Uma aventura no SNS

Pre scriptum. Na minha época de universitária uma das minhas companheiras de casa estava a tirar um curso de gestão hospitalar. O tutor dela, médico, antigo ministro, catedrático, pessoa reputadíssima na área da saúde, ensinou-lhe “que o maior problema do sistema é que quem decide sobre o sistema não frequenta o sistema”.

Sentia um ardor no estômago e no tórax há uns meses. Durante umas ecografias de rotina, detetaram-me lesões no fígado de natureza indeterminada.

A médica que me examinava perguntou quando veria o meu internista.

– “Daqui a um mês”.

– “Não pode ser, tem de antecipar” e escreveu o relatório em que prescrevia necessidade de avaliação mais apurada através de TAC ou ressonância.

Claro que a dor imediatamente agravou e um historial de saúde familiar paterno complicado no estômago e pâncreas fez o resto.

O internista estava de férias, a cobertura do ambulatório esgotou, liguei para a linha Saúde 24, 58 minutos à espera. Atendem, mandam ligar outra vez e escolher outra opção, não passam chamadas internamente. Ligo, atendem, não é esta a opção certa, “- mas a sua colega disse que sim”, “- mas não”, desligo, volto a ligar, volto à opção inicial. Expus a situação outra vez, perguntam-me se estou no meu distrito, nem quero saber o que isso quer dizer, imagino que a Saúde 24 atua como se todos os distritos fossem Lisboa, ligados por comboios, autocarros, barcos, tenham uber e táxis a toda a hora. Marcam-me consulta no meu centro de saúde nessa mesma tarde.

O médico de turno viu o relatório e prescreveu duas TACs porque os centros de saúde não podem prescrever ressonâncias (sic), para isso tem de ir a uma consulta da especialidade que pode demorar um ano, sei lá, muito tempo (sic). Quando tiver o resultado das TACs faz como fez hoje, liga à Saúde 24 para marcar nova consulta (sic outra vez).

“- Outra vez? Mais uma hora à espera”?

“- Está aqui e a consulta é de borla”

“- De borla, não. Pago impostos”.

Não tenho médica de família. A minha reformou-se há uns meses, há tantos quantos há um substituto nomeado que ninguém quer explicar porque ainda não está ali a trabalhar.

Fiz as TACs dois dias depois e no relatório o médico concluiu que tinha lesões quísticas no pâncreas, de tamanho considerável, sem evidentes worrysome features por esta técnica de imagem, recomendando-se avaliação por ressonância.

Nova chamada para a Saúde 24, explico isto tudo, encaminha-me para a urgência do hospital.

Entro na urgência depois do meio-dia, sou triada depois da uma, mostro as TACs, o enfermeiro lê o relatório e diz-me que “quem procura acha”, põe-me uma pulseira amarela, sou uma doente urgente. Sentam-me numa sala, muitas pessoas mais velhas à minha volta e isso é desolador, ver o fim assim, de qualquer maneira oiço muitas reclamações, pessoas que estão nesta sala desde as nove horas, googlo para saber qual é o tempo em que devo ser atendida, tenho pulseira amarela, uma hora, está quase. Estão quatro médicos escalados para a urgência, mas não está lá nenhum.

Quatro horas depois aparece uma médica que me examina ali mesmo na sala.

“ – Vejo que trouxe uns exames, devia ter ido ao Centro de Saúde, o médico de lá ainda não pôs os resultados no sistema”, respondo que a Saúde 24 me mandou para ali, abro o relatório das TACs no meu telemóvel, ela faz scroll até à conclusão, tira uma fotografia, faz apalpação e perguntas a que não me dá tempo de responder, não está interessada. Vem a última pergunta: “há quanto tempo não faz análises?”

“- Há três semana, um mês…, tenho-as comigo.”

“- Não interessa, um ano?, um mês?, isso é o que quero saber. Vai fazer análises.”

Prescreve-me um Benuron e um calmante, não tomo o calmante. Fiz análises e, uma hora depois, a enfermeira diz-me que a médica mandou fazer dois Raios X, aos mesmos sítios a que tinha feito as TACs. Não sou médica, mas parece-me que a TAC é um exame mais completo. Pergunto-me porque é que os exames feitos recentemente, o resultado das TACs tem um dia!, por entidades credíveis e com quem o SNS até trabalha, não podem ser usados, e pergunto à enfermeira qual é o sentido daquilo. Não me soube responder. Isto não é um desperdício de recursos incompreensível? Pedi para falar com a médica, a enfermeira procurou-a nos gabinetes onde não estava e depois deixou-me à porta de outra sala, onde a médica sim, estava, e disse-me que pedisse aos colegas para a chamarem. Mandaram-me regressar à minha sala, que a médica tinha dito para aguardar lá. Ando para trás e para a frente uma hora, entretanto vem uma auxiliar chamar-me porque tinham sido pedidos dois transportes para mim para o Raio X (um transporte é a caminhada acompanhada pela auxiliar da sala de espera até à sala do exame). Pouca gente desta vez, 45 minutos depois continuo sem ser chamada. Uma enfermeira dirige-se a mim, pergunta-me se estou à espera de algum exame, digo o que se passa, vê no sistema, nenhum exame está pedido em meu nome. Regresso à sala da urgência, a enfermeira confirma no sistema que a médica pediu os transportes, mas ainda não os exames. Peço para falar novamente com a médica, digo que me quero ir embora. A enfermeira responde que é melhor falar com a médica para não constar do registo que abandonei a urgência.

“- Abandono, que abandono? Não estou a abandonar, a médica é que me abandonou.”

A enfermeira leva-me à porta da sala onde está a médica e diz-me que peça aos colegas para a avisarem que quero falar-lhe.

“- Diga-lhe que se vai embora, pode ser que tenha efeito.”

Aparentemente tem porque a médica manda-me esperar à porta.

Olho para a cena, uma mesa enorme no meio da sala, talvez dez médicos e possivelmente enfermeiros de cada lado a escreverem em computadores. Com quanta burocracia terão os médicos de lidar e quanto tempo rouba à efetiva prestação de cuidados de saúde?

