A alteração das regras do reagrupamento familiar vs. a prorrogação da validade das autorizações de residência


Enquanto o país político anda entretido a falar sobre o chumbo pelo Tribunal Constitucional das alterações, em particular em matéria de reagrupamento familiar, à denominada Lei de Estrangeiros — a Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, que aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional —, existe uma outra matéria, a montante desta, que estranhamente (ou talvez não) não tem merecido a atenção política e mediática que se impunha e impõe, atenta a importância e gravidade dos seus efeitos e consequências.
Estou a referir-me à última prorrogação da validade de autorizações de residência relativas à permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional que tenham caducado desde o dia 22 de Fevereiro de 2020. Sim leram bem, desde o dia 22 de Fevereiro de 2020 até aos dias de hoje. Vejamos do que falo.
Conforme consta do Comunicado então emitido, na reunião do Conselho de Ministros realizada no passado dia 23 de Junho, foram aprovados, entre outros, os seguintes documentos: uma Proposta de Lei de alteração da Lei da Nacionalidade (cujo processo legislativo se encontra, entretanto, a decorrer), uma Proposta de Lei de alteração da Lei de Estrangeiros (que culminou, como se sabe, com o Decreto da Assembleia da República objecto do recente veto por inconstitucionalidade do Presidente da República, na sequência do Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional) e um Decreto-Lei que procede à prorrogação da validade de autorizações de residência relativas à permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional.
Através do Decreto-Lei n.º 85-B/2025, de 30 de Junho, foi, assim, prorrogada, mais uma vez, a validade de autorizações de residência relativas à permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional nos seguintes termos:
“1 – Autorizações de residência cuja validade termine entre 22 de fevereiro de 2020 e 30 de junho de 2025, são aceites, nos mesmos termos, até 15 de outubro de 2025.
2 – Após 15 de outubro de 2025, os documentos respeitantes a autorizações de residência serão aceites mediante a apresentação pelo seu titular de documento comprovativo do pagamento do pedido da respetiva renovação, emitido pela Agência para a Integração, Migrações e Asilo, IP (AIMA, IP), com validade de 180 dias, contados a partir da sua emissão.
3 – A AIMA, IP, divulga publicamente o procedimento que adota para tratamento das renovações, podendo envolver a Estrutura de Missão para a Recuperação de Processos Pendentes na AIMA, IP.”.
A justificação dada pelo Governo para a prorrogação automática da validade das autorizações de residência entretanto caducadas — recorde-se que, nos termos da lei, as autorizações de residência temporárias tinham e têm um prazo de validade (em regra, 1 ano ou 2 anos (depois de 2022) —, encontram-se no preâmbulo do diploma que se cita em parte:
“O Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, veio prorrogar, em termos excecionais e transitórios, a validade dos documentos comprovativos da situação regular de cidadãos estrangeiros em território nacional, designadamente vistos e autorizações de residência cuja caducidade tenha ocorrido desde 22 de fevereiro de 2020.
A adoção deste regime teve como justificação inicial o contexto pandémico resultante da doença Covid-19, que determinou uma significativa restrição no funcionamento regular dos serviços da Administração Pública, em particular dos serviços competentes em matéria de migrações, dificultando gravemente o acesso dos cidadãos estrangeiros aos procedimentos de regularização da sua permanência em território nacional.
Finda a emergência sanitária, o regime foi sucessivamente prorrogado, não já por razões de saúde pública, mas antes por imperativos de natureza estrutural e administrativa, decorrentes da acentuada incapacidade de resposta do então Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e, posteriormente, da Agência para a Integração, Migrações e Asilo, IP (AIMA, IP), a qual sucedeu àquele no âmbito das atribuições em matéria de regularização de cidadãos estrangeiros.
Com efeito, a extinção do SEF e a transição para a nova arquitetura institucional da política migratória, sem prejuízo da sua relevância estratégica, revelaram-se insuficientes para assegurar, de forma imediata, a eficácia dos mecanismos de resposta administrativa, o que determinou a manutenção dos constrangimentos operacionais, nomeadamente ao nível da capacidade de agendamento, tramitação e decisão de milhares de processos acumulados.
