Elevador da Glória: pedir responsabilidade política não é “aproveitamento”

Cara leitora, caro leitor:
Rafael Bordallo Pinheiro inventou um boneco, no século XIX, que era “a porca da política”. Só faltou a Luís Montenegro citar o imortal Bordallo, quando piedosamente pediu que não existam “aproveitamentos políticos” neste tempo de “união” a seguir à tragédia do elevador da Glória.
Montenegro faz-se, mais uma vez, de sonso. Aquilo a que chama “aproveitamento político” é o escrutínio democrático. Todos os poderes – neste caso, a começar pela Câmara de Lisboa, responsável pela empresa municipal Carris – têm que se sujeitar ao normal funcionamento das instituições. Não está em causa a vida privada de Carlos Moedas: está em causa a gestão de um bem público e se foi essa gestão (ou não foi) que levou a esta tragédia, que chocou gente por todo o lado. A menos que tenha sido crime – e ao fim da tarde desta quinta-feira o director da PJ veio dizer que “não está excluído nada”.
A menos que se tenha tratado de um crime, a ideia de que Carlos Moedas pode não responder politicamente é de bradar aos céus. As ditaduras conseguem esses fenómenos, nas democracias não é assim.
Montenegro está a conseguir em muito pouco tempo atingir o pódio do primeiro-ministro que mais vezes fez conferências de imprensa sem direito a perguntas. Nem perante uma tragédia nacional, Montenegro se sujeita a uma coisa que até aqui era normal: responder a perguntas. O primeiro-ministro fica inseguro, já se viu (ou mente, como fez quando lhe perguntaram se tinha pedido a ocultação das matrizes na declaração de rendimentos), se não tiver à mão o discurso estudado ou um teleponto.
Quando Montenegro faz aqueles avisos contra “manobras de aproveitamento político” é porque sabe que estamos em plena campanha eleitoral para as eleições autárquicas e, obviamente, há o risco de consequências na possível reeleição de Carlos Moedas.
É público que Carlos Moedas diminuiu o orçamento para a Carris. Não está provado que essa diminuição esteja directamente ligada a uma pior manutenção dos elevadores pela empresa que, aliás, faz também a manutenção dos outros elevadores de Lisboa (Bica, Lavra e elevador de Santa Justa).
Como é óbvio, esta tragédia faz aumentar a percepção de insegurança, não relativamente à criminalidade em Lisboa, da qual tantas vezes o presidente da câmara se queixou, mas da insegurança das infra-estruturas da cidade (Carlos Moedas tinha estado na manhã de quarta-feira de visita à derrocada de um prédio na Graça, que deixou oito pessoas desalojadas).
Há muito tempo que eu não subo no elevador da Glória – houve alturas em que usava muito o elevador, principalmente quando a Hemeroteca ficava num palácio bonito logo acima da paragem superior. Sinceramente, ninguém me apanha agora a entrar em outro elevador de Lisboa tão cedo. É impossível não recear que um acidente como aquele se possa repetir, pelo menos enquanto as investigações não chegarem ao fim.
Tendo em conta que a tragédia foi noticiada em todos os jornais internacionais, o meu receio de voltar a andar nos elevadores de Lisboa pode multiplicar-se por esse mundo fora. Os elevadores e os eléctricos eram a imagem de marca que Portugal decidiu “vender” fora do país, na campanha para aumentar o turismo. Depois disto, não se pode dizer que Portugal é “um país seguro” em termos de infra-estruturas.
Morreram 16 pessoas. É um dos mais graves acidentes ocorridos em Lisboa nos últimos anos. O incêndio do Chiado, em 1988, devastou a zona, na época muito degradada e onde já quase ninguém morava. Morreram duas pessoas. Houve as trágicas cheias de 1967 (mais de 400 mortos) e o desastre na estação do Cais do Sodré, em 1963, quando caiu a cobertura e morreram 49 pessoas.
Dos anos 60 até agora, nenhuma desgraça como esta atingiu a cidade. Um sindicalista da Fectrans, Manuel Leal, disse que na Carris “os trabalhadores já vêm reportando de há muito tempo questões da necessidade de manutenção destes elevadores” e “as diferenças em termos daquilo que era a manutenção que há uns anos era feita pelos trabalhadores da Carris e as diferenças para a manutenção que é feita hoje”. O sindicalista referiu expressamente as “queixas sucessivas de trabalhadores que lá laboram quanto ao nível de tensão dos cabos de sustentação destes elevadores”.
Se existiram alertas para o risco, por que é que foram ignorados? A culpa não pode morrer solteira. Foram 16 mortos. A lição de moral contra as “manobras de aproveitamento político” que Montenegro fez aprioristicamente (ainda antes de algum partido ou dirigente se ter manifestado) revela pouco espírito democrático e a enorme contradição que existe entre os dois Montenegros: o que falava na oposição e o que hoje é primeiro-ministro. Montenegro na oposição estaria a fazer escrutínio – ou a “fazer manobras de aproveitamento político”, na sua actual definição.
Até para a semana