Uma hora depois a médica vem ter comigo, entrega-me um envelope, dá-me alta.

Digo-lhe que se esqueceu de pedir no sistema os Raios X, responde-me que tinha as TACs e que não valia a pena. Olho com assombro, isso ela já sabia há seis horas!

“- E as conclusões das TACs?”

“ – Não vejo lá nada, mas essa não é a minha especialidade.” Estou incrédula, seis horas depois diz-me que não é especialista na minha doença.

“ – Então porque não me encaminha para um especialista?”

Não responde e entrega-me um envelope fechado. Diz-me para telefonar para a Saúde 24 para ir novamente ao meu Centro de Saúde mostrar ao médico os resultados das TACs. Acrescenta que, se continuar com dores e for, por exemplo, de férias para Tavira, posso ir lá ao Centro de Saúde, entrego a carta ao médico de serviço e serei atendida (sic). WTF?

Já em casa abro o envelope e leio o “Diário Clínico”. Diz que neguei todos os sintomas sobre que me perguntou, com termos técnicos que desconheço, mas há três sobre os quais mente: náuseas, tonturas e irradiação do queimor. A menos que o “atualmente” que antecede a constatação da minha negação tenha a ver com o exato momento em que me examinou, porque efetivamente enjoada não estava naqueles precisos cinco minutos.

Um médico amigo explica-me que talvez o médico do centro de saúde me estivesse, na verdade, a manter no sistema porque, se se quisesse ver livre de mim, encaminhava-me para a especialidade e eu desaparecia do radar até ter consulta, um ano talvez.

Vou à CUF, encontro o meu internista no bar, digo-lhe o que se passa, ele vê o relatório, telefona-me e diz-me que tenho lesões, que podem ser benignas, mas também podem ser malignas, que o melhor era fazer ressonância abdominal pélvica para despistar e ver o que faço a partir daí.

“ – Quão preocupada devo ficar?”

“ – Moderadamente”.

Marco as ressonâncias. Há um mês que o Tony Soprano, deitado na máquina da ressonância magnética, a perguntar à mulher “terei cancro?”, não me sai da cabeça

– “Já vamos saber”, responde ela.

Na manhã em que entrego este artigo soube, graças a Deus — e aos meios que me deu–, que não tenho.

Sei também que, para o SNS, as análises feitas fora do SNS não valem, as TACs também não, as ressonâncias valerão? Se detetarem algo mau não importa, no SNS volta-se à estaca zero? Um doente paga do próprio bolso, leva os resultados ao SNS e o SNS manda repetir não porque tem dúvidas, mas porque sim. O contribuinte, que até pode ser o mesmo doente, paga outra vez.

Sei ainda que, não sendo doente crónica, nem estando grávida ou tendo menos de 12 anos, não sou prioritária para o SNS. Entendo, como os recursos são escassos temos de estabelecer prioridades. O que não entendo é como é que isso não se reflete nos impostos que pagamos. O valor das deduções à coleta com a saúde é uma brincadeira, se tivermos em conta os custos com a saúde.

Acresce que, mesmo que alguém tenha todo o dinheiro do mundo, não consegue comprar nos privados serviços que só o SNS pode prestar. Mas o SNS é como uma empresa de que somos acionistas, mas a que não temos acesso.

Postscriptum

Os seguros de saúde são cada vez mais caros para terem coberturas decentes e fazem exigências despropositadas. A seguradora pediu-me recentemente os comprovativos do multibanco que já não se usam, já não chega a fatura, e sucedem-se as mensagens a dizer que os documentos comprovativos das despesas estão ilegíveis.

Os grupos de saúde privados têm cada vez menos acordos com as seguradoras, já para não falar com o SNS: médicos, exames, intervenções, tudo e todos com cada vez menos acordos com as seguradoras. Somos tantos os portugueses com seguro de saúde, porque o SNS não responde atempadamente às aflições, que já nem os privados têm capacidade. Os médicos dizem que as seguradoras pagam cada vez menos, embora cobrem cada vez mais. Não lhes compensa o volume de trabalho. Os telefonemas das enfermeiras nos dias anteriores para a preparação de atos médicos deixaram de acontecer, as assistentes telefónicas não dão resposta às dúvidas, as faturações aparecem erradas a maior parte das vezes.

Os tempos de espera no SNS são incomportáveis, a maior parte das vezes não por uma questão de vida ou de morte, mas porque condenam as pessoas a uma má qualidade de vida enquanto não são tratadas. E isso é morrer um pouco, não é?

Tanta capacidade instalada porque é que não está integrada? Porque é que andamos a pagar a tantos agentes diferentes e as respostas de todos são cada vez mais deficientes?

A medicina preventiva salva vidas, mas se não formos doentes crónicos raramente somos chamados para uma consulta de rotina. Temos de estar a morrer para sermos tratados?

O que estamos a pagar afinal?

Sobre o projecto da “cidade humanitária” em Gaza: ilha sem mar, Lesbos no deserto

Na Grécia Antiga, o exílio era a forma mais extrema de punição sem sangue e a ilha de Lesbos contava‑se entre os destinos de desterro (acolhendo políticos, intelectuais e militares caídos em desgraça). Não era prisão, era afastamento. Não era esquecimento, era o corte consciente da pertença, do nome, da pólis. Era, na sua essência, uma forma de morte cívica.

Os leitores são a força e a vida do jornal

O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue – nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para [email protected].

Guterres diz que decisão israelita de tomar Gaza representa uma “perigosa escalada” e apela a um cessar-fogo imediato

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, advertiu esta sexta-feira de que a decisão israelita de ocupar a Faixa de Gaza começando pela capital “representa uma perigosa escalada” do conflito que porá “ainda mais em perigo” os civis, reféns incluídos.

“[António Guterres] está profundamente alarmado com a decisão do Governo israelita de ‘tomar o controlo da cidade de Gaza’ (…). Poderá agravar as já catastróficas consequências para milhões de palestinianos”, declarou a sua porta-voz adjunta, Stephanie Tremblay, num comunicado.

