Quando as raízes são esquecidas…

1. Em fevereiro de 1945, nas margens do Mar Negro, mais precisamente em Yalta, reuniam-se Franklin D. Roosevelt, Josef Stalin e Winston Churchill. A fotografia do acordo final é um ícone de uma mundividência em que se une o leste euro-asiático, Europa e América.

Em agosto de 2025, ocorreu uma reunião altamente simbólica entre os presidentes dos Estados Unidos e da Rússia na Base Conjunta Elmendorf‑Richardson, no Alasca, para tratar do futuro da Ucrânia e, por inerência, do futuro da Europa. Mas, onde está a Europa? A Europa assistiu de fora, o que evidencia com clareza a marginalização do continente nas decisões cruciais sobre o futuro.

Este “momento Alasca” é mais do que geopolítica: é um sintoma da profunda irrelevância em que a Europa redundou. Com efeito, a Europa nasceu de uma matriz espiritual inconfundível. Mas quando uma árvore corta as suas raízes, não pode esperar permanecer de pé. Hoje, assistimos ao declínio do peso europeu no mundo, não por falta de recursos, nem por debilidade económica, nem tampouco por fraqueza tecnológica, mas por uma crise mais profunda: o esquecimento da sua própria identidade.

2. A sombra deste declínio político reflete a perda das raízes judaico-cristãs que estruturaram a alma da Europa. Durante séculos, a ética cristã – com seus princípios de dignidade humana, justiça, solidariedade e verdade transcendente – foi o espaço legítimo de expressão da civilização europeia. Hoje, em muitos círculos, ela é vista como opcional, irrelevante, desprovida de toda a força e influência.

Ao longo de séculos, buscou-se uma secularização de tudo o que era religioso e espiritual na Europa, acabando-se num laicismo (bastante diferente da sã laicidade) ateu e agnóstico, que encerra o dado religioso apenas na esfera privada. Isto conduziu à recusa em incluir a referência às raízes cristãs da Europa na Constituição Europeia (anos de 2003 e 2004), situação que levou São João Paulo II a recordar, com amargura, que não se entende a Europa sem a referência à fé cristã. São sintomáticas estas palavras: “O ‘velho’ continente tem necessidade de Jesus Cristo para não perder a sua alma e para não perder tudo o que o fez grande no passado”. (1)

O pontificado de Bento XVI ficou marcado por sucessivos convites para a Europa fazer exame de consciência a respeito da sua identidade mais profunda, sublinhando como só se entende o projeto europeu com base no Direito romano, na Filosofia grega e na Ética judaico-cristã. A colocação de Deus como fundamento transcendente da realidade é essencial para que subsistam aqueles valores fundamentais que pautam a vida europeia. Com efeito, como afirmava Bento XVI falando no Bundestag, na Alemanha: “A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa”.(2) Sem a visão de transcendência, as cadeias de significado rompem-se e a cultura degrada-se em utilitarismo.

Também o Papa Francisco, na visita ao Parlamento Europeu em 2014, assinalou de forma marcante que “uma Europa que já não seja capaz de se abrir à dimensão transcendente da vida é uma Europa que lentamente corre o risco de perder a sua própria alma e também aquele ‘espírito humanista’ que naturalmente ama e defende”.(3) Com efeito, o vazio espiritual nunca é neutro: destrói a herança cultural e torna a político impotente.

A necessidade incontornável do transcendente para fundar aquilo que é a vida social foi também assinalada pelo Papa Leão XIV quando, dirigindo-se aos governantes que participaram no Jubileu, afirmou: “Para ter um ponto de referência unitário na ação política, em vez de excluir a priori nos processos decisórios a consideração do transcendente, será útil procurar nele o que une todos”.(4)

De facto, a realidade é muito clara: sem essa bússola ética que orientou a Europa durante séculos, as instituições perdem coerência, a solidariedade estreita-se, o testemunho no mundo esvai-se. Sem princípios que transcendam o imediato, as decisões tornam-se reféns do cálculo e do interesse momentâneo. É imprescindível reencontrar as raízes da Europa se queremos recuperar a unidade na diversidade, que sempre foi a identidade europeia.

3. Este momento é sério, mas não sem esperança. A crise pode ser um convite à conversão – um retorno consciente às fontes que forjaram nossa identidade.

Em primeiro lugar, é necessário ter memória. Recuperar a memória das raízes judaico-cristãs, não como nostalgia, mas como renovação inteligente de uma cultura que promove o bem comum, a dignidade de cada pessoa e a verdade que torna a convivência humana possível. Neste sentido, é necessário recordar a importância do conceito de família edificado sobre o matrimónio monogâmico, única forma de garantir a igual dignidade entre homem e mulher.

O segundo desafio é de intervenção na vida pública. É necessário integrar essas raízes na vida pública – na formação dos responsáveis, no espaço da persuasão democrática, na educação, na solidariedade internacional – não como vestígios, mas como horizonte que sustenta o futuro. Neste desafio abrem-se duas portas essenciais: uma recuperação da ética como orientação fundamental para a vida e presença pública; devolver a dignidade à ação pública e política, para que seja sempre e por todos vista e vivida como missão de serviço ao bem comum.

