IL quer que lei de estrangeiros entre em vigor “o mais depressa possível”

A presidente da Iniciativa Liberal (IL) disse este domingo que o Governo podia ter evitado o impasse na lei de estrangeiros porque preferiu “não ouvir ninguém” e considerou “importante” que a lei entre em vigor “o mais depressa possível”.

“Há alguma urgência nesta questão, sendo que obviamente não podemos também deixar de criticar que, por conta de uma suposta urgência, o Governo também acabou por ir longe demais, não quis ouvir ninguém, Não quis sequer esperar pelos pareceres que estão legalmente previstos. Essa actuação acabou por ser contraproducente”, disse Mariana Leitão.

Em Valongo, no distrito do Porto, onde participou na apresentação dos candidatos do concelho às eleições autárquicas, Mariana Leitão disse que a “urgência” do Governo “culminou no acórdão do Tribunal Constitucional (TC) e no veto do Presidente da República, algo que poderia ter sido evitado se o Governo tivesse ouvido os vários alertas”.

“Alertas que inclusivamente, nós na IL fizemos para que se corrigissem algumas questões que, provavelmente, agora teriam evitado que chegássemos a esta situação”, disse.

A lei agora chumbada pelos juízes do TC foi aprovada em 16 de Julho na Assembleia da República, com os votos favoráveis de PSD, Chega e CDS-PP, a abstenção da IL e votos contra de PS, Livre, PCP, BE, PAN e JPP.

O TC chumbou cinco normas do decreto do Parlamento que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional. O diploma será agora devolvido à Assembleia da República para que sejam alteradas as normas que violam a lei fundamental.

Numa carta enviada a Carlos Abreu Amorim, ministro dos Assuntos Parlamentares, a que a Lusa teve acesso e divulgada no sábado, a IL mostrou-se disponível a “negociar uma solução urgente e rigorosa” para ultrapassar qualquer impasse na lei de estrangeiros

Mariana Leitão propôs-se a dialogar com o executivo para conseguir “uma solução urgente e rigorosa”, lia-se na carta. Questionada a propósito desta disponibilidade, Mariana Leitão disse que “a questão central é ter uma lei equilibrada, proporcional, justa” e adiantou que para a IL há dois tópicos que terão de ser discutidos.

“Por um lado a questão das salvaguardas processuais, a questão dos processos dos recursos, que me parece que há espaço para aprimorarmos bastante a lei do Governo, e depois a questão do prazo, que nos parece que com o tempo de decisão, há um certo exagero na prorrogação de 18 meses para se tomar uma decisão”, descreveu.

Reiterando que a lei deve avançar com “relativa rapidez”, a presidente da IL vincou que esta deve salvaguardar várias questões, ter regras e garantir previsibilidade nos direitos e deveres.

“É importante garantir que este processo termina de forma a que a lei entre em vigor o mais depressa possível. É importante termos um quadro legal que regule as questões da imigração. Nós sempre defendemos que a imigração tem de ser feita com regras, tem também de ter um cenário de previsibilidade para quem quer imigrar saber exactamente com o que é que pode contar e tem de salvaguardar, também, a questão humanista”, referiu.

Para Mariana Leitão, é preciso, também, evitar que quem chega a Portugal fique “completamente abandonado e entregue à sua sorte, a viver em situações de completa desumanidade à mercê de exploração laboral”.

“Temos de ter um quadro legal proporcional, justo e que preveja as várias situações para que se consiga agir, nomeadamente quando há casos de imigração ilegal (…) e salvaguardar que, por exemplo, o crime de tráfico de seres humanos, que aumentou exponencialmente nos últimos anos, deixe de ter o impacto tão grande como tem tido e sirva para acabarmos com redes de auxílio à imigração ilegal e tudo mais”, concluiu.

Ensinar o ego a pescar

No Natal de 2021, subi ao palco do Teatro Nacional D. Maria II e, durante uma hora, comparei a nossa atitude perante as alterações climáticas com uma rã na panela.

Há uns dias vi esse mesmo título numa notícia online e o meu ego ficou magoado. “Não me ouviram no Natal de 2021 e, agora, roubam-me a ideia. Sacanas.”

Ocorreu-me agora que ESTE é um dos impedimentos principais entre nós e a salvação que já não chegará a tempo: ego.

Desde esse Natal tenho vindo a publicar linhas sobre este tema. Estas são frequentemente recusadas porque soam a disco riscado. Agradeço ao Observador não mandar estas para o caixote do lixo electrónico e vamos já directo para o slide vermelho na minha apresentação natalícia, que dizia “Keep calm and do the math“.

Enquanto esse slide estava no ecrã recordei o público de como a Revolução Industrial marcou o início do transporte de Carbono desde o chão, onde esteve enterrado durante milhares de milhões de anos (na forma sólida, líquida e gasosa) para a atmosfera. A seguir expliquei o que é um motor de combustão, que consiste em cilindros metálicos dentro dos quais é injectado combustível, que explode. O combustível consiste predominantemente em longas moléculas de átomos de Carbono rodeadas de átomos de Hidrogénio, daí adoptarem a designação de Hidrocarbonetos.

A seguir expliquei que, no início da Revolução Industrial, começámos por pôr máquinas a mexer queimando lenha e carvão (lá está, Carbono), para aquecer água e pressurizando o vapor desta para mover corpos pesados, como locomotivas, carros, pistões, êmbolos e motores variados. Seguiu-se o motor de combustão a gasóleo, depois o de gasolina e a explosão destes. Refiro-me às explosões no interior dos seus cilindros, mas também à explosão na sua proliferação.

Sabem quantos motores de combustão existem actualmente? A internet diz-nos que são aproximadamente 1500 milhões em carros, autocarros, camiões, motociclos e outros veículos. Mais uns largos milhões em 10 milhões de fábricas, mais uns 109.000 navios e perto de 25.000 aviões activos. Agora imaginem quantos existiram antes destes. E agora imaginem que cada um dos motores que existe agora, mais todos os motores que existiram desde a Revolução Industrial, funcionam a vários milhares de rotações por… minuto.

Recordemos o slide “Keep calm and do the math“.

Multipliquemos o total dos motores actuais – sem esquecer os já desactivados e ancestrais – pelo número de cilindros de cada um, pelo número de rotações por minuto e pelo número de horas, dias, semanas, meses, anos, décadas durante os quais hidrocarbonetos explodiram dentro desses cilindros.

…e expeliram os gases dessa combustão para uma atmosfera finíssima, de um planeta minúsculo, cuja espessura pode ser equiparada a uma folha de papel aderente que embrulha uma bola de basquete.

Se não tiverem veia matemática, escusam de ler mais porque não entendem o alcance do resultado da multiplicação e metáfora anteriores.

