Menos estudantes colocados no ensino superior? Não é por acaso

Os resultados da primeira fase do Concurso Nacional de Acesso, divulgados a 24 de Agosto, revelaram uma realidade decepcionante – o número de estudantes colocados foi cerca de 44 mil, registando o menor número de colocações no ensino superior em quase uma década (fruto, sobretudo, de um decréscimo nas candidaturas). Acrescido a esta questão, a quantidade de estudantes colocados nas universidades em situação de carência económica voltou, também ela, a diminuir, evidenciando um caminho de elitização do ensino superior que os vários governos têm percorrido ao longo dos anos. Mas porquê?
Desde logo, é imperativo esclarecer que o regime de acesso ao ensino superior a partir do secundário, também ele, voltou a mudar. Este ano, a realização de exames nacionais tornou a ser obrigatória para a conclusão da escolaridade, substituindo a sua utilidade única (dos últimos anos) enquanto mera prova de acesso e exercendo um novo peso na média interna dos alunos. Deste modo, até a realização do exame de Português voltou a ser obrigatória para todas as áreas de estudo.
Este pode afigurar-se como um primeiro motivo pelo qual o número de candidaturas e colocações foi reduzido – um instrumento único de suposta universalidade que condena um trabalho continuado ao longo de três anos a meras horas à frente de um papel. Basta um pico de nervosismo ou uma distracção num exame nacional para pôr o futuro académico de um estudante em banho-maria durante mais um ano, ou pior. Reforçando o seu peso nas condições de acesso ao ensino superior, é natural que este instrumento se torne um condicionante desigualitário – embora concebido, supostamente, para colmatar as discrepâncias entre escolas públicas e privadas, ignora o grau preparação (ou falta dela) que um aluno recebe quando não tem professor a uma ou mais disciplinas ou, por outro lado, acesso a uma preparação continuada para exame (é ainda de notar a questão das explicações, reservadas a quem as pode pagar).
Seguidamente, é cada vez mais óbvia a falta de condições oferecidas pelo sistema de ensino superior para que este seja universal e de qualidade. A existência da propina configura-se, desde logo, como um entrave, adensado por ameaças recentes de membros do governo sobre o seu descongelamento. Um instrumento desde logo discriminatório que não é suplantado pela insuficiente e tardia atribuição de bolsas de estudo, tornando a condição de estudante não num direito de todos, mas numa crescente condição de privilégio. Ainda assim, a propina não constitui um entrave único, dado que as taxas e emolumentos nos vários processos burocráticos do meio universitário assumem igual função, embora em menor escala.
Por último, um flagelo que extravasa a realidade das necessidades estudantis: a crise na habitação. Com quartos a custar 500€ (ou mais) mensalmente em grandes superfícies urbanas, a par com uma carência estrutural de residências universitárias, os estudantes deslocados são cada vez menos incentivados a embarcar na aventura de tirar a sua licenciatura numa grande cidade.
Todos estes elementos contribuem para uma crescente elitização do ensino superior que, com um ou outro obstáculo, vem fazendo o seu caminho desde os anos 90 – a introdução da propina, o elevado custo de vida nas cidades e um modo desigualitário de acesso ao ensino superior crescentemente relevante são, sem dúvida, factores incontornáveis na realidade que hoje vemos numericamente espelhada. Menos estudantes na universidade e, entre eles, menos estudantes carenciados. Se esta não é uma clara evidência de menosprezo do carácter (supostamente) universal do ensino superior, protelado por políticas insuficientes e discriminatórias de sucessivos governos, então o que é?
