A modelo, o empresário e o casal que passou por Portugal. Os espiões russos que tinham o Brasil como base

Manuel Francisco Steinbruck Pereira e Adriana Carolina Costa Silva Pereira tinham cerca de 30 anos quando chegaram a Portugal, em 2018. Os nomes que constavam nos documentos brasileiros do casal não correspondiam aos verdadeiros: ele era, na realidade, Vladimir Aleksandrovich Danilov e ela Yekaterina Leonidovna Danilova, dois russos que, como muitos outros, utilizaram o Brasil como porta de entrada para o mundo da espionagem antes de serem identificado pelos serviços de investigação brasileiros.
A investigação do New York Times revelou como a Rússia usou o país sul-americano como plataforma de lançamento para os melhores espiões russos, que escondiam o seu passado e criavam toda uma nova vida com empresas de sucesso, amigos e casos amorosos. Além do casal que passou por Portugal, há ainda um espião que liderava um negócio bem-sucedido de impressão 3D, outro que liderava uma empresa de joelharia, uma modelo e um estudante universitário.
Se as operações para descobrir espiões não são novas, esta tinha uma condicionante: o objetivo destes russos não era, propriamente, espiar o Brasil, mas conseguir nacionalidade brasileira para depois ter uma base mais sólida para entrar noutros países, desde os Estados Unidos da América à Europa.
Um dos espiões que seguiu esse trajeto foi Artem Shmyrev. Tinha um negócio de impressões 3D e vivia num apartamento de luxo no Rio de Janeiro com a sua namorada brasileira e um gato. Além disso, e mais importante, tinha uma certidão de nascimento autêntica e um passaporte que o identificava como Gerhard Daniel Campos Wittich, de 34 anos.
A esforçar-se para estar integrado no Brasil antes de ser destacado pela Rússia para uma missão mais complexa, o espião começava a perder a paciência. “Ninguém se quer sentir um perdedor. É por isso que continuo a trabalhar”, escreveu, em 2021, numa mensagem para a sua verdadeira mulher, também uma espia russa.
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As operações das autoridades brasileiras começaram há três anos, quando começaram a investigar de forma silenciosa e metódica estes espiões, tendo encontrado nove, sendo que a identidade de seis já foi tornada pública. A investigação envolve vários países: EUA, Israel, Países Baixos, Uruguai, descreve o New York Times.
Os trabalhos foram intensificados em fevereiro de 2022, quando o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, decidiu invadir a Ucrânia — antes, espiões russos já tinham ajudado a abater um avião que sobrevoava a Ucrânia, interferiram nas eleições dos EUA e de França e envenenaram inimigos políticos do Kremlin.
A equipa de agentes da Polícia Federal Brasileira pertence à mesma unidade que investigou Jair Bolsonaro por suspeitas de planear um golpe de estado com o objetivo de impedir a tomada de posse de Lula da Silva como Presidente do Brasil.
Dois meses depois da invasão do exército de Putin, a Polícia Federal do Brasil recebeu uma mensagem da CIA (agência de investigação dos EUA) a informar que um espião, com nacionalidade brasileira, tinha começado a fazer um estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI), precisamente quando começaram a ser investigados crimes de guerra russos na Ucrânia.
Victor Muller Ferreira viajou para os Países Baixos, para arrancar o estágio no TPI depois de se ter formado numa universidade norte-americana. A sua entrada foi negada pelos agentes fronteiriços e Sergey Cherkasov (nome verdadeiro) estava de regresso ao Brasil.
A poucas horas de aterrar em São Paulo, a polícia entrou em alvoroço para tentar arranjar um motivo para deter Cherkasov no aeroporto, o que não aconteceu. Todavia, as autoridades mantiveram o controlo apertado enquanto o espião dormia num hotel na cidade brasileira até ser detido — não por espionagem, mas por uso fraudulento de documentos.
Cherkasov negou qualquer ligação à Rússia e, com uma postura que o New York Times descreve como arrogante, defendeu que tinha todos os documentos legais para provar a cidadania brasileira. O que prontamente confirmou ao mostrar o passaporte, o título de eleitor e um certificado de que tinha cumprido o serviço militar obrigatório.
O início do fim de Cherkasov e dos outros espiões russos no Brasil surgiu quando a polícia decidiu aprofundar os dados revelados pela certidão de nascimento. Se o normal, antigamente, era estes espiões assumirem a identidade de pessoas mortas, Victor Muller Ferreira usou uma certidão aparentemente verdadeira que demonstrava que tinha nascido no Rio de Janeiro, filho de uma mulher real que morreu quatro anos antes.