O líder das Nações Unidas, que recordou que os palestinianos da Faixa de Gaza “continuam a sofrer uma catástrofe humanitária de proporções aterradoras”, afirmou que esta é uma “nova escalada [que] resultará em mais deslocações forçadas, mortes e destruição maciça, agravando o sofrimento inimaginável da população palestiniana em Gaza”.

Reiterou, por isso, o seu apelo para um cessar-fogo imediato e para a entrada de ajuda humanitária no enclave palestiniano, instando simultaneamente as autoridades israelitas a cumprirem as suas obrigações ao abrigo do Direito Humanitário Internacional.

Guterres recordou que o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) declarou que o Estado de Israel tem a obrigação de “pôr termo à sua presença ilegal nos territórios palestinianos ocupados — que abrangem a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental — o mais rapidamente possível”.

“Não haverá uma solução sustentável para este conflito sem o fim da ocupação ilegal e sem uma solução viável de dois Estados. Gaza é e deve continuar a ser parte integrante de um Estado palestiniano”, concluiu.

O gabinete de segurança do Governo israelita anunciou esta sexta-feira a aprovação de um plano para a ocupação total da Faixa de Gaza, a começar pela cidade de Gaza, situada no norte da Faixa de Gaza e com cerca de um milhão de habitantes, metade da população do enclave.

Os habitantes da cidade de Gaza serão deslocados para sul até 7 de outubro, data do segundo aniversário do ataque do Hamas a Israel, que fez cerca de 1.200 mortos e 251 reféns e desencadeou no mesmo dia a guerra israelita ainda em curso no território palestiniano.

Até agora, bombardeamentos e ofensivas terrestres fizeram mais de 61.000 mortos e 150.000 feridos, na maioria civis, além de milhares soterrados sob os escombros, segundo os mais recentes dados das autoridades locais, considerados pela ONU fidedignos.

Prosseguem também diariamente as mortes por fome, causadas pelo bloqueio de ajuda humanitária durante mais de dois meses, seguido da proibição israelita de entrada no território de agências humanitárias da ONU e organizações não-governamentais (ONG).

Alguns mantimentos estão desde então a entrar a conta-gotas e a ser distribuídos em pontos considerados “seguros” pelo exército, que regularmente abre fogo sobre civis palestinianos desesperados para obter comida, fazendo milhares de mortos e feridos.

Há muito que a ONU declarou o território mergulhado numa grave crise humanitária, com mais de 2,1 milhões de pessoas numa “situação de fome catastrófica” e “o mais elevado número de vítimas alguma vez registado” pela organização em estudos sobre segurança alimentar no mundo. Já no final de 2024, uma comissão especial da ONU tinha acusado Israel de genocídio em Gaza e de estar a usar a fome como arma de guerra – acusação logo refutada pelo Governo israelita, mas sem apresentar quaisquer argumentos.

Se tiver uma história que queira partilhar sobre irregularidades na sua autarquia, preencha este formulário anónimo.

Vice-presidente do TC critica inconstitucionalidade e sugere que decisão sobre lei de estrangeiros baseou-se em convicções pessoais

O vice-presidente do Tribunal Constitucional (TC) criticou, esta sexta-feira, a declaração de inconstitucionalidade da lei de estrangeiros, considerando que as medidas do decreto são “perfeitamente razoáveis”, e sugeriu que a decisão baseou-se em convicções pessoais.

Numa declaração de voto conjunta anexa ao acórdão do TC que declarou inconstitucional cinco normas da lei de estrangeiros, o vice-presidente do tribunal, Gonçalo Almeida Ribeiro, e o juiz conselheiro José António Teles Pereira dizem ter discordado dessa decisão.

Para os dois juízes, apesar de algumas das normas constantes no decreto “serem polémicas e discutíveis”, são “perfeitamente razoáveis e legítimas”, constituindo “uma expressão normal da arbitragem democrática do dissenso político”.

“A legislação numa democracia constitucional não deve ser produto de uma transação entre as preferências políticas da maioria parlamentar e da maioria dos membros da jurisdição constitucional, mas um exercício de liberdade programática limitado pelo respeito pelos direitos fundamentais e princípios estruturantes de uma república de pessoas livres e iguais”, defendem.

Lei dos Estrangeiros. Os cinco chumbos do TC, a divisão dos juízes e a visão dos constitucionalistas para o futuro do diploma

Gonçalo Almeida Ribeiro e José António Teles Pereira consideram que, “para que um juízo constitucional informado por valores tão abstratos e elásticos se revele um exemplo de razão jurídica, em vez de uma escolha ideológica, deve satisfazer um ónus exigente de fundamentação”, considerando que isso não se verificou nos argumentos do acórdão hoje divulgado.

Os dois juízes reconhecem que as opções do legislador relativamente ao direito dos estrangeiros deve “merecer um escrutínio severo ou um controlo intensificado por parte do juiz constitucional”.

“Só que um escrutínio judicial intenso não pode ser um pretexto para os juízes transportarem para o plano constitucional as convicções que legitimamente têm enquanto cidadãos — violando a igualdade democrática –, antes constituindo-os num dever acrescido de se inteirarem dos factos pertinentes, examinarem os textos aplicáveis, consultarem doutrina autorizada e articularem argumentos consistentes, cuidadosos, ponderados e persuasivos”, referem.

Governo já estuda forma de contornar chumbo, com o PS a pedir diálogo. Ventura ameaça

Gonçalo Almeida Ribeiro e José António Teles Pereira reconhecem que isso não é “verdadeiramente viável” neste caso, uma vez que o Presidente da República pediu que o TC se pronunciasse em 15 dias, mas frisam que, perante a urgência desse pedido, “o melhor que se poderia fazer, com sentido de responsabilidade institucional, seria procurar respaldo noutras jurisdições”, como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ou o Tribunal de Justiça da União Europeia.

“Em vez disso, profere-se um acórdão em que se fazem exigências constitucionais inéditas e se desenha o esboço de um caderno de encargos”, criticam.

À semelhança de Gonçalo Almeida Ribeiro e José António Teles Pereira, a juíza conselheira Maria Benedita Urbano também discordou da decisão da maioria relativamente à declaração de inconstitucionalidade das cinco normas.