Se tiverem veia matemática e entenderam a metáfora, provavelmente também vão parar de ler e vão a correr ensinar os vossos filhos a pescar em vez de lhes darem peixes, porque perceberam a magnitude do problema que temos pela frente.

“Problema” é um belo eufemismo para caracterizar o fim da nossa espécie neste minúsculo planeta e pela nossa mão, porque esta quantidade alucinante de Carbono “a mais” numa atmosfera outrora equilibrada não pode ser – e não é – inconsequente.

Os gráficos são abundantes. Os discursos alarmistas de cientistas climáticos também.

Apesar disso, sempre que toco o meu disco riscado da rã na panela invariavelmente ouço e leio “Lá vem a esquerdalha radical apregoar o fim do mundo. Você tem noção que a quantidade do CO2 na atmosfera corresponde a 0,0(…)1% dos gases na dita?”

A isso respondo “E você tem noção dos conceitos de ‘sistema’ e de ‘equilíbrio’? Tem noção de quão poucas casas decimais são necessárias para desequilibrar algo que está equilibrado há milhares de milhões de anos? Tem noção de que a diferença entre água a -1°C ou +1°C é profunda? E tem noção de que a diferença entre água a 99°C ou 101°C é igualmente profunda? Tem noção de que as Leis da Física Clássica não querem saber das noções que tem, ou não tem?”

Sabem o que separa a floresta Amazónica do deserto Sahara? Dois ou três graus centígrados e o facto de que um tem vegetação e consegue reter humidade e o outro não tem vegetação e, por isso, não retém humidade. O problema é que bastam, de facto, dois ou três graus centígrados para o topo da floresta aquecer demasiado e algumas folhas morrerem. Deixando de fazer sombra no solo, e nas plantas abaixo, estas também secam e também morrem, num ciclo de feedback positivo em que secura gera mais secura. Não demora muito tempo para uma floresta passar a deserto. Bastam dois ou três graus e umas décadas. Ou menos. Adicionemos o desmatamento e incêndios provocados e aceleramos ainda mais esse processo.

Não é preciso muito para isso acontecer. Basta um processo eleitoral.

Há líderes que levam um povo na direcção do entendimento e solução de problemas. E há líderes que levam o povo que os elegeu na direcção do desentendimento e do abismo.

Lá está o ego a falar. A mania de que temos sempre razão. O ego que nos levou à Lua e que levou sondas a Marte. O ego que já meteu duas sondas fora do Sistema Solar e outras dentro do Sol. O mesmo ego que nos impele a mover acções judiciais contra os que gozam connosco ou a desamigá-los porque não há saco para lidar com a discórdia. O mesmo ego que me leva a exibir os meus modestos dotes literários e raciocínio acutilante nestas matérias climáticas. O ego que nos salvou tantas vezes, é o mesmo que nos levou à perdição.

Uso o tempo verbal passado porque já estamos perdidos.

O que me leva ao tema “pesca”.

Diz-se que não devemos dar um peixe a uma pessoa com fome, mas sim ensiná-la a pescar.

Concordo.

Principalmente desde que sou pai, um privilégio que celebra seis anos precisamente quando escrevo estas linhas.

Ainda ontem ensinávamos o petiz a empurrar os meninos que o empurrarem. “Nunca empurres ninguém, nunca chames nomes. Mas, se te empurrarem, se te chamarem nomes, não te fiques.” ou não fosse ele filho de um biólogo marinho que sempre adorou Física e que leva a Lei de Acção-Reacção de Newton muito à séria.

Cá em casa tentamos fazer parte da solução e não do problema. Mas o ego é tramado. Quando toca ao nosso bem-estar físico e emocional, venham-me cá com dicas apaziguadoras, que eu já vos digo. “Empurraram-te? Empurra-o com mais força.” Lá se vai a razoabilidade pela janela.

O ego é tramado. E poderia ter-nos salvado. Mas lixou-nos. Com f.

Reforma do Estado: a digitalização na Justiça e a falta de articulação entre ministérios e instituições

O Governo elegeu como uma das suas principais bandeiras a reforma do Estado e, para sinalizar tal prioridade, foi criado o Ministério da Reforma do Estado. Se observarmos a composição do ministério mencionado, verificamos que, na sua orgânica, consta um Secretário de Estado da digitalização e outro da simplificação. Considero muito positivo que exista um ministério que tenha competência para fazer reformas transversais, em domínios, como por exemplo, a digitalização. Há medidas que só fazem sentido se houver uma solução global que abarque diversas entidades que se encontram sobre a tutela de ministros diferentes.

A Portaria nº 266/2024, de 15 de Outubro, definiu a tramitação eletrónica dos processos e procedimentos que correm termos nos serviços do Ministério Público. O avanço no sentido da desmaterialização total dos processos é o futuro e uma realidade inevitável. Noutros tempos, alguns pretenderam resistir a trabalhar com computadores ou em sistemas informáticos, mas rapidamente perceberam que tinham de se adaptar. Há países que já desmaterializaram os seus processos judiciais, com bons resultados. Se é certo que temos de olhar em frente e deixar de “estarmos agarrados ao papel”, a desmaterialização suscita vários desafios que é preciso enfrentar.

No que concerne ao Ministério Público, é essencial implementar um bom sistema informático que permita a articulação com os órgãos de polícia criminal. Neste momento, as polícias efetuam diligências de investigação, como por exemplo a inquirição de testemunhas, interrogatórios de arguidos, realização de autos de notícia, busca ou apreensão e entregam tais documentos, em papel, nos serviços do Ministério Público, onde o expediente é digitalizado. Por sua vez, quando um magistrado do Ministério Público profere um despacho que tem de ser comunicado a uma determinada polícia, o mesmo consta em formato digital no seu sistema informático, mas tem de ser transmitido em papel às polícias. Em suma, neste momento há vários sistemas informáticos que não comunicam entre si, o que leva a um enorme desperdício de meios. Importa salientar que, para minorar este problema, tentou estabelecer-se a transmissão de ficheiros digitalizados por mail ou através da nuvem, mas tal foi rejeitado por algumas entidades.

Convém sublinhar que, por parte dos diversos órgãos de polícia criminal, também não existe um sistema de tratamento único da informação, o que leva a que cada um deles só tenha conhecimento parcial dos dados, com prejuízo inegável para a investigação criminal. Até dentro do mesmo ministério, cada polícia tem o seu sistema informático próprio para tratamento de informação. Se um arguido cometer crimes na área de competência da PSP e da GNR, ambos pertencentes ao Ministério da Administração Interna, a informação fica registada de forma parcial no sistema informático de cada polícia, consoante o local onde os factos ocorreram, impedindo assim uma visão de conjunto. O principal desafio do Senhor Ministro da Reforma do Estado será fazer a ponte entre as diversas instituições e ministérios e conseguir implementar soluções transversais, o que não se afigura fácil, atenta a mentalidade de “defesa da quinta” que muitas vezes impera.