Terceiro desafio premente: presença mundial. Temos de construir uma presença europeia capaz de dialogar com o mundo – diplomática, cultural, ética – que reforce a relevância internacional da Europa como ator moral e civilizacional. E, ao mesmo tempo, oferecer ao mundo algo único: a audácia de viver segundo ideais que talvez outros esqueceram, mas que são também fermento de esperança.

A Europa esqueceu a fé que construiu as suas catedrais e universidades, inspirou a sua arte e moldou a sua política. Em troca, abraçou um pragmatismo sem horizonte, uma neutralidade que é, afinal, vazio. Sem Deus, não há visão. Sem visão, não há liderança. E sem liderança, a Europa torna-se irrelevante.

Este é o momento de sermos europeus com raízes fortes, que entendem que a relevância não se reconquista apenas com poder ou tecnologia, mas com verdade, beleza e compaixão. Que sejamos, novamente, farol de civilização, guiando o mundo de volta à dignidade, ao respeito e ao horizonte transcendente.

Ainda que com enquadramento bélico, vale a pena recordar o que G. K. Chesterton escreveu: “O verdadeiro soldado não combate porque tem diante de si algo que odeia. Ele combate porque tem atrás de si algo que ele ama”. Será que a Europa saberá o que ama para ter algo que defender? (5)

(1) Discurso, 23 de fevereiro de 2002, n. 4.
(2) Bento XVI, Discurso, 22 de setembro de 2011.
(3) Francisco, Discurso, 25 de novembro de 2014.
(4) Leão XIV, Discurso, 21 de junho de 2025.
(5) G. K. Chesterton, Our notebook, in The Illustrated London News, 31 de dezembro de 1910, p.
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Portugal a várias velocidades: a atratividade regional está a falhar

Portugal não é um país pequeno, é um país concentrado, centralizado e institucionalmente preguiçoso quando se trata de repensar a organização do seu território. A geografia administrativa permanece quase inalterada há décadas. A arquitetura da governação ignora, em grande medida, a diversidade de contextos regionais, e os fundos europeus, que deveriam ser o principal instrumento de transformação territorial, são frequentemente usados para reforçar o que já existe em vez de corrigir desigualdades.

A OCDE tem vindo a desmontar, com precisão analítica e base empírica robusta, a ilusão da homogeneidade territorial em Portugal. Os quatro relatórios publicados no âmbito do programa Rethinking Regional Attractiveness constituem uma avaliação sem precedentes sobre a capacidade das regiões portuguesas para atrair e reter talento, investimento e visitantes. As conclusões são claras: Portugal é um país a várias velocidades, com assimetrias profundas e modelos de desenvolvimento regional desconectados entre si.

O Norte apresenta dinamismo industrial e alguma capacidade de inovação, mas enfrenta riscos demográficos graves e fraca retenção de talento jovem. A Área Metropolitana de Lisboa concentra investimento, conhecimento e conectividade global, mas sofre de polarização funcional, fragmentação institucional e uma pressão habitacional insustentável. O Alentejo tem recursos naturais e espaço, mas regista os piores indicadores de coesão social, inovação e vitalidade económica. O Algarve vive da monocultura turística, com fragilidades digitais, exclusão territorial no interior e elevada exposição a choques externos.

O diagnóstico é consistente, transversal e conhecido. Não é a falta de dados, estudos ou planos estratégicos que impede a correção destas assimetrias. É a ausência de uma política territorial consequente, liderada por um Estado que continua a confundir centralismo com coesão.

Em vez de desenhar políticas públicas diferenciadas, adaptadas às especificidades de cada território, o Estado português insiste em aplicar soluções uniformes, tecnocráticas e indiferenciadas. Os Programas Regionais do Portugal 2030 continuam a ser moldados por lógicas setoriais verticais, com escassa integração territorial e pouca margem para estratégias genuinamente regionais. Os fundos europeus, em vez de promoverem transformação, são muitas vezes absorvidos por estruturas administrativas que reproduzem inércia, desperdício e subaproveitamento estratégico.

A política de coesão da União Europeia oferece instrumentos claros: especialização inteligente, governação multinível, monitorização por indicadores territoriais, reforço da capacidade institucional local. Portugal adere formalmente a estes princípios, mas não os concretiza. Os relatórios da OCDE demonstram que, fora da Área Metropolitana de Lisboa, o país falha sistematicamente em transformar potencial em atratividade. A taxa de emprego jovem no Alentejo é a mais baixa do país. O interior do Algarve permanece à margem da conectividade digital básica. O Norte perde talento qualificado para os mesmos centros urbanos que já concentram quase tudo. A governação intermunicipal é frágil, a cooperação regional é episódica e o planeamento integrado continua a ser uma exceção.

A fragmentação da governação territorial reflete-se também na incapacidade de alinhar políticas nacionais com os objetivos europeus. Enquanto a União Europeia insiste numa transição digital, verde e coesa, Portugal responde com planos genéricos, metas vagas e decisões que continuam a privilegiar os territórios já dominantes. A transição energética no Alentejo não se traduz em fixação de população ou renovação institucional. O sucesso turístico do Algarve não gera redistribuição de riqueza nem requalificação do interior. A concentração de investimento em Lisboa não é acompanhada por mecanismos de compensação que promovam equilíbrio funcional entre regiões.

