Uma aventura no SNS


Pre scriptum. Na minha época de universitária uma das minhas companheiras de casa estava a tirar um curso de gestão hospitalar. O tutor dela, médico, antigo ministro, catedrático, pessoa reputadíssima na área da saúde, ensinou-lhe “que o maior problema do sistema é que quem decide sobre o sistema não frequenta o sistema”.
Sentia um ardor no estômago e no tórax há uns meses. Durante umas ecografias de rotina, detetaram-me lesões no fígado de natureza indeterminada.
A médica que me examinava perguntou quando veria o meu internista.
– “Daqui a um mês”.
– “Não pode ser, tem de antecipar” e escreveu o relatório em que prescrevia necessidade de avaliação mais apurada através de TAC ou ressonância.
Claro que a dor imediatamente agravou e um historial de saúde familiar paterno complicado no estômago e pâncreas fez o resto.
O internista estava de férias, a cobertura do ambulatório esgotou, liguei para a linha Saúde 24, 58 minutos à espera. Atendem, mandam ligar outra vez e escolher outra opção, não passam chamadas internamente. Ligo, atendem, não é esta a opção certa, “- mas a sua colega disse que sim”, “- mas não”, desligo, volto a ligar, volto à opção inicial. Expus a situação outra vez, perguntam-me se estou no meu distrito, nem quero saber o que isso quer dizer, imagino que a Saúde 24 atua como se todos os distritos fossem Lisboa, ligados por comboios, autocarros, barcos, tenham uber e táxis a toda a hora. Marcam-me consulta no meu centro de saúde nessa mesma tarde.
O médico de turno viu o relatório e prescreveu duas TACs porque os centros de saúde não podem prescrever ressonâncias (sic), para isso tem de ir a uma consulta da especialidade que pode demorar um ano, sei lá, muito tempo (sic). Quando tiver o resultado das TACs faz como fez hoje, liga à Saúde 24 para marcar nova consulta (sic outra vez).
“- Outra vez? Mais uma hora à espera”?
“- Está aqui e a consulta é de borla”
“- De borla, não. Pago impostos”.
Não tenho médica de família. A minha reformou-se há uns meses, há tantos quantos há um substituto nomeado que ninguém quer explicar porque ainda não está ali a trabalhar.
Fiz as TACs dois dias depois e no relatório o médico concluiu que tinha lesões quísticas no pâncreas, de tamanho considerável, sem evidentes worrysome features por esta técnica de imagem, recomendando-se avaliação por ressonância.
Nova chamada para a Saúde 24, explico isto tudo, encaminha-me para a urgência do hospital.
Entro na urgência depois do meio-dia, sou triada depois da uma, mostro as TACs, o enfermeiro lê o relatório e diz-me que “quem procura acha”, põe-me uma pulseira amarela, sou uma doente urgente. Sentam-me numa sala, muitas pessoas mais velhas à minha volta e isso é desolador, ver o fim assim, de qualquer maneira oiço muitas reclamações, pessoas que estão nesta sala desde as nove horas, googlo para saber qual é o tempo em que devo ser atendida, tenho pulseira amarela, uma hora, está quase. Estão quatro médicos escalados para a urgência, mas não está lá nenhum.
Quatro horas depois aparece uma médica que me examina ali mesmo na sala.
“ – Vejo que trouxe uns exames, devia ter ido ao Centro de Saúde, o médico de lá ainda não pôs os resultados no sistema”, respondo que a Saúde 24 me mandou para ali, abro o relatório das TACs no meu telemóvel, ela faz scroll até à conclusão, tira uma fotografia, faz apalpação e perguntas a que não me dá tempo de responder, não está interessada. Vem a última pergunta: “há quanto tempo não faz análises?”
“- Há três semana, um mês…, tenho-as comigo.”
“- Não interessa, um ano?, um mês?, isso é o que quero saber. Vai fazer análises.”
Prescreve-me um Benuron e um calmante, não tomo o calmante. Fiz análises e, uma hora depois, a enfermeira diz-me que a médica mandou fazer dois Raios X, aos mesmos sítios a que tinha feito as TACs. Não sou médica, mas parece-me que a TAC é um exame mais completo. Pergunto-me porque é que os exames feitos recentemente, o resultado das TACs tem um dia!, por entidades credíveis e com quem o SNS até trabalha, não podem ser usados, e pergunto à enfermeira qual é o sentido daquilo. Não me soube responder. Isto não é um desperdício de recursos incompreensível? Pedi para falar com a médica, a enfermeira procurou-a nos gabinetes onde não estava e depois deixou-me à porta de outra sala, onde a médica sim, estava, e disse-me que pedisse aos colegas para a chamarem. Mandaram-me regressar à minha sala, que a médica tinha dito para aguardar lá. Ando para trás e para a frente uma hora, entretanto vem uma auxiliar chamar-me porque tinham sido pedidos dois transportes para mim para o Raio X (um transporte é a caminhada acompanhada pela auxiliar da sala de espera até à sala do exame). Pouca gente desta vez, 45 minutos depois continuo sem ser chamada. Uma enfermeira dirige-se a mim, pergunta-me se estou à espera de algum exame, digo o que se passa, vê no sistema, nenhum exame está pedido em meu nome. Regresso à sala da urgência, a enfermeira confirma no sistema que a médica pediu os transportes, mas ainda não os exames. Peço para falar novamente com a médica, digo que me quero ir embora. A enfermeira responde que é melhor falar com a médica para não constar do registo que abandonei a urgência.