Após o diagnóstico, importa avançar com várias soluções. O caminho para a desmaterialização e integração dos dados, referentes à investigação criminal, tem de passar pela criação de um sistema informático único, em que o Ministério Público e todas as policias trabalhem. Neste momento, as polícias perdem tempo a introduzir dados nos seus sistemas informáticos que, posteriormente, têm de voltar a ser inseridos nos serviços do Ministério Público. Nos inquéritos, os magistrados solicitam às polícias que prestem informação sobre o estado da investigação, designadamente para aferir das razões dos atrasos. Se os magistrados tivessem acesso informático às diligências que se encontram em curso nos órgãos de polícia criminal, seria evitada a expedição de milhares de cartas e as investigações seriam mais céleres. Por outro lado, também é imperioso que os arguidos, testemunhas e polícias possam assinar eletronicamente os autos, o que não é atualmente possível. Hoje em dia, se uma testemunha for inquirida na PSP, a sua inquirição fica registada no sistema informático. No entanto, como não é possível assinar digitalmente, o documento não tem qualquer valor, pelo que o auto tem de ser impresso em papel e assinado manualmente. Só haverá verdadeira desmaterialização do inquérito quando for possível ultrapassar este constrangimento. Os bancos já resolveram este problema há muito tempo.

Para finalizar, nas últimas duas décadas, o Ministério Público tem investido no desenvolvimento de vários programas informáticos que resolveriam os problemas que identifiquei, mas houve sempre bloqueios por parte de uma entidade. Neste momento, há um programa informático pronto a entrar em funcionamento e que iria trazer um avanço muito significativo à investigação criminal. Não obstante o Senhor Procurador-Geral da República sinalizar esta necessidade, desde o início do seu mandato, não se vê solução à vista a curto prazo. Em breve, veremos se o Senhor Ministro da Reforma do Estado tem força política para verdadeiramente transformar o Estado ou se algumas “quintas” continuam a bloquear a mudança…

Trump pode acabar com a guerra do Kremlin contra a Ucrânia

O recém-eleito presidente americano assumiu o cargo em janeiro de 2025 com a promessa de acabar com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia em 24 horas. Inicialmente, o novo governo dos EUA passou meses enviando sinais amigáveis, despachos e negociadores a Moscovo. Em julho passado, Donald Trump surpreendeu ao adotar uma linha mais dura em relação a Vladimir Putin. Aprovou a venda de armas americanas à Ucrânia e ameaçou repetidamente com sanções secundárias contra os parceiros comerciais da Rússia. O prazo inicial de 50 dias para a Rússia recuar foi reduzido para 10 dias no início de agosto.

No entanto, alguns dias depois, a administração dos EUA anunciou que o esperado confronto comercial entre as duas superpotências e os seus parceiros não teria lugar. Em vez disso, haverá agora uma reunião entre Trump e Putin no Alasca. Nas negociações preliminares entre os negociadores americanos e russos, há agora sinais de uma possibilidade de acordo sobre a tão esperada trégua.

A última reviravolta de Washington em relação a Moscovo é apenas uma nova expressão da incoerência já evidente da política dos EUA para com a Rússia sob a nova administração. Numa reviravolta bizarra, as ameaças económicas e militares do presidente dos EUA contra a Rússia foram seguidas, pouco depois, por tentativas igualmente veementes de Trump para apaziguar Putin. Agora, aparentemente, as duas superpotências vão decidir o destino da Ucrânia numa cimeira histórica entre os EUA e a Rússia.

No entanto, é duvidoso que a nova ronda de negociações produza resultados politicamente significativos e duradouros. Tal como noutras questões, a Rússia tem encenado um teatro de negociações deliberado em relação à Ucrânia desde 2014, com o objetivo de impressionar tanto a sua própria população como a comunidade internacional. Em centenas de conversações, dezenas de cimeiras e inúmeros documentos assinados, a Rússia tem declarado repetidamente o seu desejo de paz na Ucrânia ao longo dos anos.

No entanto, as intensas negociações bilaterais e multilaterais antes e depois de fevereiro de 2022 pouco contribuíram para alterar o curso da guerra. Pelo contrário, as repetidas concessões do Ocidente e as concessões forçadas da Ucrânia à Rússia, os fornecimentos de armas hesitantes e, até à data, limitados do Ocidente a Kiev, e a política de sanções indecisa da UE e dos EUA encorajaram Moscovo a embarcar em novas aventuras.

A ocupação da Crimeia em fevereiro de 2014 foi seguida pela sua anexação oficial à Rússia um mês depois. Pouco tempo depois, em abril, começou a guerra no Donbass. Em julho de 2014, a Rússia abateu impunemente um avião de passageiros da Malásia com muitos cidadãos da UE a bordo sobre a zona de combate. Em meados de agosto de 2014, a invasão do leste da Ucrânia começou com as primeiras mobilizações regulares de tropas em grande escala e, após várias ondas menores de escalada, a invasão em grande escala da Ucrânia continental finalmente começou em fevereiro de 2022. Desde então, a política de guerra e ocupação da Rússia na Ucrânia tornou-se mais terrorista e genocida a cada mês que passa.

Mesmo após 11 anos de guerra, os EUA – tal como muitos outros países – aprenderam pouco com os fracassos das intensas negociações diplomáticas e da sua contenção política. A segunda administração Trump não só nega, por razões internas, as experiências preocupantes das administrações Obama e Biden com o Kremlin, como também esquece a futilidade da primeira administração Trump em 2017-2021 no que diz respeito à guerra do Donbass.

Nas próximas negociações, Putin poderá exigir não só concessões territoriais, mas também outras restrições à soberania da Ucrânia, mesmo sabendo que nenhum presidente ucraniano pode satisfazer tais exigências maximalistas. Uma questão fundamental será até que ponto Trump abraça a interpretação de Putin sobre as origens, a natureza e o significado da guerra de agressão da Rússia.

O objetivo de Moscovo nas próximas negociações será menos uma solução duradoura para o conflito do que uma melhoria da posição internacional da Rússia. Putin procurará, entre outras coisas, minar a ordem global exigindo concessões que violam o direito internacional, dividir a aliança ocidental, enfraquecer a parceria do Ocidente com a Ucrânia e, na medida do possível, semear a discórdia interna na Ucrânia.

Moscovo tentará atrair políticos americanos e outros políticos ocidentais com concessões falsas e promessas de desaceleração, bem como forçar Kiev a uma crise de tomada de decisão.

Tal como tem feito repetidamente desde fevereiro de 2014, o Kremlin tentará passar a responsabilidade para a Ucrânia por um novo e definitivo fracasso das negociações. Não se pode excluir um cessar-fogo temporário dentro desta estratégia, se Moscovo o definir como sendo do interesse diplomático, interno, económico e geoestratégico da Rússia.