O verdadeiro obstáculo à atratividade regional em Portugal é político. É o facto de continuarmos sem uma visão territorial integrada, sem descentralização efetiva, sem articulação real entre níveis de governação. O país precisa de deixar de ver o território como um espaço a gerir e começar a tratá-lo como um sistema a desenvolver. Isso implica reformar profundamente a governação local, criar instrumentos de planeamento intermunicipal vinculativo, assegurar recursos adequados às regiões e assumir, com clareza, que a coesão territorial exige escolhas difíceis, prioridades definidas e coragem institucional.

A atratividade regional não é um luxo analítico, é uma condição estrutural para o desenvolvimento sustentável, a justiça social e a competitividade económica. A Europa já o percebeu. Está a investir em regiões inteligentes, em territórios resilientes, em estratégias diferenciadas. Portugal, se quiser acompanhar, terá de fazer mais do que aceitar fundos: terá de transformar o seu modelo de decisão política.

As ferramentas estão disponíveis, os dados estão acessíveis, os diagnósticos estão feitos. O que falta é o essencial: vontade de mudar, e essa responsabilidade não é dos relatórios técnicos, é da governação central.

“Sem uma viragem estratégica clara, Portugal arrisca-se a perpetuar um modelo territorial desequilibrado, onde os recursos europeus alimentam a estagnação em vez de promoverem a convergência.”

O dia em que deixei de ver a minha filha

Tudo mudou para o José numa única semana: a separação, as acusações, a ordem judicial. Nove anos depois, continua sem abraçar a filha. Neste e nos próximos artigos, vamos percorrer esta história passo a passo.

José recordou com clareza o dia em que a sua vida mudou para sempre. Na altura, a Maria, a sua única filha, tinha apenas seis anos e meio. Pouco tempo depois da separação da mãe da Maria, ele viu-se repentinamente afastado do convívio diário que sempre tivera com a filha. Como nos contou, esse afastamento, que inicialmente acreditou ser temporário, prolongou-se por mais de nove anos e ainda hoje, com a Maria já adolescente de 16 anos, a distância mantém-se: “O meu nome é José, tenho uma filha, a Maria (nome fictício), hoje com 16 anos e deixei de ter convívio com ela há já nove anos e meio, altura em que me separei da mãe (…) na sequência de uma queixa às autoridades, com a acusação formal de eu haver praticado crimes de violência doméstica, dois para ser exato, na forma de agressões físicas e verbais continuadas, ao longo de 6 anos, a ela e à minha filha, desde o primeiro mês de idade”.

As acusações surgiram logo após a separação, como um golpe súbito que alterou por completo a sua relação com a filha. A mãe apresentou queixa formal às autoridades, imputando a José dois crimes de violência doméstica.

Do ponto de vista psicológico, este é um padrão frequente nos casos de alienação parental: a introdução de acusações graves no momento da rutura conjugal, muitas vezes coincidente com pedidos de guarda exclusiva. A narrativa acusatória constrói-se de forma a criar medo ou rejeição na criança e a sustentar medidas judiciais que limitem ou impeçam o contacto com o pai ou mãe alienado.

José sempre negou as acusações e sentiu que a verdadeira intenção não era proteger Maria, mas sim afastá-lo definitivamente. A partir daí, iniciou-se um processo judicial que, nas suas palavras, foi usado como instrumento para justificar o corte do vínculo pai-filha, como nos partilhou: “Esse processo correu os trâmites normais, Tribunal de Instrução Criminal, que considerou existir matéria para levar o processo a julgamento, a que se seguiu o julgamento de facto, cerca de sete meses depois, em Tribunal Criminal e perante um coletivo de juízes, tendo, entretanto, por essa altura, para a regulação das responsabilidades parentais, o Tribunal de Família e Menores, quando da primeira Conferência de Pais, entendido fixar, como medida cautelar, a guarda provisória da criança, a minha filha Maria, sob a responsabilidade da mãe”.

A situação descrita é bem ilustrativa da dupla penalização que pode ocorrer na gestão de um processo judicial similar. Apesar de não existir qualquer sentença definitiva no processo criminal é tomada uma medida cautelar que inibiu o José de partilhar a guarda de Maria. A partir daquele momento, a mãe passou a ter a guarda exclusiva, enquanto José recebia uma determinação judicial que definia os seus direitos e limitações. Na prática, isso significou que, a partir daquele momento, José deixou de ter qualquer convivência regular com a filha.

Essa decisão provisória, comum em contextos de conflito parental intenso, teve impacto psicológico imediato: ao entregar a guarda exclusiva à mãe no início do processo, o tribunal criou um ambiente de convivência unilateral, onde a criança ficou exposta a apenas uma das versões da história familiar, num contexto nada saudável de deturpação da realidade, de acordo com o José: “Quanto aos direitos, obrigações e responsabilidades do pai, para além da fixação de uma pensão de alimentos, a possibilidade de ‘…poderá estar com a menor, mediante a supervisão da Segurança Social’. Parecia uma medida aceitável, dadas as circunstâncias, já que tinha absoluta consciência de que as acusações eram falsas e caluniosas e até formuladas de forma invertida, já que a vítima, na verdade, era eu, não de agressões físicas, porque nunca existiram, felizmente de parte a parte, mas de 6 anos de agressões verbais, de ofensas profundas e caluniosas, a mim, a diversos membros da minha família, incluindo os meus pais e amigos, perpetrados pela mãe da minha filha, habitualmente no calor de frequentes surtos psicóticos, movidos por um transtorno da personalidade, já então classificada de borderline (estado limite), por diversas avaliações psiquiátricas e psicológicas, nomeadamente pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), de que eu tinha provas de facto”.

