absoluta de nenhum partido – é identificar as possíveis convergências. Penso que todos concordamos que é necessária alguma estabilidade regulatória e fiscal no mercado da habitação, que não é compaginável com mudanças em cada miniciclo político. Serão os principais partidos capazes de o fazer? Ou estamos condenados à ingovernabilidade e à incapacidade de verdadeiras reformas?

Na habitação, como noutras áreas, é importante perceber que o país não é “socialista” nem salazarista, no sentido de congelar as rendas, algo que ninguém defende, mas que a inércia ou a receita neoliberal para o problema da habitação é o caminho para o desastre e para a explosão social.

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