O marcelês


O marcelês. A possível entrada de juízes sugeridos pelo Chega no Tribunal Constitucional tem levado a um exercício intenso do marcelês, esse dialecto que, ao contrário doutros, como o barranquenho, não se desenvolveu na raia mas sim no eixo mais urbano do país que, com algumas variantes, leva de Lisboa a Cascais, com passagem por Belém. Esta semana o marcelês esteve particularmente activo no Expresso, que está para o marcelês como o linguista Matteo Bartoli estava para Tuone Udaina, o último falante da língua dálmata: Matteo Bartoli entrevistou Tuone Udaina, o que fez dele a última pessoa a falar com alguém que sabia falar dálmata, o que era ao mesmo tempo um achado único e a partilha duma imensa solidão, o que de alguma forma se aplica ao falante de marcelês, Marcelo, e ao seu intérprete, o Expresso. E escrevo intérprete num sentido quase demiurgo, porque o marcelês não se destina a ser transcrito mas sim insinuado, como bem se vê nas suas manifestações desta semana:
«Apesar de Montenegro ter uma visão formal, “depois é um pragmático”, ouve o Expresso. E, se isso acontecer, “não é um juiz, é o partido todo que entra”, teme-se em Belém, onde o Chega é visto como uma ameaça ao segredo e uma certa sacralização do Tribunal Constitucional.» (sublinhados meus)
«Aos olhos de Marcelo, sabe o Expresso, o longo jejum de poder e as frágeis minorias governativas deste ano e meio fizeram avultar no PSD uma certa “insensibilidade”, que levou o Governo a absorver parte das propostas do Chega, como preço a pagar pela governabilidade.» (sublinhados meus)
“Ouve o Expresso”? Mas quem ouve, ouve alguém. E a quem ouve o Expresso? Não se sabe quem ouviu, nem quem foi ouvido e contudo sabe-se o que foi ouvido por alguém não identificado a outro alguém igualmente incógnito. E afinal o que foi ouvido? “O PR receia que, apesar de achar que o chefe do Governo e líder do PSD é um institucionalista, acabará por dar pelo menos um lugar de juiz constitucional à escolha do Chega.” E será que não devia ser assim? O Chega, pelos resultados eleitorais obtidos nas últimas legislativas, alimenta a natural expectativa de ver reflectida essa realidade eleitoral nas substituições que vão ter lugar no Tribunal Constitucional. Outros partidos com menos votos que o Chega, como são os casos do PCP e do BE, viram chegar ao TC juízes indicados por si. Porque seria desta vez diferente? Segundo o marcelês, “‘não é um juiz, é o partido todo que entra’, teme-se em Belém, onde o Chega é visto como uma ameaça ao segredo e uma certa sacralização do Tribunal Constitucional”. O que quer isto dizer exactamente: “Não é um juiz, é o partido todo que entra”? Temos juízes próximos do CDS, do BE, do PCP, do PS, do PSD. Entraram estes partidos todos no TC atrelados aos juízes que lhes são próximos? Ora aqui confrontamo-nos com uma das principais características do marcelês: não é passível de ser respondido, questionado, confrontado porque o marcelês não visa o conteúdo mas sim a intenção. E no caso a intenção é óbvia: segundo o marcelês, Marcelo pretende que o PSD negoceie com o PS as políticas para o país e a exclusão do Chega. É caso para dizer: “Agora é tarde. Inês é morta.” Marcelo não só andou com os governos da geringonça ao colo como nunca travou as tácticas de insuflação do Chega e consequente enfraquecimento do PSD levadas a cabo pelo PS. O resultado dessas suas brilhantes tácticas ficou bem expresso no resultado das últimas legislativas.
Mas, não contente com o que fez no passado, Marcelo quer agora tornar-nos o futuro ainda mais clivado do que já está ao defender que a renovação do TC se resolva entre PS e PSD, excluindo o Chega. O tempo em que não se tinha de contar com o Chega acabou e acabou também por culpa de Marcelo.
Em política ter razão não chega. Há que ter em conta que há momentos em que decidir baseado na razão que se tem se pode tornar numa forma insuportável de arrogância. E foi isso que aconteceu a Luís Montenegro quando manteve a festa do PSD no Pontal enquanto o país se confrontava com grandes incêndios. O país já compreendera que ele, Montenegro, não tinha percebido as implicações de manter a empresa Spinumviva enquanto era primeiro-ministro e agora o mesmo país volta a fazer um esforço para compreender que Montenegro tenha mantido o Pontal apesar dos incêndios. Enfim, Montenegro espera sempre que o compreendam. Mas a cada compreensão fica uma pergunta: será que Montenegro não percebe? E sobretudo já chega de justificar estas incompreensões de Montenegro com a “tabela PS”, ou seja com o comportamento dos líderes socialistas, nomeadamente António Costa, nos incêndios de 2017 e outros momentos dramáticos. Foi precisamente para fazer Portugal vir à superfície do lodo pantanoso desses anos que os portugueses votaram como votaram nas últimas legislativas. Se era para vivermos em contraponto com aquilo que o PS fez, então tínhamos deixado o PS no governo, que sempre era uma vida pior para o país mas mediaticamente mais descansada. E obviamente de maior agrado das paredes de Belém.
Há um limite para a nossa compreensão? “Tribunal liberta bombeiro de Ourém suspeito de ter ateado quatro fogos. Apesar das suspeitas que recaem sobre o homem, foi colocado em liberdade, pese embora o “perigo real” de continuar a atividade criminosa. Alegadas “dívidas” impedem que lhe seja cobrada uma caução.”
Acredito que a decisão do tribunal de Ourém seja uma interpretação rigorosa da lei. Mas perante decisões como esta sinto o mesmo incómodo que perante Luís Montenegro no Pontal enquanto o país ardia: será que não percebem que há um limite para a nossa compreensão?