Os meses transformaram-se em anos, e a ausência prolongada fez com que Maria crescesse rodeada apenas pela narrativa materna. José sente que, além de ter perdido o contacto, foi apagado da memória afetiva da filha. A decisão judicial, ainda que provisória, criou um distanciamento que se tornou cada vez mais difícil de reverter.

José acreditava que, mesmo com restrições, poderia manter algum contacto com a filha e investir na relação para restabelecer o vínculo. No entanto, essa esperança desfez-se rapidamente. Aquilo que começou como um processo judicial deveria, em teoria, proteger Maria, mas acabou por contribuir para a rutura total do vínculo afetivo entre pai e filha. José ficou com cicatrizes emocionais e sociais profundas e um sentimento de injustiça que o acompanha até hoje e a Maria cresceu sem o pai, exposta a um discurso unilateral e privado de uma relação parental equilibrada. Para a Maria, a ausência do pai ao longo da infância e adolescência criou lacunas afetivas, memórias e recordações distorcidas e uma imagem paternal construída apenas a partir da influência constante de uma única versão dos factos, da narrativa materna alienadora.

Hoje, José sobrevive com as consequências desse afastamento, o peso emocional de uma relação interrompida, a reputação abalada pelas acusações e a dor de não poder acompanhar o crescimento da filha.

Esta é a história de um pai e de uma filha alienados, separados entre si, não por sua escolha, mas por um processo que, no seu entender, transformou acusações em barreiras, e medidas cautelares em muros quase intransponíveis.

Um poema, um erro e o eco de Tirésias

A versão mais completa do mito de Narciso pode ser encontrada em Metamorfoses, um poema do século I d.C., da autoria de Ovídio, um romano apaixonado pela cultura grega. Ovídio foi, no auge da fama, exilado por Augusto – uma espécie de Reagan da época, um homem astuto que percebia que a retórica dos valores familiares era uma ferramenta política bem mais eficaz do que eleições ou exércitos – por razões que, até hoje, permanecem um mistério.

A única pista que temos é do próprio poeta, que, numa série triste de cartas em verso dirigidas ao pétreo e implacável imperador, menciona um certo carmen et error, “um poema e um erro”. O consenso académico é, desde há muito, de que tanto o poema como o erro seriam de natureza erótica. Quando li pela primeira vez Metamorfoses, despojado da poesia num semestre frio e cinzento, senti como meu esse erro de desejo capaz de, terrível, nos afastar para sempre de casa, daquele lugar que nos define.

O mito que Ovídio narra – entrançando mitos antigos que ouvira e lera, e moldando-os naquilo que consideramos a versão definitiva – é-nos familiar: Narciso, um belíssimo jovem, apaixona-se irremediavelmente pelo seu próprio reflexo depois de parar para beber numa fresca clareira. Encantado pela sedutora imagem que pensa ser um espírito da água, vê constantemente frustradas as tentativas de lhe tocar: sempre que se inclina para lhe acariciar o pescoço, toca apenas água insubstancial; quando amorosamente se dirige àquele branco rosto de mármore, os lábios que cobiça movem-se também, mas não proferem um discurso claro. Depois de dias de desespero, definha e morre. “A Morte”, escreve Ovídio, “fechou os olhos maravilhados com a beleza do seu dono”.

Mas o mito de Narciso em Ovídio é, na verdade, a segunda parte de uma história mais longa. A primeira parte relata como, antes de ter o azar de se ver, o belo Narciso provocou uma ninfa chamada Eco, que há muito o amava em segredo. Eco vivia uma maldição terrível, uma punição pela sua tendência para a tagarelice: não era capaz de falar, mas apenas de repetir o que outros dissessem. Um dia, enquanto caçava numa floresta densa, Narciso separou-se dos seus companheiros. “Está alguém aí?”, gritou; e Eco, escondendo-se, conseguiu apenas gritar de volta: “Aí!” Curioso, Narciso pediu que o estranho aparecesse. “Vem!” gritou Eco de volta. Por fim, Narciso disse: “Vamo-nos encontrar”, palavras que Eco alegremente… ecoou. Mas quando ela se revelou, Narciso ficou horrorizado e fugiu-lhe. E de um eco ferido, definhando em saudade e desejo, fica apenas, como bem sabemos, uma voz. Ovídio não especifica a razão pela qual Narciso ficou horrorizado com a visão de Eco; mas diz-nos que o subsequente e fatal arrebatamento com o seu próprio rosto foi disso uma punição.

O mito de Eco nada mais é senão uma história sobre a diferença confundida com a semelhança: nela, objecto e sujeito são de facto distintos, dois indivíduos separados, mas (pelo menos inicialmente) parecem indistinguíveis; e a história de Narciso, como sabemos, é uma história sobre a semelhança confundida com diferença, na qual o objecto e o sujeito são de facto o mesmo, mas parecem ser diferentes.

Quando ponderada contra as densas complexidades da experiência vivida, essa leitura da “identidade” não pode deixar de parecer inadequada – mais útil do que verdadeira; plana, fácil, segura. A imagem que a água reflecte nem sempre é a imagem complacente que desejávamos; a verdade é mais rica, mais complexa, muito mais exigente.

