A Mulher da Casa Abandonada, um podcast brasileiro tornado série que dá voz à vítima

“Esta história nunca acaba para mim. Desde que o primeiro episódio do podcast foi para o ar, há três anos, não há um dia em que eu não fale com alguém sobre o caso da senhora procurada pelo FBI que se refugiou numa mansão”, diz Chico Felitti, autor de A Mulher da Casa Abandonada, podcast da Folha de São Paulo que atingiu a maior audiência do género no Brasil e mais de 11 milhões de downloads.
Agora, depois de muitas negociações, tornou-se um documentário de três episódios cheios de suspense e novas revelações, lançado pela plataforma de streaming Amazon Prime Video. Os três capítulos estreiam-se ao mesmo tempo, esta sexta-feira.
“Tentei não atrapalhar muito a produção, não entrar no caminho”, conta Felitti, que vendeu os direitos de adaptação para streaming depois de seis meses a receber todo o tipo de propostas, “algumas sem pés nem cabeça”, até que uma fez sentido.
“Quando me disseram que a ideia era produzir uma série documental, dirigida pela Kátia Lund, fiquei tranquilo”, diz o jornalista. Kátia Lund é co-realizadora de um dos mais bem-sucedidos filmes brasileiros de todos os tempos, Cidade de Deus, de 2002, nomeado para quatro Óscares, inclusive o de Realização.
Os sete episódios do podcast consistiam na reportagem de Chico Felitti sobre Margarida Bonetti, que foi acusada nos Estados Unidos de manter uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão por cerca de 20 anos. No final dos anos 1990, quando o caso ainda estava a ser investigado pelas autoridades americanas, Bonetti regressou ao Brasil e instalou-se num casarão semi-devoluto no bairro de Higienópolis, em São Paulo.
Uma atracção turística macabra
A série documental A Mulher da Casa Abandonada parte da enorme repercussão do podcast, que a certa altura se transformou numa perseguição policial e mediática, com cobertura ao vivo de programas de crime na TV brasileira, além de ter gerado uma histeria colectiva com multidões na porta da casa abandonada em questão, que quase se tornou numa macabra atracção turística.
Numa tarde em particular, houve um raide policial, após uma denúncia de maus tratos a animais, e a activista dos direitos dos animais Luisa Mell saltou o muro da casa para resgatar um cachorrinho pinscher. O destino do ex-animal de estimação de Margarida Bonetti, aliás, é revelado no episódio extra do podcast lançado na última quarta-feira — para alívio dos amantes dos animais, é um final feliz. Houve denúncias de abandono de pessoa incapaz, feita por uma vizinha que tomou as dores de Bonetti, então já uma fugitiva do FBI.
DR
“A parte que se passa no Brasil, o Chico contou muito bem no podcast, então parti para o outro lado, não queria fazer um documentário sem novidades”, conta Kátia Lund, numa entrevista por vídeo. A série documental tem diversos depoimentos de agentes federais norte-americanos envolvidos no processo contra o casal René e Margarida Bonetti — René deixa de se tornar parte da história a certa altura e não fica claro quando o casamento se dissolve.
Além de cenas na casa, há entrevistas com vizinhos e, o que faz toda a diferença, a presença de Hilda Santos, a mulher que se mudou para Washington com o casal para trabalhar como empregada doméstica e que, uma vez lá chegada, passou a ser tratada de maneira desumana. Na série, é Santos quem conta, na primeira pessoa, os abusos que sofreu. Ela, a vítima, é finalmente a personagem principal.
Hilda Santos fala
Mas não foi sem muito trabalho que tal aconteceu. No podcast, Chico Felitti fala com Hilda Santos por telefone, mas ela prefere não dar uma entrevista. A repercussão do trabalho do jornalista, no entanto, foi tão grande que Hilda, que continuou nos Estados Unidos após ser libertada, viu excertos das notícias sobre a ida da polícia à casa degradada.
Foi a primeira vez que a ex-empregada viu a sua ex-patroa, Margarida Bonetti, com roupas velhas e a cara coberta de pomada branca, a morar num casarão em estado de abandono.
“Ela ficou muito chocada com o estado da casa, não se conformava com isso”, lembra Kátia Lund. Hilda Santos passou muitos anos naquela casa, sempre como empregada, desde muito nova. Os seus patrões eram os pais de Bonetti, e ela cuidara da menina Margarida, a mais nova de três filhas, quando era criança.
Enquanto esteve sob os cuidados dos pais de Bonetti, e dos seus diversos funcionários, a mansão de Higienópolis era impecável, acolhendo jantares e festas elegantes frequentadas pela elite paulistana. O oposto do que é agora, uma casa cheia de lixo, a cair aos pedaços, habitada por uma acumuladora com um passado marcado pela suspeita de um crime. É a única casa numa rua de prédios elegantes, num bairro que continua a ser de elite.
O depoimento de Hilda Santos aconteceu depois de uma semana de convivência intensa com Kátia Lund. “Fiquei cinco dias, cinco horas por dia, a conversar com a Hilda até ela aceitar o meu convite para contar o seu lado da história para as câmaras”, conta a realizadora. “Ela falava muito sobre o que tinha vivido, acho que tinha uma grande necessidade de contar a sua versão, mas hesitou em dar a entrevista. Quando decidiu, decidiu a sério, e contou tudo que viveu.”
Exlusivo PÚBLICO/Folha de S. Paulo