O Kremlin poderia usar a ilusão de que a Rússia está disposta a fazer concessões e suspender os bombardeamentos de povoações ucranianas para minar a unidade e a determinação que cresceram na Europa desde 2025 em relação à ajuda à Ucrânia e para aprofundar a divisão que já existe entre os Estados Unidos e outros parceiros da OTAN. Um cessar-fogo limitado também ofereceria uma oportunidade para reagrupar as tropas de ataque russas, consolidar o regime de ocupação nos territórios ucranianos anexados e pôr em causa a política de sanções do Ocidente. De 2014 a 2021, já houve vários períodos de relativa calma na guerra da Rússia na Bacia do Donets (Donbass). No entanto, esses períodos relativamente pacíficos acabaram por não pôr fim nem congelar o conflito armado, mas sim abriram caminho para a sua escalada para uma guerra de expansão em grande escala.

Outra opção que pode ser do interesse da Rússia seria um cessar-fogo de armas de longo alcance, com ambos os lados a absterem-se de ataques com mísseis e drones além da linha da frente. Nos últimos três anos e meio, a Rússia atacou muitos dos principais alvos de infraestruturas da Ucrânia, com vários graus de sucesso. No entanto, a Ucrânia adaptou-se a estes ataques ao longo do tempo e, por exemplo, criou uma infraestrutura energética relativamente resiliente.

Nos últimos meses, houve grandes ataques russos com drones e mísseis contra alvos civis ucranianos, incluindo em Kiev. Os ataques massivos da Rússia muitas vezes conseguiram superar as defesas aéreas da Ucrânia, criando imagens dramáticas de explosões na capital ucraniana, entre outros lugares. No entanto, o significado militar do aumento dos ataques a edifícios residenciais, hospitais, instituições culturais e lojas de departamento ucranianos continua baixo.

Em contrapartida, a Ucrânia tem sido repetidamente bem-sucedida nos últimos meses com ataques com drones de longo alcance contra alvos militares, industriais e de infraestrutura russos. Mesmo no interior do país, bases militares, depósitos de combustível, aeroportos, refinarias e outras instalações relacionadas à defesa foram repetidamente atingidos. As detonações e incêndios, por vezes dramáticos, em instalações industriais russas não só têm um significado material crescente para a economia e o exército russos, mas também um efeito psicológico sobre a população russa e a opinião pública mundial. Na guerra com drones de longo alcance, a Ucrânia pode usar tecnologia de ponta para compensar a inferioridade numérica de suas tropas, com efeito particularmente alto. Neste contexto, não se pode descartar que Putin agora queira suspender ou mesmo encerrar esta parte da guerra.

A parceria militar e a política de aliança do Ocidente em relação à Ucrânia continuam a ser o eixo central das negociações futuras. Enquanto não houver garantias de segurança credíveis para a Ucrânia, um cessar-fogo serviria apenas para que ambos os lados reagrupassem as suas forças militares e recursos económicos, bem como para preparar as suas administrações e populações para a próxima ronda de escalada. Depois da guerra, seria como se estivéssemos antes da guerra.

Para além da questão prática da segurança futura da Ucrânia, há a questão mais ampla do papel futuro dos EUA na política mundial em geral e na Europa Oriental em particular. Washington e Moscovo não podem, como aparentemente planeado, negociar a soberania e a integridade de um Estado europeu, na ausência de representantes ucranianos e outros representantes europeus. Além disso, na sequência das garantias de segurança dadas à Ucrânia no infame Memorando de Budapeste de 1994, relacionado com a adesão da Ucrânia ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), os Estados Unidos não podem permitir qualquer discussão sobre as questões das fronteiras e da soberania da Ucrânia. Se, apesar deste acordo de há três décadas, dois Estados oficialmente dotados de armas nucleares e membros permanentes do Conselho de Segurança chegassem agora a um acordo que deixasse a Ucrânia – cofundadora da ONU, signatária do TNP, membro do Conselho da Europa e participante da OSCE – como um Estado residual, politica e territorialmente falido, a humanidade aproximar-se-ia da desordem global que prevaleceu antes de 1945.

Morreu a FCT! Antes de fazer uma “nova” o Governo deve ler o relatório da única avaliação da defunta.

A Ciência (C) é o motor do desenvolvimento socioeconómico: hoje já não se inventa nada sem se saber muito, pois toda a Tecnologia (T) é de base científica; ora, tendo a inovação uma exclusiva base tecnológica, podemos concluir que o conhecimento científico e a investigação que o produz constituem, de facto, a fonte de todo o progresso. O investimento sustentado em C&T é necessário ao desenvolvimento, é a solução do futuro, é a segurança social colectiva. Diga-se que a fracção do PIB investida em C&T em Portugal é ridiculamente baixa para ser, de facto, a nossa segurança social.

Pela conjugação de uma série de factores, incluindo o estímulo à formação doutoral no estrangeiro promovido por Mariano Gago enquanto Presidente da JNICT (organismo antecessor da FCT), bem como o acréscimo do investimento público nestas áreas, a investigação científica em Portugal saiu da cepa torta onde sempre estivera (com raras e honrosas excepções), a partir dos anos 90. Em 1997, Mariano Gago, então Ministro da Ciência e Tecnologia, criou a FCT, cuja extinção acaba de ser anunciada pelo actual Governo.

Nos 28 anos da sua história, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) só uma vez (2015) foi avaliada por uma comissão externa e independente. É verdade que o seu criador parecia pouco dado a avaliações: por exemplo, os primeiros 12 Laboratórios Associados, estruturas de investigação científica com um financiamento especial, designados pela sua excepcional qualidade “estruturante”, foram nomeados pelo ministro sem qualquer concurso público ou avaliação! Extraordinário.

Mas voltando à FCT, valeria muito a pena que o Governo que julgou por bem extinguir a FCT lesse o relatório dessa avaliação e as sugestões, estruturais e operacionais, aí contidas. É verdade que o relatório é denso e longo, mas o bem comum tem custos. Não é minha intenção fazer aqui um resumo, brevíssimo que fosse; antes, insistir em aspectos que sempre me pareceram carecer de mudança e que o tal relatório também considera.