Foi neste contexto que (…), o XXIV Governo procedeu à criação, em julho de 2024, da Estrutura de Missão para a Recuperação de Processos Pendentes na AIMA, IP, com o objetivo de dar resposta ao passivo processual acumulado (…). Desde a sua criação até junho de 2025, foram convocados mais de 500 000 cidadãos estrangeiros, o que permitiu não só acelerar a tramitação e a decisão de todos os processos pendentes de Manifestações de Interesse, como também resolver outros constrangimentos operacionais (…).
Tendo em vista a consolidação dos resultados alcançados, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 7/2005, de 21 de janeiro, veio prorrogar o funcionamento da Estrutura de Missão por mais seis meses, permitindo responder a outros desafios urgentes, como sejam os milhares de processo de renovação de autorizações de residência pendentes. (…).
Chegou por isso o momento de concretizar a resolução destas renovações, um processo que se iniciará em julho e cuja implementação implica acautelar, com caráter excecional e transitório, os direitos dos cidadãos estrangeiros titulares de documentos caducados, garantindo-lhes a devida segurança jurídica e o pleno acesso aos direitos e serviços essenciais durante a resolução do seu processo de renovação.
Assim, justifica-se a prorrogação automática da validade dos documentos entretanto caducados, assegurando as condições necessárias para os cidadãos estrangeiros renovarem as suas autorizações de residência, regulando-se também aspetos desse processo”.
Deste modo, autorizações de residência cujo prazo de validade tenha terminado entre 22 de Fevereiro de 2020 e 30 de Junho de 2025 são aceites como válidas até 15 de Outubro de 2025, sendo que, após esta data, serão ainda aceites como válidas até 15 de Abril de 2026, bastando que, para o efeito, o seu titular demonstre ter efectuado o pagamento do pedido da respectiva renovação.
Refira-se que, nos últimos anos, a prorrogação da validade de documentos entretanto caducados, tais como, por exemplo, vistos e autorizações de residência, foi feita através da aprovação de sucessivas alterações aos nºs 8 e 9 do artigo 16º “Atendibilidade de documentos expirados” do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13.03, a última das quais foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 41-A/2024, de 28.06, nos seguintes termos:
“8 – Os documentos e vistos relativos à permanência em território nacional, cuja validade expire a partir da data de entrada em vigor do presente decreto-lei ou nos 15 dias imediatamente anteriores, são aceites, nos mesmos termos, até 30 de junho de 2025.
9 – Os documentos referidos no número anterior continuam a ser aceites, nos mesmos termos, após 30 de junho de 2025, desde que o seu titular faça prova de que já procedeu ao agendamento da respetiva renovação”.
A justificação foi dada no preâmbulo do citado decreto-lei:
“Por último, os atrasos verificados na Administração Pública na tramitação dos procedimentos de renovação e prorrogação de documentos relativos à permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional, agravados pelo crescente número de processos pendentes de análise, impactam negativamente a situação de vida profissional e familiar dos seus titulares bem como as condições de acesso a serviços públicos. Estes atrasos, originados pelo demorado e desordenado processo de extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, e agravados, primeiro, pelos efeitos da crise pandémica da COVID-19, e num segundo momento, pela incapacidade de resposta dos serviços da AIMA, I. P., justificam que se prorrogue, pelo período de um ano, o prazo estabelecido no Decreto-lei nº 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, no que respeita à validade dos documentos e vistos, de modo a garantir um tempo suficiente de estabilização do funcionamento dos serviços públicos em matéria de migrações, que assegure uma resposta atempada aos pedidos que lhe são dirigidos”.
É, no entanto, para mim, incompreensível e inaceitável que se tenham mantido em vigor algumas das normas de um diploma como o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13.03, que, como se sabe, estabeleceu “medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – Covid-19”, quando a maior das suas normas (com excepção entre outros do seu art. 16.º) foi revogada pelo Decreto-Lei nº 66-A/2022, de 30.09, diploma que revogou e determinou a cessação de vigência de mais de 100 decretos-lei publicados no âmbito da “pandemia da doença Covid-19” entre os meses de Março de 2020 e Abril de 2022.
Por outro lado, é também para mim incompreensível e inaceitável que com estas sucessivas prorrogações automáticas da validade de vistos e autorizações de residência, que perduram há mais de cinco anos, se esteja durante tanto tempo a prescindir de verificar o cumprimento (que é cumulativo) dos múltiplos requisitos, gerais e especiais, quer para a renovação de vistos, quer muito em particular para a concessão de autorização de residência e sua renovação (periodicamente obrigatória) previstos na Lei de Estrangeiros.