E, escusado será dizer, mais problemática. Pois um homem sonhar com a sua própria imagem reflectida nas águas era, pensavam os gregos, uma premonição da sua própria morte. O conhecimento – uma visão clara da sua própria imagem – pode ser perigoso. O conhecimento pode tornar-nos conscientes de que as certezas dos outros são muitas vezes mais convenientes do que verdadeiras, permitindo que aqueles que as alimentam vivam uma vida coerente e serena, permitindo que as suas escolhas e ideias façam uma espécie de sentido. O conhecimento das complexidades, dos homens e das coisas, desestabiliza-nos, fragmenta o sentido de quem somos, estilhaça-nos a identidade.

O que me leva ao meu segundo ponto: sabemos que a mãe de Narciso, uma ninfa, perguntou certa vez ao cego profeta Tirésias se a criança viveria até a velhice. Em Ovídio, a ninfa consulta o vetusto vidente logo após dar à luz; mas numa outra versão, uma versão que prefiro – pois não serão a profecia e a gravidez duas condições em que se está cheio de futuro? – a mãe de Narciso aproxima-se do velho profeta pouco antes do parto, quando ainda transporta a criança dentro de si.

Nesta versão, a rapariga procura conhecimento, desejando saber se o filho por nascer terá uma boa vida. O velho, exausto de todo o conhecimento, com a pele tão dura como couro velho, de mãos retorcidas, assusta, talvez, a rapariga com os olhos riscados de albumina que, dentro de si, na escuridão, vêem tudo. E que vêem eles? Vêem a bela miúda que ali está de pé, lábios húmidos de medo; vêem, sob o vestido de gaze, a pele esticada e brilhante da enorme barriga pronta a estourar, como um fruto, tão grande que o crescente de pelos púbicos desapareceu, para baixo daquela linha, onde apenas os seus olhos cegos podem ver; vêem o feto crescido dentro da barriga, e, além disso, como a semente no interior da fruta, um belo rapaz, membros longos, dentro da rapariga cansada e deformada. E eles conseguem ver, por fim, o rapaz a tentar abraçar o que vê na água; o vidente consegue ver as pontas molhadas dos seus caracóis no lago; consegue ver a visão do rapaz embaçada à medida que o seu rosto se aproxima da água, todas as distinções ondulando já para o nada: o velho consegue ver tudo, e ele já sabe, como o rapaz não sabe e jamais poderá saber, que aquilo que ele procura não está ali, que o abraço que ele procura iludi-lo-á sempre, que não há nada entre os lábios e a água, entre o desejo e o reflexo, apenas o mito e o espelho, apenas desejo irrealizável, e loucura e extinção.

Sim, diz o velho por fim, piscando os seus olhos cegos de volta ao presente: um homem cego tentando não ver, um velho tentando impedir que a rapariga tente conhecer o mistério da identidade; uma tarefa desesperada, como bem sabe. Sim, a criança que ainda não nasceu pode viver até a velhice: Si se non noverit. Apenas se jamais se conhecer.

Do Estado de Direito ao Estado de Suspeita: o que esconde o Chat Control?

Com o pretexto de proteger as crianças contra o abuso sexual online, a União Europeia prepara-se para abrir as portas a uma das maiores violações da privacidade da história digital europeia. A proposta legislativa conhecida como Chat Control (Regulamento para Prevenção e Combate ao Abuso Sexual de Crianças) pretende impor a vigilância sistemática das comunicações privadas digitais — incluindo mensagens encriptadas — através de algoritmos de inteligência artificial. Se for aprovada, a Europa deixará de ser um espaço onde a privacidade é garantida por princípio. Passará a ser uma zona de suspeição digital permanente, onde todos somos potenciais criminosos à espera de triagem automatizada.

A proposta contraria frontalmente os artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que protegem a vida privada e os dados pessoais. O próprio Tribunal de Justiça da UE já reafirmou, em decisões como Digital Rights Ireland (C-293/12) e La Quadrature du Net (C-511/18), que a vigilância massiva e indiscriminada é ilegal, mesmo com motivações legítimas. Mas a Comissão Europeia, numa inversão perigosa da lógica constitucional, defende que o interesse superior da criança justifica medidas de exceção.É a porta de entrada para o Estado de exceção digital.

Com o Chat Control, a tua vida privada deixa de ser tua. Eis alguns cenários perfeitamente possíveis:

Envias uma foto do teu filho no banho ao médico? O algoritmo deteta nudez. A tua conta é bloqueada. O teu nome é sinalizado num sistema europeu.

Tens uma relação à distância e trocas vídeos íntimos com consentimento? A tua intimidade será escutada por um filtro automático. O conteúdo pode ser retido ou investigado.

Publicas um conto com metáforas sensíveis? As tuas palavras são analisadas por uma IA sem contexto. És classificado como potencial risco.

O método técnico para esta vigilância é conhecido como client-side scanning — a leitura das tuas mensagens diretamente no teu dispositivo, antes da encriptação. Isso significa que nem o WhatsApp, nem o Signal, nem nenhum outro serviço pode garantir privacidade real. O teu telemóvel será o agente infiltrado do regulamento europeu.

O perigo não está apenas na proposta atual, mas no precedente que cria.
Se hoje aceitamos que nos escutem para proteger crianças, amanhã aceitar-se-á para combater terrorismo, desinformação, discurso de ódio ou até protestos. A lista cresce com a conveniência dos tempos políticos.