Ao contrário de outros países com mais história nestes domínios, onde os “research councils” representam uma emanação da comunidade científica, a FCT sempre foi um instrumento à disposição do Governo para “gerir” essa comunidade e os parcos recursos que lhe eram atribuídos, sem qualquer autonomia. Ao invés de “contratos-programa” plurianuais (4 ou 5 anos) com o Governo, assentes em orçamentos globais a ser geridos pelo organismo, a FCT sempre teve de funcionar com orçamentos anuais flutuantes que são incompatíveis com a estabilidade necessária às equipas e aos projectos de investigação que sempre duram três ou mais anos. Pior: um dos principais falhanços da FCT foi o de nunca ter mantido um calendário regular (anual) de abertura de concursos; era quando dava, impossibilitando aos investigadores todo e qualquer planeamento mais sério dos seus programas que exigiria concursos regulares e previsíveis. Talvez porque a FCT sempre fez o que lhe encomendava o Governo, foram poucos os investigadores mais relevantes do país que participaram das suas decisões estratégicas e operacionais. Questão central, já que ela respeita a decisões cruciais no papel da instituição, nomeadamente onde se gasta o dinheiro. Eis algumas: como se distribui o investimento entre a formação de novos investigadores (bolsas de doutoramento e pós-doutoramento) e a consolidação das áreas já estabelecidas (projectos de investigação, recrutamento de investigadores)? Dá-se preferência ao financiamento a investigadores e seus grupos, ou a instituições?[1] Como se distribui o dinheiro entre as diversas áreas da C&T, tão distintas como a física nuclear, a sociologia, a astronomia, ou as ciências da vida e da saúde?[2] É evidente que, por mais bem-intencionado, não pode ser o Governo a decidir de tais aspectos demasiado complexos.

Dir-se-ia que esta é uma questão onde se torna mais claro que deixar a decisão à comunidade científica ela própria é má ideia, pois aqui imperariam os conflitos de interesse. Sobretudo em comunidades pequenas como é o caso em Portugal. Felizmente que a C&T são globais e que todos os cientistas estão treinados em fazer “peer reviews” pro bono, e disponíveis para participar de tais avaliações e decisões. Infelizmente, todavia, ainda que revisores estrangeiros fossem regularmente solicitados pela FCT nas suas tarefas de avaliação, a sua escolha era deixada ao critério de investigadores “locais” ou de funcionários que chefiavam os painéis de avaliação. Uma só vez, de novo, foi o processo inteiro entregue nas mãos de uma entidade externa (European Science Foundation), imune às reputações e influências locais, incluindo as políticas. O coro de lamentações que se seguiu, tingido por insultos à FCT da parte de (localmente) famosos investigadores, demonstrou, entre outras coisas, a necessidade do recurso regular a entidades externas para as avaliações, e contribuiu para um dos raros momentos de glória da FCT ao longo da sua história.

Em resumo, foi certamente boa ideia acabar com a FCT. Todavia, será muito má ideia constituir uma qualquer entidade assente nos mesmos princípios da anterior. Os responsáveis têm aqui uma excelente oportunidade de ficar na História da C&T em Portugal; só terão de escolher se ficam pelas boas ou pelas más razões.

[1] Talvez por pressão das Universidades (onde se concentram a grande maioria das instituições de investigação) a FCT tem sistematicamente preferido as instituições aos investigadores nos seus financiamentos; erro crasso, em minha opinião, cuja argumentação não cabe aqui (literalmente)..
[2] Como em outros países europeus, a física tem tido, desde a segunda guerra mundial (e a bomba atómica?), uma clara predominância nessa distribuição; em Portugal, acresce um desvio muito significativo para um excesso de financiamento das ciências sociais, com o consequente prejuízo das ciências da vida e da saúde. Não esqueçamos, todavia, a noção corrente que a biologia é a ciência do Século XXI, como a física o foi no XX e a química no XIX.

O (anti-)judaísmo em “Chariots of Fire”

Um dos mais fascinantes filmes da história da cinematografia é o épico desportivo Chariots of Fire. Um título traduzido para português por Momentos de Glória, quiçá devido ao desconhecimento que a expressão em inglês provém do hino  Jerusalém de William Blake, o qual, por sua vez, se inspira numa passagem bíblica que traz, exatamente e como tal hino, a expressão «carros de fogo»: Segundo Livro dos Reis, Capítulo 6, Versículo 17. Só esta alteração quase que mereceria ‘prisão’, mas admito, contrariado, que não está mal de todo.

Também não deve ser segredo nenhum que grande parte do sucesso dessa obra se deveu à banda sonora elaborada pelo genial Vangelis. Quase me apeteceria dizer que sem as, heroicas e (ou) comoventes, músicas do referido compositor grego, o filme em apreço não teria tido o sucesso que obteve aquando dos Óscares de 1982. Mas posso estar enganado. É o habitual. Tenho que viver com isso.

Mas o que me apraz trazer até vós é o tema do (anti-)judaísmo nesse filme. Não um anti-judaísmo aberto, mas sem dúvida nenhuma que um judaísmo explícito na personagem (baseada em alguém real) do velocista Harold Abrahams (desempenhado pelo recém-falecido ator Ben Cross).

Harold é, pelo menos, uma personagem complexa. Digo «pelo menos», pois não li nenhuma biografia sobre o mesmo, não conhecendo assim a pessoa. Assim, é sobre a representação desta que centrarei a minha atenção, por mais que se trate de uma daquelas personagens da “sétima arte” que só conseguimos decifrar, e só parcialmente, quando a vemos na obra em que surge desde diversas camadas.

Sofrendo de um complexo de superioridade pela sua veia intelectual e desportiva, sofre igualmente de um complexo de inferioridade pelo facto de ser judeu na Inglaterra da década de 20 do século transato. É um “tanque” portentoso de força e disciplina e uma “borboleta” sensível e quixotesca. Alguém que, sem negar as suas diversas identidades (inglês, aluno de Cambridge e judeu), combate sobretudo a si mesmo sem saber porquê (aqui voltarei).

A dado momento do filme, e depois de uma conversa com Harold, os decanos de dois colégios da aduzida Universidade Inglesa (onde não creio que se queira dar nota máxima a uma questão de um exame apenas por os alunos comparecerem ao mesmo) dizem: «É um judeu. Um outro Deus. Uma outra montanha».

Erram, desde a perspetiva cristã, quanto a «outro Deus» (sem desejar minorar o valor imprescindível, irrefragável e irretirável do povo judeu na economia salvífica); acertam quanto a «outra montanha».

Já Paul Beauchamp escreveu “D’une montagne à l’autre”, mostrando o salto qualitativo entre dois precipícios. Por um lado, a montanha do Sinai e a ‘lógica do mínimo’ dos ‘10 ensinamentos’ da Lei. Por outro lado, a montanha do “Evangelho segundo São Mateus” e a ‘lógica do máximo’ das ‘Grande Alegrias’ (comummente conhecidas por ‘Bem-Aventuranças’).

E isto é decisivo no filme, notavelmente no contraste entre o judeu Harold Abrahams e o cristão Eric Liddell. O primeiro vive para (se) provar e vencer; o segundo para (se) comemorar e ser vitorioso.

