Imigrantes com câncer em Portugal: saúde como direito e não como privilégio
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Em meio ao crescimento de discursos nacionalistas e a recente aprovação de um pacote anti-imigração pela Assembleia da República, uma questão urgente e pouco falada precisa entrar em pauta: o que será dos imigrantes que estão em tratamento contra o câncer e outras doenças graves em Portugal?
A saúde não tem nacionalidade. Doença nenhuma escolhe passaporte. E, no entanto, milhares de pessoas que vivem em Portugal — muitas delas brasileiras — encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade: enfrentando doenças complexas como o câncer e, ao mesmo tempo, a ameaça de ter que deixar o país onde estão sendo tratadas.
Apesar de não haver dados oficiais sobre o número de estrangeiros em tratamento de doenças graves em Portugal, sabemos que eles existem — e não são poucos. A tendência de crescimento dos casos de câncer na população mundial indica que muitos imigrantes estão nessa estatística.
Segundo o Global Cancer Observatory (Gobocan), em 2022, foram diagnosticados cerca de 69.567 novos casos de câncer no país. Esse número, no entanto, não distingue entre cidadãos portugueses, estrangeiros residentes ou turistas em tratamento.
No dia a dia do meu trabalho como ativista em saúde, converso com muitos pacientes oncológicos e com doenças raras e incuráveis que vieram para Portugal em busca de dignidade e acesso a tratamentos que seus países de origem não oferecem. Conheci, por exemplo, um homem angolano que, há dois anos, trata um câncer de pulmão metastático na rede pública do Porto.
Mesmo estando em tratamento, ele não conseguiu regularizar sua situação migratória, perdeu o emprego por causa das limitações da doença e vive com medo da deportação. A surpresa dele foi grande quando lhe informei que a legislação portuguesa o protege.
A Lei n.º 23/2007, que estabelece o regime jurídico de entrada, permanência e afastamento de estrangeiros em território nacional, assegura, no Artigo n.º 122, que não precisam de visto para residência temporária os estrangeiros que “sofram de uma doença que requeira assistência médica prolongada que obste ao retorno ao país, a fim de evitar risco para a saúde do próprio”. Isso significa que, de acordo com a lei, nenhum paciente nessas condições poderia ser expulso de Portugal.
Na prática, no entanto, o desconhecimento da lei, somado à lentidão da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) em analisar processos, deixa essas pessoas à margem — muitas vezes, sem acesso a um número de utente definitivo, o que as impede de obter descontos em medicamentos e de seguir com seus tratamentos em segurança.
O drama é agravado pela ausência de estatísticas que permitam enxergar o tamanho real do problema. O Registro Oncológico Nacional e outras bases oficiais não discriminam pacientes por nacionalidade. Centros privados, como Fundação Champalimaud, em Lisboa, atendem pacientes internacionais, mas não divulgam dados agregados. Sem esses números, fica difícil cobrar políticas públicas específicas — e é fácil igonorar o problema.
Em 2023, os brasileiros representavam 35% da população estrangeira residente em Portugal, segundo a AIMA. Entre os cerca de 60.000 novos casos de câncer por ano no país, quantos são imigrantes? Quantos estão em situação irregular? Quantos vivem hoje o dilema de escolher entre continuar o tratamento ou ser deportado? Essas são perguntas que permanecem sem respostas, mas que precisam ser feitas — e enfrentadas.
Negar o acesso à saúde a quem mais precisa é um retrocesso ético e humano. É também uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que garante o direito de toda pessoa a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe saúde e bem-estar. Saúde não é privilégio de cidadãos. É um direito universal. Portanto, nenhum paciente — independentemente de sua nacionalidade, pode ser forçado a interromper seu tratamento ou a viver sob o medo enquanto corre em busca de qualidade de vida, mesmo que tenha um diagnóstico de uma doença grave.