Por exemplo, quanto à renovação da autorização de residência temporária aos nacionais de Estados terceiros, renovação essa que, em circunstâncias normais, implica a verificação do cumprimento de todos os requisitos, gerais e especiais, previstos na lei para a concessão originária (cfr. art. 77.º da Lei n.º 23/2007), e que, além do mais, pode não ser concedida por razões de ordem pública ou de segurança pública, exige a lei que os requerentes interessados disponham de meios de subsistência e de alojamento, tenham cumprido as suas obrigações fiscais e perante a segurança social, não tenham sido condenados em pena ou penas que, isolada ou cumulativamente, ultrapassem um ano de prisão (cfr. art. 78.º da Lei n.º 23/2007).
Bem sei que esta situação caótica resulta das políticas erradas aprovadas pela maioria de esquerda na AR e adoptadas pelos Governos socialistas no passado. Contudo, aquilo que está a ser feito pelo Governo da AD desde 2024 não parece ser suficiente.
Recorde-se que, de acordo com o que foi dito pela AIMA, no Sumário Executivo do Relatório Intercalar (Recuperação de processos pendentes na AIMA População Estrangeira em Portugal) divulgado em Abril passado:
“1. A 31 de dezembro de 2024, Portugal registava pelo menos 1.546.521 cidadãos estrangeiros (1.465.446 no final do 1.º semestre de 2024). Este número quase quadruplica o total de 421.785 cidadãos estrangeiros registado no final de 2017;
2. Este número de 2024 deverá ser corrigido em alta, previsivelmente em mais 50 mil cidadãos estrangeiros, quando for concluído o tratamento dos pedidos de regularização ao abrigo do “regime transitório” criado pela Assembleia da República (Lei n.º 40/2024). Estes cerca de 50 mil cidadãos já se encontravam em território nacional antes de 3 de junho de 2024 e já apresentaram pedido ao abrigo do regime transitório. Estima-se que, com esta revisão, o número de estrangeiros em Portugal em 2024 seja de cerca de 1.600.000;
3. O trabalho já realizado pela Estrutura de Missão para a Recuperação de Processos Pendentes na AIMA implica uma correção estatística ao número de cidadãos estrangeiros em Portugal nos anos anteriores a 2024, com a sua revisão em alta: de 1.044.606 para 1.293.463 em 2023, o que representa um aumento de 248.857 face ao número apresentado no Relatório de Migrações e Asilo relativo a 2023;
4. Após o fim do regime da manifestação de interesse a 3 de junho de 2024, verificou-se uma redução de 59% do fluxo de entradas de cidadãos estrangeiros em Portugal que tinham em vista a obtenção de uma autorização de residência”.
Não é, aliás, descabido que o número estimado de 1.600.000 de cidadãos estrangeiros registados em Portugal em 2024 (qual será o número dos não registados?) venha a ser revisto quando for publicado pela AIMA o Relatório de Migrações e Asilo referente ao ano de 2024.
O Governo disse que, desde que foi criada a Estrutura de Missão para a Recuperação de Processos Pendentes na AIMA em Julho de 2024 e até Junho de 2025, foram convocados mais de 500 000 cidadãos estrangeiros.
Ora, é de perguntar: isso significa que os restantes 1.100.000 estrangeiros residem legalmente em Portugal? E desses 500.000 que foram convocados, quantos responderam à convocação? E a quantos foi concedida autorização de residência? E aos que viram o seu processo extinto ou a autorização de residência indeferida, sabe o Governo onde estão? Deu-lhes o Governo ordem de expulsão?
Nas duas últimas décadas, Portugal tem sido um campeão em exportar mão-de-obra maioritariamente qualificada (mais de 1.000.000, segundo dados oficiais) e em importar mão-de-obra maioritariamente não qualificada e por vezes desqualificada (seguramente mais de 1.600.000).
Não vale a pena dizer o que isto significa para a sociedade portuguesa. Quem ainda não percebeu a gravidade das consequências, a curto, médio e longo prazo, do que está a acontecer, seguramente que nada do que eu possa dizer será suficientemente esclarecedor.
