Uma memória do elevador da Glória

Em 1994 e 95 estava no 12º ano. Para me preparar para a Faculdade frequentava no Externato Acrópole umas aulas extra de Filosofia e História. Nelas estudávamos para as Provas Específicas, que tinham substituído a conturbada Prova Geral de Acesso. Isto significava que tinha uma vida estudantil dupla, entre o Liceu de Queluz, a minha escola normal, e o Chiado, onde era o Externato Acrópole (onde a minha Mãe era professora de inglês e alemão). Como o Liceu tinha aulas nocturnas, num horário fantástico entre as 19h e as 22h, ficava Lisboa com a parte solar do meu dia. Esse foi ano em que comecei a sentir Lisboa como minha.

Como a grande maioria dos miúdos dos subúrbios da capital, tinha nascido em Lisboa. Na altura ninguém crescido na Linha de Sintra tinha nascido na Linha de Sintra, excepto em caso de acidente: nem sequer havia o Hospital Amadora-Sintra. Pertencia por isso ao grupo dilatado que tinha “São Sebastião da Pedreira” no bilhete de identidade. Curiosamente, não porque nasci na Maternidade Alfredo da Costa mas perto, na Clínica Cabral Sacadura. O facto é que, apesar de nascido em Lisboa, um miúdo crescido nos seus subúrbios não tem uma relação directa com ela. A capital era o lugar de passeios, não o nosso lugar mesmo.

Isto começou a mudar para mim a partir desse ano de 1994. Mais do que uma vez por semana ia para Lisboa e comecei a senti-la como parte real da minha vida, mais do que um detalhe no meu documento de identificação. Nunca me tornei um lisboeta mas a verdade é que Lisboa é a cidade do meu coração. Amo-a como um apaixonado atrapalhado, incapaz do passo derradeiro da proposta de casamento. Lisboa é minha mas nunca vivi com ela. Quase todos os dias vou à sua presença mas ela nunca reconheceria saber o meu nome. Ela ignora-me oficialmente mas todos os dias me aproximo dela, nunca indiferente aos seus encantos altivos. É o meu grande amor não-correspondido.

O início do meu amor zonzo por Lisboa começou sobretudo no Rossio, no Chiado e nos Restauradores. Em 1994 já tinha a mania que era punk. Por isso, alternava as voltas de estudo com as visitas à Loja 67, onde comprei as minhas primeiras Doc Martens que me custaram meses de poupança da astronómica quantia à época de 15 contos e quinhentos (mais ou menos 77 euros e 50 cêntimos—ainda hoje esse valor me parece uma fortuna em calçado). Era esse eixo da estação de comboio para o Externato Acrópole e para visitar a 67, perto de lojas de discos como a Bimotor, que servia de rota para a minha vida crescente na capital.

Para ir do Chiado para os Restauradores tinha de descer a Calçada da Glória. Quer nessa época, quer nos anos seguintes, raras foram as vezes que apanhei o Elevador. A poupança e a juventude pronta faziam-me descer a pé aquela rua íngreme. Por causa disso, o Elevador foi mais meu companheiro de descida e subida do que transporte delas. Habituei-me, por exemplo, a ouvi-lo para, ficando perto do seu trilho, afastar-me o suficiente para não me atropelar. Na década de 90 era autenticamente um Elevador, não uma atracção turística. Não pensávamos nele como monumento. Ele era apenas parte da Lisboa de todos os dias. E ao ser apenas isso, era muito.

De certo modo, essa Lisboa de todos os dias já não existe. Provavelmente não aconteceu só com Lisboa mas com qualquer cidade que, neste século em que viajar é obrigação de viver, se torna mais uma banal peregrinação de experiências burguesas. Não quero escrever isto como quem se lamenta porque não acredito no lamento como atitude de encarar o presente. Afinal, Lisboa não morreu no mosh pit turístico em que se tornaram as cidades modernas. Todas elas sobrevivem, tornando-se piores ao mesmo tempo que também resistem ao pior que lhes é imposto. Lisboa é uma cidade e cidades duram mais do que os cidadãos de hoje.

Quando na quarta-feira passada soube do acidente no Elevador da Glória, fiquei incrédulo. Inevitavelmente desfilaram memórias na minha cabeça. Voltou 1994 e todos os anos depois, cada vez mais distantes daquela calçada íngreme mas nunca esquecidos dela. Por um lado, muitos de nós abandonámos lugares destes às hordas que em tour-zombie se apoderaram deles. Por outro, eles nunca deixaram de ser nossos porque a nossa história só se apaga quando a queremos negar. E nunca ninguém quis negar o Elevador da Glória. Nestes dias pensei ainda mais na cidade que mais amo e como desejo que ela se erga sempre de novo. Assim fará, estou certo.