[Um jovem polícia é surpreendido ao terceiro dia de trabalho: a embaixada da Turquia está sob ataque terrorista. E a primeira vítima é ele. “1983: Portugal à Queima-Roupa” é a história do ano em que dois grupos terroristas internacionais atacaram em Portugal. Um comando paramilitar tomou de assalto uma embaixada em Lisboa e esta execução sumária no Algarve abalou o Médio Oriente. É narrada pela atriz Victoria Guerra, com banda sonora original dos Linda Martini. Ouça o terceiro episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E ouça o primeiro episódio aqui e o segundo aqui]

Numa declaração de voto, a juíza considera que o chumbo do diploma “tem como consequência a manutenção de uma política de fronteiras abertas” e a decisão “mostrar-se alheada (ou não tem na devida consideração)” a “realidade socioeconómica atual do país, com setores vitais, como a saúde, a habitação e o ensino, em risco de colapsar”.

“Basta viver em Portugal e ter em atenção e, mais do que isso, sentir a realidade que nos rodeia para ter a certeza de que a situação catastrófica que presentemente presenciamos no nosso país, não entra na categoria das ‘fake news’”, aponta.

O único outro juiz que discordou da decisão do TC na declaração de inconstitucionalidade das cinco normas foi João Carlos Loureiro, que, numa declaração de voto, defende que, “num quadro de separação de poderes, é irrelevante o que cada juiz constitucional pensa sobre o mérito das soluções resultantes de opções político-legislativas”.

Deve “apenas nortear-se por uma avaliação jurídico-constitucional, num quadro marcado por uma relevante internormatividade, em que importam referentes internacionais e supranacionais”, refere.

No entanto, João Carlos Loureiro reconhece que a decisão foi tomada “em circunstâncias particularmente difíceis”, numa alusão ao facto de o Presidente da República ter pedido ao Tribunal Constitucional que se pronunciasse num prazo de quinze dias.

As reparações foram ao teatro

As pessoas woke estão sempre a presumir que a questão das reparações é sensível, difícil de abordar, e que só por isso o debate dessa questão não arranca na sociedade portuguesa, mas estão enganadas. Em primeiro lugar porque o debate já arrancou há muitos anos (começou em abril de 2017). Em segundo lugar porque é muito fácil debater a questão das reparações desde que se assuma, como há muito faço, que não há qualquer reparação a fazer e que se explique porquê. Ao contrário do que gente woke pensa, a questão não está adormecida ou ainda por tratar. Está, isso sim, digerida e resolvida pois tudo indica que os portugueses têm uma opinião formada sobre o assunto, que é a de discordar de pedidos de desculpa e de reparações. No nosso país pensa-se, ao invés, que os portugueses devem ser indemnizados pelo que deixaram em África.

Ou seja, a menos que haja uma inesperada mudança no rumo dos acontecimentos e das correntes de opinião o assunto das reparações é um nado-morto em Portugal e faço votos de que assim permaneça. É verdade que no verão de 2023 dez pessoas woke, entre as quais o conhecido activista Mamadou Ba, produziram uma pomposamente designada Declaração do Porto, ou seja, um caderno reivindicativo no qual, entre outras coisas, se exigia ao Estado português que pagasse indemnizações às pessoas lesadas pelo colonialismo. Esses woke puseram a dita Declaração a circular na Internet com vista à recolha de assinaturas. Esperavam, obviamente, uma grande adesão à iniciativa, mas o resultado foi tão escasso que ela não chegou a descolar. Na primavera seguinte houve quem pensasse que as infelicíssimas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa iriam reanimar o assunto. Organizaram-se dois ou três debates televisivos, mas a questão nunca ganhou tracção e voltou a desaparecer da ordem do dia e das preocupações dos portugueses. Actualmente, e salvo melhor opinião, as reparações são um tema de nicho, estritamente africano ou de extrema-esquerda, que tem alguma exposição na RTP África e em raras iniciativas de académicos conotados com o Bloco, e por aí se fica.

O desejo de insuflar vida num tema que está praticamente morto, ou desaparecido num gueto, foi a principal razão que levou Marco Mendonça, um actor, dramaturgo e encenador nascido em Moçambique em 1995 — é um jovem, portanto —, a pôr de pé a peça teatral Reparations, Baby!, algo que foi profusamente noticiado e que tenta, por via  de uma nova abordagem — o riso e o desafio destinados a provocar reflexão —, culpabilizar e responsabilizar os portugueses por determinados aspectos do seu passado colonial. Como o próprio autor nos diz, “pode ser produtivo saber que a culpa existe, e que ela pertence a alguém. Acredito que, mais do que nunca, as pessoas precisam de viver essa culpa, de a sentir, ou de empatizar com quem reclama reparações históricas (…) A culpa existe, e está, de certa forma, no ADN da construção do país e do império”, ainda que a população branca de Portugal se recuse a aceitá-lo. Os portugueses não seriam “heróis do mar” e sim “heróis do mas”, sempre a desculpar as atrocidades do império com os usos e costumes dos “homens desse tempo”, sempre afogados em séculos de mentiras.

Tanto quanto posso ver, e não obstante os seus eventuais méritos e a chancela do Teatro Nacional D. Maria II, a peça não suscitou a atenção e o debate que o seu autor desejava, o que talvez seja bom pois Reparations, Baby! coxeia um bocado do ponto de vista histórico. É claro que a arte não tem de ser historicamente irrepreensível e que uma peça de teatro pode valer por muitos outros aspectos que não o rigor histórico. Mas Marco Mendonça quer meter a História ao barulho, assume frontalmente que pretende, entre outras coisas, ensinar e informar, e preocupa-se em “lançar factos, dados históricos, estatísticas” para a sua audiência. O problema é que por vezes o faz sem ter os conhecimentos requeridos e sem saber exactamente do que está a falar. Atirar aos espectadores com o número de escravos transportados em navios registados com bandeira portuguesa, por exemplo, é enganador, a menos que se explique — o que Marco Mendonça não faz — o que era o chamado embandeiramento e qual a sua dimensão. Para quem não sabe, o embandeiramento era, e continua a ser, um estratagema seguido pelos armadores de navios como forma de contornarem proibições ou leis mais rigorosas e foi adoptado também no tráfico ilícito de escravos. O recurso fraudulento à bandeira portuguesa foi praticado em larguíssima escala pelos negreiros que actuavam no Brasil, quando a partir de 1830, por lei e pelos tratados, esse tráfico se tornou proibido nesse país. Todavia, o Brasil continuou a fazê-lo recorrendo à bandeira portuguesa, tendo, a coberto dessa habilidade, importado quase meio milhão de escravos negros. Acrescente-se a propósito, e pela milésima vez, que Portugal não “foi responsável pelo tráfico de quase 6 milhões de homens, mulheres e crianças”. Isso é falso. Esses são os números agregados de dois países: Portugal (4,5 milhões de pessoas) e Brasil independente (1,3 milhões).

