“Não gastes tudo em vinho!”

Andaram todos na escola secundária, mas há amigos e conhecidos dos meus filhos que frequentaram o “liceu”. A verem-se de ano a ano, nesta altura de férias, uma delas comentava que encontrara uma professora do “liceu”, mais aquela amiga do “liceu”, e eu estive quase, quase, para lhe dizer: “No liceu andaram os teus avós, se é que pertenciam a uma classe privilegiada e puderam fazer mais do que a 4.ª classe…” Ia dizê-lo de forma ríspida porque a conversa já ia longa e começara com “eu tive bebé no privado porque assim o pai passou lá a noite, eu sei que me mandariam para o público se as coisas se complicassem, mas temos seguro e as condições eram melhores”, “eu acho que não faz qualquer sentido pagarmos tantos impostos”, “a M. está emigrada, está muto bem, tem uma casa óptima, não é a mesma coisa que esses imigrantes que vêm para aí, a dormir às dezenas no mesmo quarto”.
Os novos meninos dos liceus, ao contrário dos seus avós, são uns ignorantes, que desconhecem a história do seu país (por isso, estão dispostos a votar para a repetirmos), e das suas famílias (ou preferem ignorá-la porque “não é bem” comentar que a avó ia descalça para a escola); e se eles conseguiram ter um curso superior (esquecem-se das ambições dos pais, das oportunidades que estes lhes proporcionaram, dos sacrifícios que fizeram), todos conseguem. Se eles conseguem pagar um seguro de saúde, se vão conseguir pagar o colégio, para quê pagar impostos? Os outros que paguem, ignorando que os avós — que se fosse no “antigamente é que era bom” já tinham morrido —, nunca descontaram o suficiente e sorvem recursos em pensões de viuvez, cirurgias às ancas, tratamentos oncológicos, lares… Esquecem-se que viver em sociedade é sermos solidários com todos.
O nosso umbigo, estamos concentrados no nosso umbigo. Um pouco como Carmen Garcia, que esta semana volta ao tema da amamentação, para contestar o artigo de Lígia Morais, e para defender um ponto muito importante — todos as mães e pais deveriam ter mais tempo para os seus filhos, até mais tarde. Contudo, Carmen parte da premissa errada, que é a de retirar direitos a quem quer e pode dar de mamar depois dos dois anos. No início desta discussão — começada pelo Governo para estarmos há duas ou três semanas a discutir mamas, em vez de olharmos para os reais direitos que o Executivo quer tirar aos trabalhadores —, contava a cronista num podcast do Observador, que enquanto andava em consultas com um dos filhos (ela e o pai tinham dificuldades para conciliarem as suas vidas com os horários de trabalho), havia uma colega que tinha o horário reduzido por causa da amamentação e Carmen a encontrava no ginásio. A conclusão é a mesma que a da ministra e da sua ex-assessora: há prevaricadoras.
Confesso que ouvi e achei engraçado porque me lembrei da Maria Filomena Mónica, há muitos anos, numa entrevista na rádio, a comentar como, no tempo dos liceus, as senhoras gostavam de ter os seus pobrezinhos, davam-lhes o que não queriam, as roupas que já não serviam aos maridos e aos meninos, algum dinheiro e diziam-lhes como o gastar — “não gastes tudo em vinho!”, conhecem esta expressão? Assim estava Carmen, a colega tinha direito a duas horas, possivelmente dava de mamar ao filho e ainda lhe sobrava tempo para ir ao ginásio, preferia fazê-lo a estar com o miúdo — eu preferia ficar com o meu filho porque não sou amiga do exercício físico… E então, que temos nós com isso?
“Não gastes tudo em vinho!” Porque a colega ia ao ginásio — o que estaria a contribuir para o seu bem-estar, o do filho e até para o regressar ao trabalho com mais energia e boa disposição —, vamos retirar o direito a amamentar a toda a gente? Não, vamos exigir, como a própria Carmen Garcia sugere, mais direitos para os pais. Vamos exigir que o país tenha mais políticas de apoio à família. Temos de exigir que a fiscalização funcione para que não haja casos como o da psicóloga que foi posta a trabalhar a 30 km de casa, quando disse à entidade empregadora que tencionava gozar a licença de amamentação — o PÚBLICO fez uma análise a decisões judiciais feitas em tribunais superiores e não descobriu mães prevaricadoras, mas sim, empresas públicas e privadas que não cumpriram a lei.
“Um país só é um país desenvolvido a sério, quando todas as crianças, desde o nascimento, até aos seis anos, tenham creches, infantários, educadores da pré-primária e professores. Só depois coloco os psicólogos. Numa das crónicas que fiz para a Caras, no início dos anos 1990, dizia que a gravidez é um problema político e continua a ser. Como se pode querer que as pessoas tenham mais filhos, se depois não lhes são dadas condições. Como é que uma creche e um infantário fecha às 15h? As crianças estão muitas horas nos telemóveis, pois estão, mas de quem é a culpa? Somos nós, como sociedade, que somos responsáveis por isso… Os pais não têm tempo para os filhos.”