A Amnistia Internacional já declarou que o Chat Control pode “normalizar a vigilância massiva e minar décadas de proteções de direitos humanos”. O Relator Especial da ONU para a Liberdade de Expressão, em parecer de 2023, alertou que este tipo de legislação “abre caminho à censura algorítmica e à criminalização da comunicação privada”.

O Chat Control é mais do que uma má proposta legislativa. É um ensaio de autoritarismo digital com rosto europeu. Destruir a privacidade para proteger a infância é instaurar um sistema de vigilância total que sacrifica os inocentes para castigar os culpados. A democracia não se constrói com escutas preventivas. A liberdade não se salva apagando-se.
Ou gritamos agora — ou calamo-nos de vez.

A tecnologia que se escreve à mão: quando a inovação respeita o essencial

Inovar não é, necessariamente, romper com o passado. Em muitos casos, é compreender o que merece ser mantido. É reconhecer o que continua a funcionar, o que tem impacto real, o que resiste ao tempo — e, a partir daí, construir algo novo, útil e intencional.

Este princípio ganha especial relevância quando falamos de educação — um terreno onde tradição e progresso coexistem de forma delicada. Nas últimas décadas, assistimos a uma transformação digital acelerada, com promessas de acessibilidade, personalização e interatividade. Mas à medida que se multiplicam as plataformas, apps e soluções ditas “disruptivas”, é inevitável colocar uma questão simples, mas crucial: o que é que realmente ajuda os alunos a aprender melhor?

A resposta raramente está na sofisticação tecnológica. Está, muitas vezes, nos gestos antigos que continuam a provar o seu valor — como o de escrever à mão. A escrita manual, para além de uma prática essencial de expressão, é também uma ferramenta cognitiva profunda. Estimula a memória, organiza o pensamento e cria uma relação mais duradoura com o conteúdo. É uma prática que exige tempo, atenção e presença — três ingredientes que, curiosamente, parecem escassear na era digital.

Mas isso não significa que devamos opor papel e tecnologia. O verdadeiro desafio está em reconciliá-los — em criar soluções que partam da escrita e a expandam, sem a diluir. Soluções que não anulem o processo, mas que o acompanhem e reforcem.

É precisamente nesse espaço intermédio que começa a emergir uma nova geração de ferramentas educativas. Tecnologias que não chegam para substituir o que já existe, mas para melhorar o que os alunos já fazem. Que respeitam o gesto de escrever, mas que acrescentam a ele organização, clareza, orientação. Que digitalizam, sim, mas apenas para devolver ao aluno uma experiência de estudo mais estruturada, mais eficaz, mais autónoma.

Esta abordagem representa uma mudança profunda na forma como pensamos a inovação. Deixa de ser uma corrida por funcionalidades e passa a ser uma escuta ativa das necessidades reais: a dificuldade de organizar apontamentos, a falta de apoio em casa, o tempo reduzido de contacto com os professores, a fragmentação da atenção. É a partir dessas realidades concretas que a tecnologia pode — e deve — intervir.

E quando o faz com esta intenção, os resultados são visíveis. Os alunos sentem-se acompanhados sem perderem autonomia. Os professores veem o seu trabalho reforçado, não substituído. E os pais ganham confiança num sistema que alia tradição a inovação, sem cair em modismos tecnológicos que pouco contribuem para a aprendizagem verdadeira.

Este é o tipo de inovação que mais falta faz à educação. Não a que impressiona, mas a que se integra. Não a que brilha nas apresentações, mas a que responde a necessidades silenciosas. Não a que rompe com tudo, mas a que constrói com o que já existe — respeitando o essencial.

Porque a educação não se faz apenas com acesso à informação. Faz-se com estrutura, tempo e foco. E é precisamente aí que a tecnologia deve atuar: não para impor novos caminhos, mas para tornar mais claro e seguro o caminho que o aluno já está a percorrer.

A escrita à mão continuará a ser uma ferramenta central no ato de aprender. Mas pode — e deve — ser acompanhada de soluções que organizam, esclarecem e apoiam. Desde que essas soluções saibam escutar. Desde que saibam o seu lugar.

E esse lugar, mais do que nunca, é ao lado do aluno — não à frente dele.

“Vizinhos” Putin e Trump garantem que cimeira foi “construtiva” e que “é preciso virar a página”

Num momento que poderia parecer impossível para muitos, eis que o mundo assistiu, esta sexta-feira, a uma conferência de imprensa conjunta entre o Presidente dos EUA e o Presidente da Rússia.

Lado a lado, num palco onde se lia “Pursuing Peace” (“Em busca da paz”), Vladimir Putin e Donald Trump surgiram em conjunto e falaram, um a seguir ao outro, sobre o que retiraram das pouco menos de três horas de reunião à porta fechada que tiveram hoje, no Alasca, para discutir o futuro da Ucrânia.

Sobre o tema que os levou até Anchorage pouco foi adiantado em concreto para além de que terá sido uma conversa “construtiva”. Um acordo não parece ter sido alcançado, mas antes “uma hipótese de o atingir”, garantiu Donald Trump, que assegurou, durante a sua intervenção, que vai ligar à NATO e falar com Zelensky sobre o que saiu deste encontro com o líder russo.