Em contacto com a família ainda viva, a polícia descobriu que essa mulher nunca tinha tido filhos e não identificaram ninguém com o nome do pai. A descoberta fez soar alarmes nas autoridades brasileiras, que não entendiam como tinham os russos obtido estas certidões e, mais relevante, não sabiam quantas mais pessoas poderiam existir nas mesmas circunstâncias.
A operação para encontrar estes “fantasmas” obrigou a polícia a procurar, muitas vezes em documentos que não estavam digitalizados, por padrões que se repetissem, com vazios grandes na vida destes cidadãos.
Essa situação verificou-se na vida de Gerhard Daniel Campos Wittich que, tendo nascido em 1986, parecia ter surgido do nada em 2015. O sotaque português era quase perfeito e o ligeiro sotaque era explicado como sendo fruto de uma infância na Áustria, justificação que a sua namorada e os vários colegas aceitaram sem questionar.
Grande parte do seu tempo era dedicado à empresa que construiu de raiz e na qual parecia estar realmente empenhado, descrevem os colegas. “Era viciado em trabalho”, justificou um antigo cliente citado pelo jornal norte-americano.
O sucesso da empresa era refletido na dimensão dos seus clientes como a rede televisiva Globo ou o exército brasileiro. Os seus colegas e trabalhadores apontam alguns comportamentos peculiares: nunca deixava o computador ligado à internet quando não estava a usá-lo, parecia viver acima das suas possibilidades e tinha pavor a fotografias.
Uma vez ficou em pânico depois de ter sido publicada uma fotografia sua num jornal local e um antigo cliente chegou a ironizar que ele devia ser “procurado pela polícia” para não querer ser fotografado.
Apesar do relativo sucesso, uma troca de mensagens com a mulher verdadeira revelava alguma tristeza com a sua missão de espião: “Sem conquistas no trabalho. Já há dois anos que não estou onde gostaria de estar”.
“Não é como foi prometido e isso é chato”, concordou a mulher. Os textos foram revelados pelo New York Times e fazem parte de uma série de documentos partilhados pelos serviços de investigação estrangeiros na operação que levou ao desmantelamento de uma rede de espiões em todo o mundo, sobretudo no Brasil.
Depois de Cherkasov, o estagiário que tentou entrar no TPI, foi detido Mikhail Mikushin, que estava na Noruega, e dois espiões russos na Eslovénia, onde viviam com identidades argentinas.
Prestes a ser detido, Gerhard Wittich, ou Shmyrev, viajou para fora do Brasil poucos dias antes de a sua identidade ter sido desvendada. Os polícias, desiludidos por verem tanto trabalho ser desperdiçado, depositaram todas as confianças no regresso do espião, que tinha marcada uma viagem de regresso. Mas o russo nunca mais pisou solo brasileiro, apesar do dinheiro encontrado num cofre indicar à polícia que seria sua intenção regressar.
Além dele, também o casal que passou por Portugal; um grupo que viveu no Uruguai — do qual fazia parte uma espia loira que se fazia passar por modelo; e um empresário da área da joalharia (que chegou a ser destacado como “especialista em pedras preciosas” num programa de televisão brasileiro) escaparam às autoridades.
Como forma de tentar minimizar os danos da fuga destes russos, os investigadores pensaram numa solução mais penosa para um espião do que ser preso: ser exposto a todo o mundo.
Assim, com apoio da Interpol, emitiram alertas com fotografias e impressões digitais destes espiões. Como a agência internacional de investigação criminal não se envolve em questões políticas como espionagem, os brasileiros disseram que os visados estavam a ser investigados por uso de documentos falsificados. Desta forma, os espiões vêm-se praticamente impossibilitados de retomarem os seus serviços.
Entre os detidos, Cherkasov é o único que continua preso, por ter sido condenado a 15 anos de prisão, numa pena que foi entretanto reduzida a cinco anos, por falsificação de documentos. A Rússia chegou a tentar o seu regresso, mas o Brasil não acedeu.
O New York Times descreve que o Brasil era o local ideal para os espiões russos porque os passaportes brasileiros são fáceis de obter, são bastante úteis por permitirem a entrada em muitos países e por ser possível a uma pessoa com traços europeus passar despercebida no país sul-americano.
Se em muitos países é necessária confirmação hospitalar antes de serem emitidas certidões de nascimento, o Brasil permite algumas exceções, no caso dos nascidos em áreas rurais. Além disso, o sistema é vulnerável à corrupção, descreve o jornal.