Harold não tem ilusões. Logo no começo da obra diz: «É uma aflição, um desamparo e raiva…  a pessoa sente-se humilhada». Ele sente-se assediado por todos os lados por referências culturais ao Cristianismo.

A um Cristianismo que, contra a sua identidade e derivando para a idolatria, não foi quem menos ódio mostrou aos judeus através da história. Pior, e nesse caso já não contra a sua identidade e mostrando o que é a sua santidade, só mesmo o islamismo (alguém já se deu ao trabalho de ver que, por exemplo, Os Protocolos dos Sábios de Sião estão cheios de invetivas islâmicas?).

Harold vive contra a corrente. Se calhar apenas sobrevive como judeu, sem se ter sentido como tal até à sobredita perceção que o asfixia. Mas não está morto e, assim, avança, «arrogante e defensivo a ponto de ser agressivo», para a fonte, «como o vento» contra uma parede.

É judeu. Os demais correm a favor da corrente social e isso só o faz admitir que «enerva-me». Mas a sua epifania ainda está para vir. Epifania? Talvez ‘parto’ seja melhor.

De qualquer modo, tipicamente buscando a Deus (no Cristianismo é essencialmente ao contrário), Harold acaba a aceitar que a iniciativa de Deus se manifesta por todo o lado. Não para diminuir a nossa ação, mas para lhe garantir toda a sua amplitude e toda a sua fecundidade. Mas para isso é preciso apaixonar-se pela Sua Sabedoria; talvez l’éternel féminin – não o da triste e desvalida psicologia faustiana, mas o de Teilhard de Chardin.

É este feminino, presente neste filme na personagem de Sybil Gordon, que o faz admitir, sem o dizer, que quer correr para combater o ser judeu, que esse correr é uma arma contra o seu judaísmo. Um judaísmo que, porém, é o seu sangue.

Sangue: não, pois, uma emoção, mas um intrever: um ver dentro de si, das coisas e até do inefável. Eis porque a derrota é inconcebível, e quando acontece a desproporção entre a miséria humana e a compaixão humana se revela enorme. Mas possível de ser superada, sempre que vivido em sentido contrário aos clichés do mundo.

Ocorre que, como bem diz Andrew Lindsay, «o mundo está contra ele, ou pelo menos é o que ele acredita. Agora ele tem a oportunidade de provar o seu valor. Para Harold, é uma questão de vida ou morte». Harold vai ter que ser «desfeito, pedaço por pedaço» quanto ao que lhe é natural, mas não senão para que um outro natural mais essencial brilhe.

Quem morreu na Cruz foi um judeu: Jesus. Mas como a sua natureza humana não estava ligada a uma pessoa humana, Ele transcende infinitamente todas as diferenças na união de tal natureza à infinidade da Sua pessoa divina.

«Para cima, para cima, para cima! Leve, leve, leve! Leve como uma pena!» Eis uma série de chapadas na autocomiseração de Harold. Ele só será ele se for capaz de se ver do modo mais cruel, cínico, paródico e hostil representação do que é. Mas precisa de passar por aí.

A essência do judaísmo é a reciprocidade, paradoxal certamente, entre Deus e o ser humano. Do Deus que espera que o justo chegue até si. O receio das alturas assemelha-se aqui à infantilidade. À sua boutade: «Eu pura e simplesmente não sei o que fazer», diz Harold. «Tente crescer», responde Sybil.

Harold, vai crescer quando finalmente admite: «Estou sempre em busca e nem sei o que estou a perseguir. Estou com medo. Lute[i] e sofr[i] por isto. Dia após dia. Louco. Conheço o medo de perder. Mas agora estou quase com medo de ganhar. E para quê?». A resposta mais simples, mas não a mais exata – já regressarei a isso –, é que tudo isso foi para estar na final dos 100 metros dos Jogos Olímpicos de Paris de 1924.

Ele vai ganhá-la, correndo ‘fora de si mesmo’, numa experiência que toca o espiritual. Eis a liberdade dos interesses próprios. Isto não significa ser neutro ou imparcial, antes ser um apoiante de Deus no deixar para trás o “egoísmo”.

A Lei judaica é isto: é uma resposta para aquele que descobre que a vida é amor. É, pois, um despertar da consciência. Uma consciência ‘trazida’ para o nosso Mundo pelo judaísmo, e razão fundamental, diz George Steiner, de todos os antissemitismos.

Eis algo análogo ao sentido por Harold depois da sua vitória. Chamam-no. Não ouve. Celebram. Mas também não vê. Está absorto no que está a fazer. Mais uma vez é Andrew Lindsay, Lord Andrew Lindsay, que serve, no filme, de ‘coro grego’, para explicar o que poucos de nós pudemos sentir na vida: «Ele venceu! É o melhor do Mundo! Deixemo-lo em paz. O coitado está destroçado. Ganhar é algo bastante difícil de engolir».

A consciência do ganhar, em especial o ganhar o direito a existir e a viver, é, para um judeu, parecida à consciência com que ele vive diariamente apesar de milhares de anos a ser perseguido. A minha empatia está toda com eles. E sobretudo o meu amor.

Nada do que agora escrevi salvará um judeu, mas como desejo que vivam em ‘carros de fogo’! Em carros de honra e fidelidade ante um Deus (se possível Amor) que carece da sua misericórdia. Se assim acontecer, e juntando eu Adorno e Celan, será sempre possível e preciso escrever poesia judaica depois de Auschwitz, mesmo que em alemão.

O Princípio de Pareto e as mudanças do Governo

Sem surpresa, os anúncios de mudanças sectoriais que têm sido feitos pelo Governo são sucedidos por uma série de críticas, a generalidade delas no mesmo sentido. É normal, faz parte da vida em democracia. Algumas críticas serão mais pertinentes e certeiras do que outras. Muitas decorrem do velho princípio, também comum em democracia: tudo o que o campo político adversário faz é mal feito e pretende apenas ser um “ataque” a isto ou àquilo. Outras ainda partem de uma leitura parcelar e apressada das mudanças propostas, muitas vezes com base no título de uma notícia ou na inabilidade de comunicação do Governo.

Nas últimas semanas assistimos a esse fenómeno comum acerca das propostas de mudança nas leis do trabalho e nas regras da imigração.

Em todas elas, o foco principal das críticas incidiu sobre aspetos reduzidos e pouco centrais de tudo o que está em causa em cada um desses dossiês.

No caso das leis do trabalho, a indignação centrou-se primeiro nas alterações ao luto gestacional e logo depois nos direitos relacionados com a amamentação.

Nas leis da imigração, o centro da polémica esteve nas regras do reagrupamento familiar — que acabaram por ser chumbadas pelo Tribunal Constitucional.

A propósito de tudo isto lembrei-me do Princípio de Pareto, que nos diz que a maioria dos efeitos (80%) é produzido por um número reduzido de causas ou factores (20%).