As objecções que um historiador pode pôr à peça não se ficam pelos erros numéricos e pelas meias-verdades que ela transmite. Há um problema de fundo com a divisa ou filosofia de que a referida peça parte e em que assenta. De facto, Reparations, Baby! é proposta aos espectadores por meio da seguinte declaração da cantora sul-africana Miriam Makeba: “O conquistador escreve a História. Eles vieram, dominaram e escreveram. Não se espera que as pessoas que vieram para nos invadir escrevam a verdade sobre nós”. Esta frase e outras do mesmo género que frequentemente encontrarmos nas redes sociais de pessoas africanas e afrodescendentes são geralmente apresentadas sob a forma de axioma, como algo tão perfeitamente claro e evidente que dispensaria demonstração. Por vezes são difundidas com uma conotação ou carga reactiva. Há cinco anos, num artigo com vários equívocos, o escritor angolano João Melo, por exemplo, afirmou que “a história é escrita pelos vencedores. Mas também pode ser reescrita, quando os derrotados se rebelam”.

Estamos perante afirmações ou máximas erradas e, no caso de João Melo, duplamente erradas. Na verdade, a História não é escrita pelos conquistadores ou vencedores — que seriam, por suposta inerência, mentirosos —, mas sim pelos historiadores. Há bons e maus historiadores, os que são isentos e os que são politicamente interessados em virar as coisas num certo sentido. Há bons historiadores negros — Orlando Patterson, por exemplo — que, no essencial e no que se reporta aos factos, dizem o mesmo que os bons historiadores brancos, o que não é de estranhar porque a História é escrita com base em documentos que podem ser verificados e estudados por qualquer pessoa, seja ela descendente de vencedores ou de vencidos. Dito isto, subsiste uma importante pergunta: poderíamos construir e contar uma outra História como é o manifesto desejo de muitos africanos, de Miriam Makeba ao autor da peça Reparations, Baby? Poderíamos, sim, se houvesse novas questões a colocar aos documentos existentes — e se eles fossem capazes de nos dar novas respostas — e sobretudo se houvesse novos documentos autênticos, de preferência produzidos pelos povos conquistados ou dominados, que permitissem contestar ou contradizer as versões que agora temos e aceitamos como boas.

Mas haverá esses documentos? Não parece, ou pelo menos ainda não foram encontrados, e essa é uma limitação não apenas de boa parte da história de África, mas das histórias de todos os povos sem escrita, cujas existência, características, formas de actuação e condutas políticas e sociais chegaram até nós por via do que os povos letrados que com eles contactaram nos transmitiram. O que sabemos dos povos do sul de Angola chegou até nós por intermédio do que os portugueses deles escreveram; o que conhecemos dos Hunos foi-nos transmitido pelos Romanos; etc.

Trata-se de uma inevitabilidade sempre que estão em contacto ou em confronto povos com e sem escrita, que faz com que a informação obtida sobre os que não sabem escrever e não nos deixaram as suas próprias narrativas seja parcial. Mas isso não significa que seja falsa, ao contrário do que Miriam Makeba, João Melo e muitíssimos africanos supõem. Aliás, afora as questões numéricas ou mensuráveis, os historiadores lidam sempre ou quase sempre com informações parciais, pessoais, unilaterais, que têm de filtrar e descodificar. É esse, em boa medida, o seu trabalho. João Melo diz que a História pode ser reescrita “quando os derrotados se rebelam”, mas está equivocado e a equivocar-nos. Nos casos em que isso é feito, quando os povos em rebelião chegam ao poder e invertem ou alteram a narrativa fazem-no por razões de conveniência política e ideológica e não por motivos historiográficos ou científicos. Nesses casos a História deixa de o ser, isto é, deixa de ser uma forma isenta de conhecer o passado e converte-se num logro e em propaganda, numa História militante e revanchista. A História só se reescreve quando se lança mão de novos conceitos, se utilizam novos documentos ou se enfrentam novos problemas.

É por isso falso que, à falta desses ingredientes, os africanos apologistas de reparações possam escrever uma história substancialmente diferente da que até agora foi escrita. Quando, para contornarem o obstáculo da lacuna documental, recorrem à fantasia e nos dão opiniões, provocação, humor ou representação teatral salpicada de dados históricos avulso, como acontece na peça Reparations, Baby!, estão a propor-nos um mundo ficcional, a espicaçar as nossas emoções, a fazer activismo e intervenção política. Tudo isso é perfeitamente legítimo, claro, mas não confundam as coisas: não é História e geralmente nem sequer é verdade.

Dispensa para amamentação. Querer ir mais além

Parto do princípio de que o debate em torno das alterações ao código do trabalho é motivado por um desejo de maior proteção da maternidade, de melhores condições para a amamentação e aleitação, de preocupação com o bem estar das famílias. Também tenho esse desejo.

Assim sendo, se tantos estão de acordo, haverá condições políticas e sociais para querer ir mais além, na defesa de políticas públicas para a família, para a proteção da infância, para a conciliação família-trabalho.

Habitualmente atenta a estes temas, confesso que levei tempo a perceber o que estava em jogo.