A acrescer a esta situação problemática temos então a questão do reagrupamento familiar…! Recorde-se que o requerente de uma autorização de residência pode solicitar simultaneamente o reagrupamento familiar, como o pode fazer após lhe ser concedida autorização de residência, nos termos previstos na Lei de Estrangeiros.
A propósito desta questão, nos últimos tempos muito se tem falado sobre a importância da família e sobre o dever de o Estado a proteger, como elemento fundamental da sociedade e espaço privilegiado para a plena realização, pessoal, profissional, social e emocional, de todos os seus membros, protecção essa que constitui não só uma obrigação, mas um verdadeiro imperativo constitucional. Muito bem. Eu diria até que a protecção da família deveria constituir um verdadeiro desígnio nacional, se se quiser assegurar a sobrevivência de Portugal.
Um estrangeiro que nos visite pela primeira vez por estes dias, certamente irá pensar que Portugal é um país profundamente conservador. Qual não será o seu espanto ao constatar que afinal os recentes arautos e grandes defensores da instituição familiar não são conservadores (esses, cansados que estão de tanto pregar no deserto…) e que as famílias que agora são objecto de tanta devoção são as famílias dos cidadãos estrangeiros imigrantes e não as dos cidadãos portugueses.
Onde estiveram o Presidente da República, a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional, os partidos, deputados e políticos de esquerda (e não só…), quando era preciso defender a família e todos (todos, todos) os seus membros, no momento da discussão, votação, aprovação, promulgação e fiscalização de tantos e tantos diplomas legais que nos últimos anos têm desferido fortes ataques e rudes golpes (explícitos ou implícitos, expressos ou tácitos, directos ou indirectos) à família e aos seus membros, como, por exemplo, os diplomas respeitantes ao aborto, à denominada “autodeterminação da identidade de género”, à promoção da ideologia de género nas escolas junto das crianças e dos jovens, aos direitos dos pais quanto à educação dos seus filhos e à eutanásia dos doentes, dependentes, incapazes e idosos?
Do lado da instituição familiar e dos seus membros (de todos, todos, todos, já nascidos e à espera de nascer) é que não estiveram seguramente, pelo menos, da forma como se impunha que estivessem. Isto já para não falar da falta de medidas adequadas a promover e apoiar a natalidade e a facilitar a compatibilização entre a vida familiar e a vida profissional.
Não pretendo analisar aqui o recente Acórdão n.º 785/2025 do TC, que, como se sabe, declarou a inconstitucionalidade (no fundamental por entender que foram violados os deveres constitucionais de protecção da família a que o Estado se encontra vinculado) de várias normas do Decreto da Assembleia da República que introduzia diversas alterações, especialmente em matéria de reagrupamento familiar, aà lei de Estrangeiros (vide Comunicado do TC com link para o texto do Acórdão).
Refiro apenas que, em minha opinião, essas alterações em matéria de reagrupamento familiar eram, e são (diga o que disser a maioria dos juízes do TC – esta frase foi inspirada no dizer do anterior primeiro-ministro que ficou para os anais da História) totalmente legítimas, necessárias, fundadas e conformes com a Constituição, só pecando por serem tardias e talvez insuficientes.
Limito-me, assim, a remeter, por concordar com o essencial do seu teor, quer para as declarações de voto de vencido emitidas pelos Juízes Conselheiros João Carlos Loureiro, Maria Benedita Urbano, Gonçalo de Almeida Ribeiro e José António Teles Pereira — que, em divergência com a maioria que obteve vencimento, votaram (e bem) pela não inconstitucionalidade de todas as normas objecto do pedido —; quer para o artigo aqui publicado, A jurisprudência da ignomínia, de Miguel Morgado.
Não resisto, no entanto, a fazer dois breves comentários relacionados com este assunto: o 1.º, sobre a actuação do Presidente da República; o 2.º, sobre as vozes que no espaço público têm defendido ser necessário rever a Constituição.
Quanto à actuação do Presidente da República, começo pelo teor do pedido de fiscalização preventiva que remeteu ao TC, para lamentar que o Presidente não tenha demonstrado tamanha preocupação com a família (e com todos os seus membros) quando se pronunciou, por exemplo (entre tantos outros), sobre a lei da eutanásia – a lei que permitiria que o Estado matasse, e deixasse matar, os seus próprios cidadãos, mas que felizmente morreu de morte natural -, como demonstrou com a Lei de Estrangeiros …!