Os libertadores da nossa memória

No meu recente artigo “Lagos de Descobertas” afirmei, entre outras coisas, que um projecto intitulado “Libertar a Memória”, responsável por exibir, em Lagos, filmes sobre escravatura e colonialismo e por apresentar como comentadores ou debatentes Nuna, Apolo de Carvalho e Marta Lança, não era “libertar a memória”, mas, isso sim, “aprisioná-la num colete de erros e culpabilizações”. Afirmei, igualmente, que o que tais comentadores podem oferecer “não é informação, é propaganda e activismo woke de pessoas sem qualquer habilitação conhecida e reconhecida para falar deste assunto”.

Estas minhas afirmações incomodaram Luísa Rosa Baptista, a mentora e produtora do tal projecto “Libertar a Memória”, que decidiu responder ao meu artigo, nada dizendo que pudesse contestar o que afirmei. De facto, não nos mostrou quaisquer credenciais dos ditos comentadores para a função, nem nos provou, bem pelo contrário, que aquilo que fizeram em Lagos não foi propaganda woke. Ora, eu posso meter mais um pauzinho na engrenagem para mostrar que o foi.

Luísa Baptista insinua que só agora escrevi “Lagos de Descobertas” e referi o projecto “Libertar a Memória”, que ocorreu no outono de 2024, por razões relacionadas com as próximas eleições autárquicas. Mas está duplamente enganada. Eu não resido no Algarve, não tenho interesse directo ou envolvimento nessas eleições e só escrevi esse artigo agora porque foi agora que uma pessoa residente em Lagos me contactou para denunciar o que lá se vai passando no que toca à memorialização do passado e à informação histórica. Abro aqui um parênteses para reafirmar uma das várias coisas que a minha contraditora decidiu ignorar no artigo que escrevi. De facto, eu não escrevi esse artigo apenas com base na denúncia de uma pessoa, mas também apoiado numa longa conversa com a directora do Museu de Lagos e no meu próprio trabalho de pesquisa, na Internet, sobre as ideias das pessoas em causa, isto é, de Nuna, Apolo de Carvalho, Marta Lança, Catarina Demony e, agora, Luísa Rosa Baptista. Fechado este parêntese reafirmo que não tenho qualquer interesse nas autárquicas em Lagos — não sou eleitor nessa cidade —, mas como historiador e cidadão português tenho todo o interesse na verdade histórica e tenho muito que ver com as aldrabices que os auto-intitulados libertadores da memória andam há anos a tentar martelar na cabeça dos meus concidadãos, vivam eles em Caminha ou em Tavira.

E por isso me arrepiei ao deparar-me com oradores como Apolo de Carvalho, que supõe que a abolição da escravatura foi obra de pessoas negras ou que os portugueses foram os primeiros caçadores de humanos. E arrepiei-me ainda mais ao verificar que, para melhor “libertar a memória” das pessoas que constituíam a sua audiência, os promotores da sessão tinham uma banca onde sugeriam leituras complementares, o que seria uma óptima ideia se nessa banca se propusessem bons livros, de bons istoriadores, sobre a história da escravatura. Todavia não havia nessa banca um único — repito: um único — desses livros. O que não deve espantar-nos, pois as pessoas woke — como estas aparentemente são —, consideram que não se liberta a memória histórica dos portugueses com livros de História, mas sim com livros de teoria política e outras formas de agitação e activismo. Por isso, na referida banca, os habitantes de Lagos desejosos de saber mais sobre tráfico de escravos ou escravidão, depararam-se entre outros com Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, Políticas da Inimizade, Crítica da Razão Negra, O Mundo de Amílcar Cabral e a inevitável e muito a propósito História da Palestina Moderna, como poderão verificar na imagem abaixo.

Conheço este tipo de bancas desde os meus tempos de aluno na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na década de 1970, quando o átrio de entrada estava pejado de bancas em que o MRPP e a UEC (União dos Estudantes Comunistas) tentavam vender o seu peixe.