Entre as declarações da Sra. Ministra do Trabalho, as reações dos partidos políticos da esquerda à direita, da Ordem dos Médicos e de outros parceiros sociais, compreendi que havia alguma confusão a gerar perplexidade e reações excessivas. Mais uma vez, na bolha mediática, mais ruído do que esclarecimento.

Senão, vejamos:

Na redação do Código de Trabalho que está em vigor (artigo 47º, parágrafo 1) “a mãe que amamenta o filho tem direito a dispensa de trabalho para o efeito, durante o tempo que durar a amamentação.” A nova redação do mesmo parágrafo  determina uma limitação no tempo de amamentação – “até a criança perfazer dois anos”.

Trata-se, pois, da introdução de uma clarificação quanto ao tempo de amamentação, em linha com os pareceres emitidos pela Ordem dos Médicos, pela Associação dos médicos de família e pela DGS.

A outra questão é a obrigatoriedade de apresentação de atestados médicos que comprovem a amamentação, necessidade que é criticada pelos profissionais de saúde e outros actores sociais.

Estas duas alterações estão a provocar conflito e crítica. Considera-se uma perda de direitos, um retrocesso, uma medida contra a família. Mais uma vez, uma comunicação menos cuidada, gera dificuldades difíceis de ultrapassar.

Acredito que na concertação social se pode trabalhar um entendimento, e que será possível alcançar um consenso.

Um compromisso possível seria:

  1. a aceitação da limitação do tempo de amamentação;
  2. a aceitação de um compromisso de honra da mãe de que está a amamentar, sem necessidade de atestados médicos.

Estou certa de que na Assembleia da Republica, também se poderá trabalhar um entendimento político que permita ultrapassar as divergências que surgiram.

Tenhamos consciência de que é preciso muito mais, num país com graves alterações demográficas e com uma taxa de natalidade das mais baixas do mundo!

Faltam crianças. Faltam famílias com filhos. Não porque não os desejem, mas porque é muito difícil.

Quanto mais uma sociedade e uma cultura se “habitua” a não ter filhos, mais isso a reforça e os filhos não surgem.

Bem sei que há problemas muito difíceis de resolver, como os problemas da habitação, dos salários baixos, do trabalho estável.

Mas há caminhos que se podem percorrer já, se queremos ir mais longe.

Duas sugestões.

Alargar a Creche Feliz para TODAS as crianças. Os equipamentos de guarda de crianças têm de ser próximos e acessíveis. As dificuldades na procura de vagas em creches, são um dos maiores obstáculos que os jovens pais enfrentam.

Redução do tempo de trabalho para pais ou mães nos primeiros 2 anos de vida de um filho, sem depender da amamentação ou aleitação. Seria muito mais justo, eficaz, paritário. Um fortíssimo sinal para a sociedade. O tempo passado com crianças nos primeiros anos de vida é essencial no seu desenvolvimento físico e emocional.

Ao governo, peço que ouse. À Assembleia da República, que legisle. À sociedade e às empresas, lembro que as condições de trabalho também são um investimento.

A minha moral é superior à tua (4)

O Partido Republicano (GOP – Grand Old Party) passou por uma metamorfose que o transformou de bastião do conservadorismo económico num movimento cultural radicalizado. O que outrora foi um partido de elites económicas e conservadoras, uma força política tradicional, com raízes na defesa do livre mercado e na contenção fiscal, tornou-se gradualmente um movimento cultural radicalizado, onde religião, ressentimento e populismo se cruzam de forma explosiva definindo as prioridades políticas. Esta evolução – ou mutação – começou com Richard Nixon e consolidou-se com Donald Trump, envolvendo uma aliança explosiva entre os evangélicos, a extrema-direita e agora também com tecnocratas como Peter Thiel.

O ponto de inflexão começou com a chamada “Estratégia do Sul” de Richard Nixon, no início dos anos 1970. Ao procurar conquistar eleitores brancos sulistas descontentes com Martin Luther King, Jr., e os avanços dos direitos civis, Nixon mobilizou uma retórica de “lei e ordem” que apelava a uma classe média assustada, ansiosa por estabilidade. Embora mantivesse distância dos evangélicos – ainda maioritariamente apolíticos – e da extrema-direita organizada, mas marginalizada (John Birch Society), foi com Nixon que se iniciou a ponte entre o conservadorismo cultural e a política partidária, reforçando o papel da identidade, incluindo religiosa, na agenda republicana.

A direita religiosa encontrou um catalisador na decisão Roe v. Wade (1973), que permitiu o aborto nos EUA. O Pastor Jerry Falwell e a sua “Maioria Moral” transformaram a moral religiosa num poderoso instrumento eleitoral. Os evangélicos deixaram de ser espectadores e tornaram-se protagonistas, exigindo uma plataforma política que combatesse não apenas o aborto, mas também a secularização da sociedade americana. E o GOP começou a absorver esse eleitorado. Adaptando-se às suas exigências, adoptou a agenda religiosa e moldou a sua narrativa em torno da chamada “guerra cultural”. Ao mesmo tempo, a extrema-direita reorganizou-se em torno de causas como a oposição aos impostos, à imigração e ao intervencionismo externo, desafiando o establishment moderado do partido.

Ronald Reagan não foi apenas um presidente carismático – foi o verdadeiro fundador do Partido Republicano moderno. Com ele, os evangélicos passaram de aliados a protagonistas. Reagan prometeu defender valores tradicionais, combater o aborto e restaurar a presença da religião na esfera pública. Apesar do seu pragmatismo em várias decisões, conseguiu unir evangélicos, conservadores económicos e anticomunistas numa coligação ideológica duradoura, deslocando o partido definitivamente para a direita. Embora não fosse um religioso fervoroso, Reagan prometeu restaurar a influência da fé cristã na esfera pública e nomeou juízes alinhados com a agenda religiosa. O seu legado é visível ainda hoje na estrutura ideológica do GOP, sobretudo no modo como a política é travada em torno de valores morais, e não apenas de princípios económicos.