“Não chegamos lá, mas temos uma hipótese de chegar lá”, simplificou Trump, garantindo que foi feito “grande progresso hoje” e que falará novamente com o homólogo russo. “Vamos ver-nos brevemente, provavelmente”, garantiu a Putin, que o convidou de imediato a visitar Moscovo, sem receber uma resposta conclusiva.

“Olá vizinho. É bom ver-te”

Antes de Trump, no entanto, falara Putin. O líder russo rapidamente começou a desenhar o que se poderia esperar do conteúdo desta conferência inusitada ao garantir que cumprimentou Trump com um “Olá, vizinho. É bom ver-te”, ao chegar a solo norte-americano.

O encontro, adianta, aconteceu numa “atmosfera de respeito mútuo” e com um olhar nos exemplos de “camaradagem passada” entre os dois países, para enaltecer a necessidade de “virar a página”.

“Ninguém beneficia destes tempos difíceis nas nossas ligações bilaterais. Nem os nossos países, nem o mundo”, explicou Putin, para quem, “mais cedo ou mais tarde era preciso mudar”.

“Segurança da Ucrânia deve ser, naturalmente, assegurada”

“Era preciso darmos este passo para haver conversações entre os dois países. Muito bom conteúdo saiu deste encontro”, assegurou, numa primeira parte do discurso onde se focou mais na relação entre o seu país e os EUA e onde mal se mencionou a Ucrânia.

Voltando à guerra, Putin elogiou Trump, a quem chamou de “desbloqueador e facilitador”, agradecendo o “trabalho conjunto” para tentar chegar a um acordo onde seja possível “eliminar as causas do conflito”.

“O que acordamos hoje será um ponto de partida”, admitiu, garantindo perceber que “a segurança da Ucrânia deve ser, naturalmente, assegurada” e que “tudo o que está a acontecer é uma tragédia e uma ferida terrível”. Pediu, ainda, para que a Europa “não atrapalhe os planos” e não use “acordos secretos” para os “torpedear”.

Antes do homólogo norte-americano tomar a palavra, Putin terminou dizendo que, em 2022, no último contacto com Biden, tentou “convencer o antigo Presidente dos EUA” de que “as coisas não podiam chegar a um ponto de não retorno”. “Disse-lho muito diretamente”, reiterou, confirmando: “Se Trump fosse Presidente confirmo que não haveria guerra”.

Guarda com frente ativa e também em alerta com fogo vindo do Sabugal

O fogo que lavra no concelho da Guarda desde esta sexta-feira de manhã continuava ativo ao início da noite, com uma frente entre as localidades de Codeceiro, Rocamonde, Avelãs de Ambom e Avelãs da Ribeira, indicou o presidente da Câmara.

“O incêndio tem agora mais intensidade nos concelhos vizinhos de Pinhel e Trancoso, mas essa frente é motivo de preocupação naquela zona do concelho”, disse o presidente da Câmara da Guarda, Sérgio Costa, à agência Lusa.

O autarca acrescentou que no local estão populares e equipas das juntas de freguesia, com veículos todo-o-terreno equipados com “kits” contra incêndios, para “debelar as chamas e manter a vigilância”.

O fogo começou esta sexta-feira de manhã em Pêra do Moço, pelas 10h45.

Segundo o site da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), pelas 23h00 estava a ser combatido por 253 operacionais, apoiados por 89 viaturas.

O presidente da Câmara da Guarda revelou ainda que há “outra preocupação” com o incêndio que está a progredir desde o concelho vizinho do Sabugal.

“Está completamente descontrolado e a avançar de Vila do Touro, no Sabugal, para os limites do município da Guarda. Estão na linha de fogo localidades como Pega, Quinta de Gonçalo Martins e Carvalhal Meão, onde já estamos a começar a posicionar os poucos meios disponíveis”, afirmou.

Segundo o “site” da ANEPC, pelas 23h00 o fogo mobilizava 79 operacionais e 21 veículos.

O concelho de Pinhel também está a enfrentar várias frentes ativas, esta noite, em consequência do fogo que começou durante a manhã em Pêra do Moço, no concelho vizinho da Guarda.

“A situação está a evoluir, mas não posso dizer se favoravelmente, porque tudo muda de um momento para o outro”, afirmou Daniela Capelo, vice-presidente da Câmara de Pinhel, à agência Lusa.

A autarca realçou que as aldeias de Cerejo, Alverca da Beira, Prados e Freixedas foram atingidas pelas chamas e há registo de “várias casas ardidas”.

“Há poucos meios no terreno, ainda só vi os bombeiros de Pinhel e de Almeida. A proteção civil municipal está a dar todo o apoio possível dentro das suas capacidades”, acrescentou Daniela Capelo.

Do incêndio que deflagrou em Pêra do Moço resultou um morto, o ex-autarca de Vila Franca do Deão Carlos Dâmaso, e ainda um ferido grave, que foi transportado para a Unidade Local de Saúde Universitária de Coimbra, devido às queimaduras sofridas.

Portugal está em situação de alerta devido ao risco de incêndio desde 02 de agosto e, nas últimas semanas, têm deflagrado vários incêndios no norte e centro do país que já consumiram mais de metade dos cerca de 75 mil hectares de área ardida este ano.

A situação de alerta foi prolongada até domingo, anunciou na quinta-feira a ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral, no final de uma visita à Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC).