Com efeito, das duas vezes que submeteu a lei da eutanásia à fiscalização preventiva do TC, em pedidos ostensiva e claramente insuficientes, quer em termos das normas impugnadas, quer da respectiva fundamentação ou causa de pedir, o Presidente da República limitou-se a invocar a violação dos princípios da legalidade e tipicidade criminal (no pedido apresentado a 18.02.2021) e a violação do princípio de determinabilidade da lei (no pedido apresentado a 04.01.2023).
Já no pedido de fiscalização referente à Lei de Estrangeiros, o Presidente não poupou a pena nem se retraiu nos fundamentos, tendo invocado a “violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da segurança jurídica, da proporcionalidade na restrição de direitos e do acesso à justiça, igualdade e tutela jurisdicional efetiva, da união familiar, da vinculação da atividade administrativa à Constituição, decorrentes das disposições dos artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 36.º, 266º, n.º 2 e 268º n.º4, todos da Constituição da República Portuguesa”.
E, pelos vistos, desta vez também se preocupou com o facto de o processo legislativo ter sido tramitado de forma urgente, não tendo havido efectivas consultas e audições a diversas entidades, quando tal aconteceu (e acontece infelizmente) de forma recorrente em tantos e tantos processos legislativos…! Não me recordo de alguma vez o Presidente da República ter demonstrado idêntica preocupação. Enfim, populismo e hipocrisia no seu melhor, ou melhor dizendo, no seu pior, dirão alguns.
Por outro lado, é absolutamente injustificado, injustificável e incompreensível que o Presidente da República tenha requerido a fiscalização preventiva urgente deste diploma, fixando em 15 dias o prazo para pronúncia por parte do TC, retirando, assim, 10 dias ao já de si curto prazo de 25 dias que o TC tem para se pronunciar em sede de fiscalização preventiva, tendo presente que o diploma, aprovado pela AR no dia 16 de Julho, lhe foi enviado para promulgação no dia 17 de Julho e que o Presidente da República só requereu ao TC a sua fiscalização preventiva sete dias depois, ou seja, no dia 24 de Julho, e tendo também presente a complexidade e novidade das várias questões suscitadas. Isso mesmo foi assinalado em algumas das declarações de voto de vencido, em particular na declaração de voto do Juiz Conselheiro João Carlos Loureiro.
Por fim, foram lastimáveis as declarações que o Presidente da República proferiu no passado dia 3 de Agosto, quando disse que politicamente, “fica para a história” que houve uma maioria que “quis essas soluções e oportunamente será julgada por isso”. Não é, aliás, muito prudente invocar-se para os outros o julgamento da história, quando se será submetido ao mesmo, se é que já não foi.
Quanto à necessidade, reclamada por alguns, de ser revista a Constituição, tenha de confessar a minha discordância. Nesta matéria, como em tantas outras (com poucas excepções), o problema não reside no teor das normas constitucionais, mas sim no modo como as mesmas são, e têm sido, interpretadas, em particular pela maioria dos juízes do TC.
Um exemplo paradigmático é do n.º 1 do artigo 24.º da Constituição: “A vida humana é inviolável”. Não existe disposição mais clara e inequívoca do que esta, disposição, aliás, que é única no mundo. No entanto, vimos como, no passado, várias e diferentes maiorias de juízes do TC, e por diversas vezes, não se pronunciaram pela inconstitucionalidade de normas que atentavam, de forma expressa e inequívoca, contra a vida humana, seja a vida intra-uterina, seja a vida extra-uterina.
Em muitas matérias, alterar a Constituição não iria ou irá adiantar nada. Mudar de juízes do TC talvez adiante. Em breve, haverá uma oportunidade de ouro para tal mudança. Só espero que a mesma seja bem aproveitada e não seja desperdiçada.
Acresce que o último processo de revisão constitucional, que, em minha opinião, em boa hora caducou com a dissolução da AR, demonstrou que é muito perigoso encetar um processo de revisão constitucional, pois pode-se saber como é que começa, mas nunca se sabe como é que acaba. E o último processo de revisão preparava-se para acabar mal, com inúmeras restrições aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e com alterações constitucionais marcadamente ideológicas de esquerda (e de direita) wokista. E o pior é que a maior parte dos deputados (com honrosas excepções, algumas delas perigosas) nem se apercebeu disso.