A presidência de George H. W. Bush revelou o início do declínio do centro moderado republicano com os evangélicos a representar cerca de 40% dos eleitores nas primárias do GOP. Apesar de herdar a coligação de Reagan, Bush Sr. não conseguiu manter a fidelidade da base evangélica e nacionalista. O aumento de impostos, a procura do bipartidarismo, combinados com uma postura centrista nas relações internacionais, gerou tensões internas. O desafio de Pat Buchanan nas primárias de 1992 e o extremismo de Newt Gingrich e do seu “Contrato com a América” consolidaram a ascensão da extrema-direita fiscal e do sentimento antigovernamental, lançando as sementes do futuro movimento Tea Party.

A eleição de Barack Obama, em 2008, foi um catalisador poderoso da radicalização republicana. Para muitos sectores conservadores, Obama personificava tudo o que o GOP rejeitava: multiculturalismo, progressismo e intervenção estatal. Os evangélicos mantiveram a sua influência, mas foi a extrema-direita que mais cresceu. O Tea Party, nascido da hostilidade a Obama, à reforma da saúde e à crescente diversidade do país, consolidou um discurso populista, fiscalmente conservador e socialmente reacionário. Figuras como Ted Cruz e Rand Paul combinaram religião, libertarianismo e nacionalismo num discurso político inflamável. Infelizmente, essa retórica desfigurou o GOP que passou a ser beligerante e intransigente.

Donald Trump representou a fusão definitiva entre superioridade moral da fé e o fanatismo. Divorciado e sem tradição religiosa, a “anomalia” Trump converteu-se num ícone para os cristãos conservadores, estabelecendo um alinhamento quase incondicional ao prometer defender a “liberdade religiosa”, nomear juízes antiaborto e atacar ferozmente o politicamente correcto e o wokismo. A extrema-direita encontrou nele o seu paladino: nativismo, protecionismo, teorias da conspiração e desprezo pelas instituições democráticas tornaram-se norma. O ataque ao Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, foi a tradução prática dessa radicalização.

Peter Thiel, alguém que diz ser libertário e que já não acredita que a liberdade e a democracia são compatíveis, tem tido um papel fundamental na reconfiguração ideológica do GOP. Ao longo dos anos, Thiel tornou-se numa infraestrutura de poder que molda discretamente decisões estratégicas no seio do GOP (convém não descurar o papel da Palantir Technologies no Estado norte-americano). Considerando que a democracia liberal é um obstáculo à eficiência do poder, Thiel, através de think tanks, plataformas alternativas e publicações, promove uma agenda que desafia os pilares da democracia e é um dos principais promotores da chamada “Nova Direita”. Ao apoiar candidatos como J.D. Vance e Blake Masters, ao difundir uma visão política que mistura libertarianismo tecnológico, nacionalismo autoritário e cepticismo democrático, Thiel não é apenas um mero financiador. É um ideólogo que procura definir futuros através de narrativas.

Simultaneamente, o Project 2025, da Heritage Foundation, apresentou um plano para reformular por completo o aparelho estatal, propondo abertamente a substituição funcionários públicos por nomeações de pessoas leais, o desmantelar agências federais, a criminalização do aborto e a promoção de uma visão religiosa no governo. Trata-se de uma engenharia institucional, que pretende tornar irreversível a transformação iniciada por Trump. Por outras palavras, é um manual para a captura política, administrativa e cultural dos EUA que põe em causa a secularização e democracia na América (ao menos, são claros e transparentes sobre o que pretendem).

Em 2025, já não se pode falar de Partido Republicano nos moldes históricos. Os princípios fundadores do GOP – como o respeito pela Constituição, o equilíbrio fiscal, o federalismo e a contenção do poder executivo – foram substituídos por uma lógica de culto à personalidade e confronto permanente. O movimento MAGA, liderado por Trump, absorveu o partido, redefinindo-o como uma plataforma de vingança cultural, autoritarismo populista e superioridade moral religiosa.

Esta substituição não é apenas simbólica – é estrutural. A MAGA tornou-se a nova identidade política da direita americana, com Trump como figura de culto. A fidelidade é hoje critério de sobrevivência política dentro do partido. Não sei se a MAGA terá futuro. Nem JD Vance, nem Kari Lake, têm carisma suficiente para substituir Trump. Independentemente disso, neste momento, o GOP não existe. O que existe agora é o MAGA, algo completamente distinto, até mesmo contraditório aos princípios e valores que foram defendidos pelo partido republicano.

Após décadas de cedência ao fanatismo, o GOP é um partido dominado por guerras culturais e religiosas, ressentimento identitário e populismo autoritário. Moderados como John McCain ou Mitt Romney foram esquecidos ou marginalizados. Até o anticomunismo de Reagan foi praticamente descartado. E as redes sociais amplificam vozes radicais que incitam à exclusão, à confrontação e à perseguição de dissidentes. O partido, outrora defensor de valores democráticos, tornou-se adversário desses mesmos princípios.

O GOP não está apenas radicalizado – está profundamente reconfigurado. O cruzamento entre religião organizada, tecnologia autoritária e engenharia institucional tornou-o num partido que desafia os fundamentos da democracia liberal. Esta transformação, embora gradual, foi cuidadosamente alimentada e dificilmente será revertida. Mas não é impossível consegui-lo.

Post-Scriptum:

Eu leio e ouço o que dizem Peter Thiel e outros e recordo-me de Mussolini: “We were the first to state, in the face of demoliberal individualism, that the individual exists only in so far as he is within the State and subjected to the requirements of the State and that, as civilisation assumes aspects which grow more and more complicated, individual freedom becomes more and more restricted.” – To the General Staff Conference of Fascism, in Discorsi del 1929, Milano, Alpes, 1930, p. 280).

Fisco moçambicano nega diferendo fiscal com a Galp sobre 162 milhões de euros

O presidente da Autoridade Tributária (AT) de Moçambique rejeitou esta sexta-feira haver um diferendo com a petrolífera portuguesa Galp, de 162 de milhões de euros, conforme conhecido publicamente.

Questionado pela Lusa à margem de um evento da AT, em Maputo, e sem adiantar mais comentários, Aníbal Mbalango garantiu que aquela autoridade “não tem diferendo” com a petrolífera portuguesa, no negócio da venda de uma participação em Moçambique.