Em Lagos terá sido a mesma coisa. Nada disto tem que ver com informação, nem com libertar a memória. Tem que ver, isso sim, com propaganda política e com a tentativa de aprisionar a memória numa caixa de ignorância que depois se tenta fechar a cadeado. E se dúvidas houvesse quanto a isso, ou se houvesse a tentação de pensar que este fora apenas um episódio excepcional e pouco representativo, bastaria tão só recuar um pouco mais no tempo para desfazer essa ideia benevolente. Efectivamente, a minha investigação permitiu-me aprofundar o conhecimento sobre o projecto “Libertar a Memória”. O que passou na cidade de Lagos no outono de 2024, foi a segunda edição desse projecto. A primeira edição ocorreu no verão de 2023, em Sagres. E, perguntarão os leitores, ter-se-á, então, apoiado em alguém que soubesse História e que fosse capaz de proporcionar uma visão mais abrangente e informada? Infelizmente não. Nessa primeira sessão, o projecto “Libertar a Memória” deu mais do mesmo aos algarvios, ou seja, deu-lhes, entre outros, Luca Argel, o cantautor brasileiro que quer que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa peça desculpa pela escravatura, e Kitty Furtado, a activista e crítica cultural, assumida e orgulhosamente woke, que exigiu, tal como Apolo de Carvalho e Marta Lança, reparações ao estado português, e que considera que eu seria um perseguidor de intelectuais e activistas negros, sendo, por isso, não um adversário político, mas um inimigo. Sim, leram bem, um inimigo que persegue pessoas negras. Ser woke é isto. Quem contesta as suas ideias e aponta a sua óbvia falta de conhecimentos históricos passa a ser racista e inimigo.

Estas e outras pessoas que querem “desconstruir o imaginário da história dos Descobrimentos e do colonialismo”, serão, como referi no meu anterior artigo, pessoas muito competentes nas suas respectivas áreas de formação e saber, mas nenhuma delas tem, que se saiba, conhecimentos específicos para informar (e debater) sobre a história do tráfico de escravos, da escravidão ou do colonialismo. Como era inevitável eu contestei — e continuarei a fazê-lo se vier a propósito —, as posições públicas de Luca Argel e de Kitty Furtado, uma senhora com a qual já tive, aliás, ocasião de debater face a face, na RTP. Tem sido nestas pessoas, e noutras com posições semelhantes, que o projecto “Libertar a Memória” se tem apoiado e apresentado ao público. É isto que o museu e a câmara de Lagos querem dar à sua população à laia de evocação memorialista e de informação histórica? São, como é óbvio, livres de seguirem o caminho que entenderem, mas estará a população da cidade de acordo?

Luísa Rosa Baptista acha-se muito progressista e moderna por querer, naquilo que designa por “gesto cívico”,  ouvir e considerar “a experiência de outros implicados, directa ou indirectamente, nas questões abordadas”. Mas eu interrogo-me: Apolo de Carvalho, Kitty Furtado ou Marta Lança foram escravos ou traficantes de escravos? Qual é a sua legitimidade para falarem nesse tema? São historiadores? Investigaram a questão a fundo? Estará Luísa Baptista convencida de que os afrodescendentes, só por o serem, descendem de escravos ou têm competência especial para falar nesse assunto? A mentora do projecto “Libertar a Memória” acha-se, também, muito progressista por estar a abordar questões que classiica como “(des)confortáveis” e a dar voz aos aspectos menos positivos da nossa História. Pergunta, até, retoricamente, o seguinte: “Não será já Portugal um país maduro o suficiente para encarar todos os lados da sua História, tanto os positivos e benéficos como os trágicos e negativos?”. Mas vem, certamente por desconhecimento, bater à porta errada e está a pregar a um convertido. Em 1999, tinha Luísa Baptista apenas 22 anos e ainda era, suponho, aluna do ISCTE e já eu escrevia sobre a “desconfortável” história do envolvimento português na escravatura. E escrevia sem ocultar nada.

Relatório mostra que “sem o cabo” os travões não foram capazes de imobilizar o elevador, diz especialista

A nota informativa, divulgada sábado à noite sobre o acidente com o Elevador da Glória, onde morreram 16 pessoas, veio mostrar que os dois travões que foram acionados, o manual e o automático, não conseguiram imobilizar nem reduzir a velocidade do elevador que atingiu os 60 quilómetros por hora quando embateu contra o prédio do hotel.

Essa é a leitura de Carlos Oliveira Cruz, especialista em planeamento e gestão de transportes, que, em declarações à Renascença, considera que estes primeiros dados são importantes e abrem caminho a uma investigação mais aprofundada, nomeadamente, sobre o sistema de travagem.