Quem o diz é Isabel Leal, que criou o Serviço de Psicologia da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, é uma das precursoras da profissão no país e é reitora do ISPA. A jornalista Rita Caetano fez-lhe uma entrevista de vida e, a dada altura, pergunta-lhe se em temas como os direitos das mulheres não estaremos a regredir. “Não sei se há regressão, mas o mundo está complicado”, começa por responder. “Sim, há homens e mulheres muito saudosas, sobretudo, mulheres jovens. Portanto, é uma busca de um tempo perdido que de facto é imaginário, não existe, nunca existiu e não vai existir”, continua, acrescentando que não acha que seja um retrocesso, mas também não é uma evolução. “É uma nova linha que parte da insatisfação e, mais uma vez, de se não saber distinguir aquilo que são respostas que têm de ser dadas, no individual, daquilo que são respostas colectivas. As pessoas não são educadas para saber fazer isso e os partidos políticos genericamente não ajudam a distinguir o que é individual do que é colectivo. Pedirmos à sociedade para nos dar respostas individuais é absurdo.”
Isabel Leal reflecte ainda sobre a saúde mental, a importância que esta ganhou durante a pandemia — “as pessoas, simultaneamente, deram-se conta de que existiam e que a existência humana é uma chatice e provoca desconforto” —, e sobre a solidão, sentida com maior acuidade pelos mais jovens — “se, por um lado, a modernidade criou esta dimensão da individualidade, por outro, no passado havia o sentimento do colectivo, que às vezes era maior do que a própria individualidade e não permitia que essa dimensão de solidão ganhasse. Agora, as pessoas, mesmo que estejam no colectivo, sentem-se sozinhas”.
A importância do vivermos em sociedade e sermos solidários! Uma das causas, já sabemos, são os ecrãs e a forma como são usados. Esta semana, a Folha de S. Paulo falou com especialistas sobre a forma como os adolescentes estão a iniciar a sua vida sexual, tendo acesso a conteúdos pornográficos cada vez mais novos, muitas vezes antes dos 13 anos, e como estes contribuem para que tenham noções erradas sobre o relacionamento sexual, sobre o que é o consentimento, acabando por não ter relações saudáveis. Também do Brasil chega o youtuber Felca que gravou um vídeo longo, para os parâmetros actuais, sobre a adultização das crianças, quando estas são sexualizadas e exploradas nas redes sociais por adultos — um fenómeno para o qual podemos contribuir enquanto pais quando inocentemente partilhamos imagens dos nossos filhos e podem ser vistas por pedófilos.
Quem aparenta ter uma relação saudável é Taylor Swift e Travis Kelce. A cantora foi ao podcast do namorado e do irmão do namorado, são duas horas, para anunciar o novo álbum, falar do caso dos álbuns anteriores, a sua digressão e a relação do casal. É engraçado perceber como Kelce está bem com o sucesso de Swift, como não se sente ameaçado por tudo o que ela representa, como é um homem resolvido. Porque são muitos os homens (não todos, eu sei) que têm imensa dificuldade em viver com o sucesso das mulheres.
Não escrevemos, mas esta semana, um deles apareceu à superfície, chama-se David Justice, ex-jogador de beisebol, casado com a actriz Halle Berry, entre 1993 e 1997, e que veio a público dizer que uma das razões para o divórcio foi que na sua cabeça uma mulher deve cozinhar e limpar, e se queria ter filhos com a artista, não dava, uma vez que “ela não cozinha, não limpa, não parece realmente maternal” — o idiota à espera que uma mulher, que foi a primeira mulher negra a conquistar o Óscar de Melhor Actriz, que ganha milhões, viesse para casa limpar e cozinhar para ele porque é essa a função das mulheres, tratar dos homens, continuar a infantilizá-los e a alimentar-lhes estômago e o ego.
Outra mulher que se destaca esta semana, além de Madonna que pediu ao Papa para ir a Gaza, é a princesa Ana, que celebrou 75 anos, na sexta-feira. A Inês Duarte de Freitas reuniu cinco coisas a saber sobre a irmã de Carlos III, que ao contrário do rei ou do irmão André, não foi grande motivo de escândalos e continua a ser a mais trabalhadora da família.
Em tempo de férias, a Inês Duarte de Freitas foi a dez clubes de leitura de dez celebridades, a maioria mulheres, e junta as suas últimas sugestões de leitura. Já a Rita Pimenta regressou das suas férias (para quem se apercebeu do interregno do Letra Pequena) e traz um livro para os mais novos, assim como a Sílvia Pereira também propõe saídas em família. Se os miúdos estão com energia a mais e não sabe o que fazer (até porque não está assim tão habituado a estar tanto tempo com eles…), a psicóloga Catarina Perpétuo escreveu um livro e tem alguns conselhos a dar.
E termino esta já longa newsletter com mais uma declaração de Isabel Leal, que nos traz alguma esperança. Diz a investigadora: “O mundo sempre foi complicado. E, portanto, estar a dizer que o nosso mundo é pior do que há 40 ou 50 anos, mesmo com todas estas bagunçadas que estamos a viver e a assistir, não é verdade. Eventualmente, hoje, as pessoas estão mais conscientes.”
Que saibamos usar bem a nossa consciência!
Boa semana!