O litígio fiscal, que o Centro de Integridade Pública (CIP) classifica como um “teste à soberania económica de Moçambique”, surgiu na sequência da venda, em março, da participação de 10% da Galp à petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos (ADNOC), na Área 4 da Bacia do Rovuma.

Numa análise ao que descreve como diferendo, o CIP recorda que a AT “notificou a petrolífera para o pagamento de um imposto sobre as mais-valias no valor de 162 milhões de euros, equivalente a 12 biliões de meticais”, montante “sobre o qual a própria Galp confirma ter sido notificada no seu relatório oficial aos acionistas”.

“Este valor resulta da aplicação da taxa efetiva de 17,6%, prevista no regime fiscal petrolífero moçambicano, a uma mais-valia estimada pela AT em cerca de 920 milhões de euros. Em flagrante contraste, a Galp contesta a liquidação alegando uma mais-valia tributável de apenas 26 milhões de euros, um valor 35 vezes inferior ao calculado pela AT”, lê-se no relatório do CIP.

Para esta organização da sociedade civil criada em 2005 e que monitoriza e promove a integridade e a transparência dos poderes públicos e do Estado, a posição da Galp “é ainda mais questionável quando, no mesmo período, a empresa reporta aos seus acionistas um ganho contabilístico de 147 milhões de euros com a mesma transação, evidenciando uma gritante inconsistência entre o que declara ao fisco e o que comunica aos seus investidores”.

Acrescenta que a decisão da Galp, “de recorrer à arbitragem internacional, no Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID) do Banco Mundial, previsivelmente com base numa cláusula de estabilização do Contrato de Concessão de 2007, representa uma tática conhecida como ‘guerra de desgaste’”.

“Esta estratégia visa explorar a profunda assimetria de poder financeiro entre a empresa e o Estado moçambicano, forçando o país a aceitar um acordo desfavorável para evitar custos legais exorbitantes, estimados de forma conservadora entre 6 e 8 milhões de dólares. Estes custos representam entre 3,4% e 4,6% do valor total do imposto devido”, refere-se ainda no relatório em que o CIP analisa a arquitetura da transação, a robustez da base legal moçambicana e a “provável estratégia de litigância da Galp”.

“Conclui-se que a posição de Moçambique é legalmente sólida e alinhada com as melhores práticas internacionais de combate à erosão fiscal, ou seja, à redução da base tributária através de esquemas de elisão fiscal abusiva. No entanto, a capacidade do país para fazer valer os seus direitos soberanos exige uma resposta firme do Estado, um escrutínio atento da sociedade civil e uma atuação responsável dos parceiros internacionais, incluindo o Estado português que é acionista de referência da Galp”, aponta ainda o CIP.

A Lusa noticiou em 4 de julho que o Governo moçambicano espera o pagamento de impostos sobre mais-valias pela Galp em 2025 e 2026, da venda da participação de 10% no consórcio na Área 4.

“Em 2024, a empresa Galp anunciou a intenção de vender a sua participação de 10% na Área 4 à companhia petrolífera nacional dos Emirados Árabes Unidos, ADNOC. Espera-se que algumas transações relacionadas com esta operação se concluam em 2025 e 2026, o que deverá gerar pagamentos de imposto sobre mais-valias”, lê-se no Cenário Fiscal de Médio Prazo, aprovado em junho, em Conselho de Ministros.

A Área 4 é operada pela Mozambique Rovuma Venture (MRV), uma joint venture em copropriedade da ExxonMobil, Eni e CNPC (China), que detém 70% da concessão.

A Galp anunciou em 28 de março último que concluiu a venda da sua participação de 10% na Área 4 em Moçambique por 881 milhões de dólares (816 milhões de euros) à XRG, da Abu Dhabi National Oil Company (ADNOC).

Apreendidas 120 artes de pesca ilegais em fiscalizações de captura de polvo no Norte

A Polícia Marítima apreendeu 120 artes de pesca caladas ilegais e 10 armadilhas durante uma fiscalização com foco na captura de polvo, interdita até 15 de agosto na região Norte do país, informou hoje a Autoridade Marítima Nacional (AMN).

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Em comunicado, a AMN referiu que realizou entre terça e quinta-feira ações de fiscalização dirigidas à atividade de pesca, com foco na captura de polvo, atualmente interdita até 15 de agosto, devido ao período de defeso, ao largo de Aveiro, Viana do Castelo e ainda na área de Leixões (Matosinhos) e Póvoa de Varzim.

“Das ações de fiscalização, resultou a apreensão de um total de 120 artes de pesca caladas ilegais, denominadas por “alcatruzes”, e 10 armadilhas, tendo os cerca de 50 polvos capturados e os alcatruzes que continham ovas no interior sido devolvidos ao habitat natural. Foram ainda levantados diversos autos de notícia”, refere a mesma nota.

Segundo a AMN, estas iniciativas têm como principal objetivo intensificar o controlo do cumprimento do período de defeso da captura do polvo, contribuindo para a proteção e sustentabilidade dos recursos marinhos, em alinhamento com as diretrizes de conservação estabelecidas pelas autoridades competentes.

Esta ação contou com a participação de elementos do Comando Local da Polícia Marítima de Aveiro, de Leixões e de Viana do Castelo.

​Papa recebe quadro de Santo Agostinho com um anjo

O Papa Leão XIV recebeu esta sexta-feira um quadro com uma representação de Santo Agostinho, três meses após ter sido eleito pontífice da Igreja Católica.

Uma delegação dos Museus Vaticanos encontrou-se com o Papa para lhe entregar a pintura onde aparece Santo Agostinho e um anjo, uma obra de um artista anónimo do século XVIII.

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O quadro tem um significado particular. O Papa Leão XIV é membro da Ordem de Santo Agostinho e no seu primeiro discurso apresentou-se como “filho de Santo Agostinho”.

De acordo com o site Vatican News, a pintura restaurada é uma cópia gratuita da figura de Santo Agostinho, que aparece no fresco da Disputa do Santíssimo Sacramento, pintado por Raffaello Sanzio, em 1509, no Quarto da Signatura, no Vaticano.

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