O economista italiano Vilfredo Pareto notou pela primeira vez esta relação sobre a riqueza no seu país: 80% era possuída por 20% da população.

Desde então, o seu princípio já teve mil e uma adaptações: gastamos 80% do tempo a tratar de assuntos que têm 20% de importância; 80% das receitas são obtidas com 20% dos clientes; 80% do emprego é criado por 20% das empresas; 80% do IRS é pago por 20% das famílias e por aí fora.

Claro que os números 80/20 não são mágicos nem são aqui o importante, mas sim a ideia de que uma pequena parcela das causas gera uma larga fatia dos efeitos.

Sem desprezar o impacto nas vidas das pessoas diretamente envolvidas, os direitos da amamentação e do luto gestacional não são o mais importante na reforma laboral nem é da sua alteração que resultará uma economia mais dinâmica; e o reagrupamento familiar é uma parcela muito pequena do aumento descontrolado do número de imigrantes.

Para além do escrutínio público e das críticas fundamentadas, o Governo sabe que vai enfrentar resistências de corporações, interesses instalados, opositores políticos e partes interessadas em cada mudança que queira fazer.

O que se está a passar com as mudanças propostas para a Fundação da Ciência e Tecnologia é, a esse nível, muito ilustrativo. Durante décadas, a FCT era um exemplo de mau funcionamento, de atrasos no pagamento de bolsas e de geração de instabilidade na vida dos bolseiros. Perdeu-se a conta aos concursos impugnados, criticados ou polémicos e muitas das denúncias desse caos vinham precisamente dos cientistas e de organizações que dizem representá-los. Agora que o Governo apresenta uma mudança da organização, são essas mesmas vozes que se opõem e defendem o status quo.

O Governo sabe também que uma boa parte das reformas se ganham ou perdem na opinião pública e na forma como a mediana sociológica do país as entender.

Por fim, o Governo não desconhece que as tentativas de mudança causam desgaste político imediato em nome de um eventual reconhecimento futuro — se as mudanças foram efetivas e eficazes.

Se se perder nos aspetos que geram 95% do desgaste apesar de terem apenas 5% de importância de cada dossier, rapidamente o Governo vai perder o foco e em pouco tempo estará ocupado a apagar fogos e a fazer a gestão de danos das pequenas polémicas públicas.

Se está disponível para assumir o custo das mudanças, então que se concentre em assuntos estruturais que podem fazer mesmo a diferença.

Alimentar um bebé em duas horas por dia Seria maravilhoso, não é?

Num dia abrasador de agosto, com Portugal sob elevadas temperaturas e já em ritmo de férias, uma polémica inesperada veio aquecer o debate público. No centro da discussão está o direito das mães a duas horas diárias de dispensa para amamentação — um benefício previsto na lei laboral portuguesa.

Confesso que, do meu lugar de privilégio de quem trabalha numa empresa que respeita a individualidade de cada um dos seus colaboradores — fiquei genuinamente surpreendida com algumas das declarações da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Em especial, aquela em que a ministra afirma: “Acho difícil de conceber que, depois dos dois anos, uma criança tenha que ser alimentada ao peito durante o horário de trabalho. Isso quer dizer que se calhar não come mais nada, o que é estranho.”

Primeiro, custa-me a acreditar que a Ministra pense mesmo que essas duas horas de dispensa servem exclusivamente para alimentar bebés ao longo do dia. Se for esse o caso, talvez seja altura de lhe explicarmos que não é bem assim. Na prática, essas horas são, muitas vezes, uma forma de passar mais tempo com os filhos — seja de manhã, seja ao final do dia — e de tornar a logística familiar um pouco menos caótica.

E, já agora, convém esclarecer uma coisa: alimentar um bebé em duas horas por dia? Seria maravilhoso, não é? Um bebé que mama das 8h às 10h e depois está saciado, calmo e indiferente ao mundo até ao dia seguinte. Se existisse, era provavelmente vendido em versão cápsula na farmácia mais próxima.

O segundo motivo pelo qual fiquei tão surpreendida é simples: tenho uma filha de quatro anos que mamou até aos três (mesmo tendo feito introdução alimentar aos seis meses). Por escolha minha e dela. Como trabalho numa empresa que respeita as diferentes fases da vida de cada pessoa, nunca senti necessidade de reduzir o meu horário, nem de entrar em burocracias como a apresentação de um atestado médico que, na prática, só serve para sobrecarregar ainda mais os médicos de família. Curiosamente, isso não me impediu de amamentar várias vezes durante o horário de trabalho — e, mais importante ainda, nunca comprometeu o meu desempenho profissional.

E é precisamente esse o ponto onde queria chegar: a discussão não devia centrar-se nestas duas horas, nem nas mulheres que — supostamente — tentam tirar proveito da lei. O debate que vale a pena ter é sobre como criar condições para que nenhuma mulher sinta necessidade de “enganar” a sua empresa ou de ajustar-se ao silêncio. Porque quando existe respeito, confiança e flexibilidade, tudo se encaixa — incluindo a amamentação.

Empresas que apostam numa cultura de confiança e flexibilidade sabem que não é preciso controlar ao minuto para garantir resultados. Pelo contrário, quando se dá espaço às pessoas para serem inteiras, para conciliarem a vida profissional com a pessoal sem culpa nem obstáculos, o retorno é claro: mais motivação, mais compromisso, mais lealdade. Apoiar uma mãe a amamentar, um pai a acompanhar o filho ao médico ou qualquer colaborador nas suas necessidades reais, não é uma cedência — é uma demonstração de maturidade organizacional. E, no final, todos ganham.

Nagasaki, a cidade portuguesa que a bomba atómica destruiu…

Oito décadas depois da explosão que, a 9 de agosto de 1945, reduziu a cinzas grande parte de Nagasaki, é impossível não refletir sobre o que ali se perdeu. Muito se falou, e continua a falar, sobre as vidas ceifadas, o trauma coletivo e o impacto geopolítico que a bomba atómica deixou no Japão e no mundo. Mas há uma memória pouco conhecida e raramente evocada: parte do que foi destruído naquela manhã dramática tinha sido, séculos antes, erguido com o contributo decisivo dos portugueses.

A ligação entre Portugal e Nagasaki remonta ao século XVI. Em 1543, os navegadores portugueses foram os primeiros europeus a aportar ao Japão, inaugurando uma rota marítima e cultural que ligava Lisboa a portos distantes como Goa, Malaca, Macau e, por fim, Kyushu. Pouco depois, missionários jesuítas e comerciantes lusos encontraram na baía de Nagasaki um local estratégico para o comércio com o arquipélago. O relevo recortado e montanhoso lembrava-lhes Lisboa, a cidade das sete colinas. Foi essa semelhança que inspirou e orientou o traçado urbano de um porto seguro e bem protegido, com cais, armazéns e ruas desenhadas à maneira europeia.