Presidente de Junta “abandonado” em Arganil por bombeiros “urbanos”

O presidente da Junta de Pomares (Arganil) acusou esta sexta-feira os bombeiros de uma vila do distrito de Setúbal de o terem “abandonado”, quando guiava os operacionais a uma aldeia que estava sem água com o incêndio à porta.

O caso aconteceu, segundo Amândio Dinis, na tarde de hoje, no lugar de Espinho, uma pequena aldeia com cinco habitantes, localizada no fundo de uma encosta perto de Sobral Gordo e Sobral Magro “que estavam sem água, sem nada e precisavam de ajuda”.

“Estavam os bombeiros parados ali na aldeia das Corgas, fui lá chamá-los, lá já não estavam a fazer nada, já estava tudo ardido”, contou o autarca, que, perante a resposta dos operacionais de que não conheciam o caminho, se disponibilizou a levá-los até ao local.

Ao subirem a serra, perante a existência de mimosas no acesso, a impedirem a passagem, o presidente da Junta de Freguesia exortou os bombeiros a removerem as árvores e a resposta espantou-o: os operacionais não tinham uma motosserra “por serem [bombeiros] urbanos ou não sei quê”, declarou.

Como solução de recurso, o autarca ligou a um conhecido, empreiteiro de profissão, que acabou por cortar as árvores.

A “comitiva” seguiu viagem, mas, quando Amândio Dinis chegou à aldeia, percebeu que os operacionais que o seguiam teriam voltado para trás.

“Receberam ordem do comando e voltaram para trás. Já viu isto? Já vinham aqui perto e agarraram, voltaram para trás”, acusou.

“Eles primeiro disseram que não traziam motosserra. Afinal traziam um “motosserazito”. Andaram a cortar, mas estavam de má vontade”, acrescentou.

“”Você escusava de nos trazer para aqui””, terão dito os operacionais, citados pelo presidente da Junta.

Amândio Dinis adiantou que o dispositivo de bombeiros em Corgas era composto por quatro carros, mas que à aldeia de Espinho, localizada a cerca de sete quilómetros, acompanhou-o “só um e o comando”, que voltaram para trás três quilómetros antes de chegarem ao destino.

“Se são bombeiros urbanos, se não é para combater [o incêndio], se isto aqui é a parte florestal, o que é que eles vêm para cá fazer”, questionou Amândio Dinis.

“Isto é uma miséria, quem comanda isto tudo é atrás de uma secretária, com certeza”, lamentou o autarca.

O território da freguesia de Pomares, onde o incêndio que eclodiu no Piódão já tinha andado na quarta-feira, acabou, segundo o presidente da Junta de Freguesia, por ser totalmente consumido pelas chamas na quinta-feira e hoje.

“Ardeu tudo, toda a parte florestal, salvaram-se as aldeias”, ilustrou.

O incêndio de Arganil estendeu-se aos concelhos de Oliveira do Hospital e Pampilhosa da Serra, todos no distrito de Coimbra, mas também a Seia (Guarda) e à Covilhã (Castelo Branco).

Pelas 22h30, de acordo com a página de Internet da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, o incêndio de Arganil estava a ser combatido por 1.019 operacionais, apoiados por 343 viaturas.

Incêndios. ULS de Coimbra com meios adicionais de resposta às populações

A Unidade Local de Saúde (ULS) de Coimbra disse esta sexta-feira que está a garantir “meios adicionais de resposta e proximidade” às populações afetadas pelos incêndios florestais que atingem a região.

Em comunicado, a ULS de Coimbra esclarece que tomou a decisão devido à ativação do Plano Distrital de Emergência e Proteção Civil e “motivada pela complexidade e pelo impacto dos incêndios rurais no distrito”.

Para respostas imediatas estão abertos os Centros de Atendimento Clínico da Fundação Aurélio Amaro Diniz (Oliveira do Hospital), do Hospital da Compaixão (Miranda do Corvo) e do Hospital do Avelar (Avelar, Ansião).

Segundo a nota enviada à agência Lusa, também estão disponíveis o Serviço de Atendimento Complementar em Tábua, o Serviço de Urgência Básica de Arganil (em total disponibilidade) e os Serviços de Urgência Hospitalares em Coimbra (total disponibilidade).

A ULS de Coimbra tem ainda como meios adicionais destacados uma equipa de saúde no Centro de Saúde da Lousã e outra no Centro de Saúde de Góis.

A adequação dos meios “será continuamente ajustada de acordo com a evolução da situação e em estreita coordenação com a Comunidade Intermunicipal (CIM) de Coimbra e restantes entidades de proteção civil”, adianta.

A ULS apela a todos os cidadãos que adotem “comportamentos de prevenção e segurança”, seguindo as orientações das autoridades competentes.

Portugal está em situação de alerta devido ao risco de incêndio desde 02 de agosto e, nas últimas semanas, têm deflagrado vários incêndios no norte e centro do país que já consumiram mais de metade dos cerca de 75 mil hectares de área ardida este ano.

A situação de alerta foi prolongada até domingo, anunciou, na quinta-feira, a ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral, no final de uma visita à ANEPC.

“Perante a adversidade de 22 dias consecutivos de calor intenso não dar sinais de abrandar, o Governo vai prolongar uma vez mais a situação de alerta, até domingo”, anunciou a ministra em declarações aos jornalistas.

Maria Lúcia Amaral sublinhou que se mantêm todas as restrições e proibições impostas pela situação de alerta de risco agravado de incêndio.