“- Abandono, que abandono? Não estou a abandonar, a médica é que me abandonou.”
A enfermeira leva-me à porta da sala onde está a médica e diz-me que peça aos colegas para a avisarem que quero falar-lhe.
“- Diga-lhe que se vai embora, pode ser que tenha efeito.”
Aparentemente tem porque a médica manda-me esperar à porta.
Olho para a cena, uma mesa enorme no meio da sala, talvez dez médicos e possivelmente enfermeiros de cada lado a escreverem em computadores. Com quanta burocracia terão os médicos de lidar e quanto tempo rouba à efetiva prestação de cuidados de saúde?
Uma hora depois a médica vem ter comigo, entrega-me um envelope, dá-me alta.
Digo-lhe que se esqueceu de pedir no sistema os Raios X, responde-me que tinha as TACs e que não valia a pena. Olho com assombro, isso ela já sabia há seis horas!
“- E as conclusões das TACs?”
“ – Não vejo lá nada, mas essa não é a minha especialidade.” Estou incrédula, seis horas depois diz-me que não é especialista na minha doença.
“ – Então porque não me encaminha para um especialista?”
Não responde e entrega-me um envelope fechado. Diz-me para telefonar para a Saúde 24 para ir novamente ao meu Centro de Saúde mostrar ao médico os resultados das TACs. Acrescenta que, se continuar com dores e for, por exemplo, de férias para Tavira, posso ir lá ao Centro de Saúde, entrego a carta ao médico de serviço e serei atendida (sic). WTF?
Já em casa abro o envelope e leio o “Diário Clínico”. Diz que neguei todos os sintomas sobre que me perguntou, com termos técnicos que desconheço, mas há três sobre os quais mente: náuseas, tonturas e irradiação do queimor. A menos que o “atualmente” que antecede a constatação da minha negação tenha a ver com o exato momento em que me examinou, porque efetivamente enjoada não estava naqueles precisos cinco minutos.
Um médico amigo explica-me que talvez o médico do centro de saúde me estivesse, na verdade, a manter no sistema porque, se se quisesse ver livre de mim, encaminhava-me para a especialidade e eu desaparecia do radar até ter consulta, um ano talvez.
Vou à CUF, encontro o meu internista no bar, digo-lhe o que se passa, ele vê o relatório, telefona-me e diz-me que tenho lesões, que podem ser benignas, mas também podem ser malignas, que o melhor era fazer ressonância abdominal pélvica para despistar e ver o que faço a partir daí.
“ – Quão preocupada devo ficar?”
“ – Moderadamente”.
Marco as ressonâncias. Há um mês que o Tony Soprano, deitado na máquina da ressonância magnética, a perguntar à mulher “terei cancro?”, não me sai da cabeça
– “Já vamos saber”, responde ela.
Na manhã em que entrego este artigo soube, graças a Deus — e aos meios que me deu–, que não tenho.
Sei também que, para o SNS, as análises feitas fora do SNS não valem, as TACs também não, as ressonâncias valerão? Se detetarem algo mau não importa, no SNS volta-se à estaca zero? Um doente paga do próprio bolso, leva os resultados ao SNS e o SNS manda repetir não porque tem dúvidas, mas porque sim. O contribuinte, que até pode ser o mesmo doente, paga outra vez.
Sei ainda que, não sendo doente crónica, nem estando grávida ou tendo menos de 12 anos, não sou prioritária para o SNS. Entendo, como os recursos são escassos temos de estabelecer prioridades. O que não entendo é como é que isso não se reflete nos impostos que pagamos. O valor das deduções à coleta com a saúde é uma brincadeira, se tivermos em conta os custos com a saúde.
Acresce que, mesmo que alguém tenha todo o dinheiro do mundo, não consegue comprar nos privados serviços que só o SNS pode prestar. Mas o SNS é como uma empresa de que somos acionistas, mas a que não temos acesso.
Postscriptum
Os seguros de saúde são cada vez mais caros para terem coberturas decentes e fazem exigências despropositadas. A seguradora pediu-me recentemente os comprovativos do multibanco que já não se usam, já não chega a fatura, e sucedem-se as mensagens a dizer que os documentos comprovativos das despesas estão ilegíveis.
Os grupos de saúde privados têm cada vez menos acordos com as seguradoras, já para não falar com o SNS: médicos, exames, intervenções, tudo e todos com cada vez menos acordos com as seguradoras. Somos tantos os portugueses com seguro de saúde, porque o SNS não responde atempadamente às aflições, que já nem os privados têm capacidade. Os médicos dizem que as seguradoras pagam cada vez menos, embora cobrem cada vez mais. Não lhes compensa o volume de trabalho. Os telefonemas das enfermeiras nos dias anteriores para a preparação de atos médicos deixaram de acontecer, as assistentes telefónicas não dão resposta às dúvidas, as faturações aparecem erradas a maior parte das vezes.
Os tempos de espera no SNS são incomportáveis, a maior parte das vezes não por uma questão de vida ou de morte, mas porque condenam as pessoas a uma má qualidade de vida enquanto não são tratadas. E isso é morrer um pouco, não é?
Tanta capacidade instalada porque é que não está integrada? Porque é que andamos a pagar a tantos agentes diferentes e as respostas de todos são cada vez mais deficientes?
A medicina preventiva salva vidas, mas se não formos doentes crónicos raramente somos chamados para uma consulta de rotina. Temos de estar a morrer para sermos tratados?
O que estamos a pagar afinal?