A partir dessa base, estabeleceu-se um ponto de encontro único no Extremo Oriente. Ali cruzavam-se seda chinesa e vinho português, porcelana japonesa e açúcar de Macau, livros e mapas, pergaminho e papel de arroz. Não era apenas comércio: havia intercâmbio de técnicas de construção naval, de métodos agrícolas e até de práticas artísticas. A influência lusa entrou também no idioma japonês — palavras como pan (pão), tabako (tabaco) ou biru (do inglês beer, via português) são vestígios dessa primeira globalização.

O intercâmbio linguístico fez-se nos dois sentidos. Do japonês chegaram ao português termos que hoje usamos sem pensar na sua origem. Catana, quimono, samurai, bonsai, biombo ou tempura são alguns exemplos. O caso de biombo é particularmente curioso: vem de byōbu, literalmente “protetor contra o vento”, uma peça de mobiliário que fascinou os europeus pela delicadeza e funcionalidade. Já tempura é herdeira da palavra latina tempora, associada aos dias de jejum, e ganhou no Japão uma identidade culinária própria.

Nagasaki não foi apenas um entreposto comercial. Tornou-se um espaço de convivência cultural e religiosa. Igrejas ergueram-se junto a armazéns, e artistas japoneses começaram a pintar perspetivas ao estilo europeu, influenciados pelas gravuras trazidas de Lisboa e Antuérpia. Essa convivência, porém, foi interrompida no século XVII, quando o xogunato Tokugawa fechou o país aos estrangeiros, confinando a presença portuguesa e substituindo-a pela holandesa na ilha artificial de Dejima.

Séculos mais tarde, no verão de 1945, a cidade que nascera desse encontro entre Oriente e Ocidente foi escolhida como alvo da segunda bomba atómica da História. O que a explosão destruiu não foi apenas um centro urbano, mas também um legado que tinha atravessado oceanos e séculos. Ao pensar nesse momento, é impossível não recordar que nós, portugueses, ajudámos a construir parte do que ali se perdeu.

Hoje, ao pronunciarmos palavras japonesas incorporadas no nosso vocabulário, reativamos um elo invisível que liga Lisboa a Nagasaki. A cidade japonesa, reconstruída, continua a olhar para o mar como a capital portuguesa. Ambas sabem que as águas que as separam são também as que, outrora, as uniram. É essa a lição que sobrevive ao tempo: entre Portugal e Japão, os laços não se medem apenas em distâncias geográficas, mas em memórias partilhadas que resistem à própria destruição.

Linha Cronológica – Portugal e Japão até Nagasaki (1543–1945)
1543 – Chegada dos primeiros portugueses ao Japão, na ilha de Tanegashima. Introdução das armas de fogo.
1549 – São Francisco Xavier inicia a missão jesuíta no Japão.
1571 – Fundação de Nagasaki com apoio técnico português. Traçado urbano inspirado em Lisboa.
1580–1600 – Nagasaki floresce como porto luso-japonês, com intercâmbio comercial, religioso e cultural.
1600–1639 – Perseguições cristãs e fechamento do Japão ao exterior. Fim da presença portuguesa direta.
Séculos XVII–XIX – Palavras portuguesas permanecem no japonês (pan, tabako, koppu), e palavras japonesas entram no português (catana, quimono, biombo, bonsai, tempura).
1854 – Reabertura do Japão ao comércio exterior.
1945 – 9 de agosto: bomba atómica devasta Nagasaki, destruindo também parte do legado arquitetónico e urbano herdado do período português.

Fundador da Rolex foi investigado pelos serviços secretos britânicos sob suspeita de ser espião nazi

Hans Wilsdorf, o fundador da Rolex, esteve sob suspeita de ser espião para os nazis durante a II Guerra Mundial. A revelação surgiu em documentos dos Arquivos Nacionais britânicos que foram desclassificados, e que indicam que o empresário alemão naturalizado britânico foi investigado pelo MI5, os serviços secretos do Reino Unido dedicados a assuntos internos.

Os documentos em causa remontam ao período entre 1941 e 1943, décadas depois de Hans Wilsdorf se ter mudado para o Reino Unido, relata o jornal britânico The Telegraph. Em 1941, um relatório citava o cônsul britânico em Genebra e as suas crenças em como o fundador da Rolex era “muito conhecido pelas suas fortes simpatias pelos nazis” e que o irmão, Karl, era um “alegado membro ativo do ministério da Propaganda de Goebbels”.

O fundador da Rolex tinha sediado a empresa em Genebra, depois de ter começado a criar os famosos relógios no Reino Unido. O cônsul referia que Karl Wilsdorf “se servia de Hans Wilsdorf em Genebra para divulgar propaganda nazi em todo o mundo: “Ouvimos que Hans é, por consequência, vigiado pela polícia federal suíça”, adiantava.

Em 1943, surgiu um novo relatório que detalhava o interesse dos serviços secretos britânicos nos negócios da Rolex, de que Hans Wilsdorf e a mulher, a britânica Florence Crotty, eram “acionistas maioritários”: “Ele é suspeito de espionagem a favor do inimigo” e conhecido como “um forte nazi”, sustentavam os serviços secretos.

Apesar de em 1941 os serviços secretos britânicos terem sugerido que a empresa fosse colocada numa lista negra, ao mesmo tempo era feito o aviso em como tal poderia não servir os interesses do Reino Unido. Afinal, o comércio da empresa era feito com muitos territórios incluídos no Império Britânico.

Em 1943, foi posta de parte a possibilidade de banir a empresa, apesar de um relatório desse ano indicar que não existiam “quaisquer dúvidas” sobre as opiniões políticas de Hans Wilsdorf.

Ao The Telegraph, um porta-voz da Rolex confirma que a empresa está a par das alegações. “Tendo em conta a sensibilidade […], já criámos uma equipa de historiadores independentes e com autoridade na matéria que está a investigar o papel exato de Hans Wilsdorf durante este período”, afirmou. Segundo o jornal, a equipa é liderada pelo historiador suíço Marc Perrenoud e quando os resultados estiverem disponíveis, serão publicados.

Um especialista ouvido pelo jornal explica que o interesse do MI5 pelo fundador da Rolex pode ter surgido de uma oferta que o mesmo fazia de relógios à Marinha de Itália. Ao mesmo tempo, o especialista questiona os verdadeiros motivos para o empresário enviar, como fazia, relógios, comida e tabaco aos prisioneiros de guerra britânicos.

Segundo o jornal britânico, acabaram por não ser detetadas atividades “indesejáveis” por parte da Rolex no período entre 1941 e 1943. Hans Wilsdorf morreu em 1960, na Suíça.

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