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O professor do Instituto Superior Técnico leu a nota divulgada pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários, e concluiu que os travões só funcionam com a ajuda do cabo.

O relatório o que vem dizer é que de facto eles não foram suficientes para parar a cabina que continuou a ganhar velocidade. E este é que é o ponto porque eu achava, antes de ler o relatório, que estes dois travões tinham capacidade por si de, imobilizarem ou reduzir a aceleração, mas a forma como ele tem sido operado ao longo das últimas décadas, é que, sem o cabo, os travões por si só, quer o pneumático, quer o manual, não têm capacidade de imobilizar as cabines”, conclui o professor Carlos Oliveira Cruz.

Elevador da Glória. Cabo "cedeu no ponto de fixação" da cabina que descarrilou

Para o docente do Instituto Superior Técnico esta nota informativa permite ainda colocar um ponto final em muitas especulações sobre a “integridade” do cabo que afinal de contas não rompeu, e a “falha está relacionada com a ligação do cabo à cabina número um”.

“Este sistema, que tem que funcionar numa lógica sincronizada e integral das duas carruagens e do cabo de ligação, deixou de ter essa lógica de funcionamento porque a cabine nº 1 ficou desligada” diz Carlos Oliveira Cruz.

“A cabine nº 1, que ia iniciar a descida e que, com a energia, com o peso da descida, ia tracionar o cabo e, com isso, puxar a nº 2, deixou de conseguir fazer. E isso também ajuda a explicar porque é a cabine que estava nos Restauradores, de repente deixou de subir e voltou para trás e embateu na zona do passeio” explica o professor do IST.

Este relatório, divulgado três dias após o acidente, mostra ainda que a inspeção diária não conseguia detetar qualquer anomalia no sistema.

“Os técnicos responsáveis visturiam o cabo de uma ponta à outra. A ligação do cabo à cabine, que é feita através de uma peça que se chama o trambolho, não é visível a olho nu. Ou seja, o cabo entra dentro desta peça e essa parte interior, onde é feita esta ligação através de uma peça que se chama a pinha, não é visível a olho nu” refere o professor do Instituto Superiro Técnico em declarações à Renascença.

Uma história de dois países

Não sem um longo percurso de preparação, não sem se fazerem ouvir mil avisos de vozes mais ou menos autorizadas, o Reino Unido e a França preparam, para a sua própria ingestão, um cocktail destrutivo. Tirando as óbvias diferenças, são idênticos os ingredientes da crise que ameaça arrastar duas das maiores economias do continente europeu para uma crise tal como não conhecem desde há muitas décadas.

Com ambas as dívidas públicas acima dos 100% do PIB, taxas de juro das obrigações a subir e sistemas previdenciais por reformar – as pensões, no caso francês; o SNS, no Reino Unido – chega agora uma crise de financiamento de um défice público indomável. Trata-se de uma crise de finanças públicas em países onde é estreitíssima a margem para aumentar impostos como meio para corrigir, sempre com dor, a trajectória mortal. Em França, essa margem pura e simplesmente já não existe sem provocar problemas maiores do que aqueles que remediaria. A carga fiscal é a maior de todos os 38 países da OCDE, o que não podia deixar de ser quando o nível de despesa pública em percentagem do PIB é também o maior de toda a OCDE, ultrapassando em 2024 os 57%. No Reino Unido, os aumentos de impostos e os aumentos das contribuições para a segurança social são inevitáveis, mas as exigências do lado da despesa são alucinantes. As promessas do partido Trabalhista na campanha eleitoral forçam agora o governo, durante a legislatura, a encontrar mais 120 mil milhões de euros para as financiar além do nível de despesa já consolidado. Ao contrário do que se passa nos EUA, a crise de finanças públicas está associada a um período de estagnação económica em ambos os países. França e Reino Unido ocupam os lugares do fundo da tabela no crescimento económico europeu nos últimos anos, a par da Alemanha e Itália. Destes tão badalados “motores” da economia europeia podemos dizer que griparam há já algum tempo.

As crises económico-financeiras não têm pátria. Mas para confrontá-las é preciso reunir um conjunto de circunstâncias na ausência das quais o caminho fica aberto para uma crise bem mais grave. Sucede que na França e no Reino Unido de 2025 as circunstâncias em que a crise financeira aparece tornam-na insuportável. De um lado, lideranças políticas e administrativas sem um pingo de autoridade. Vexadas por escândalos ou acinzentadas pela pura mediocridade, o elemento da agência política mais crucial nestas ocasiões está ausente. Não é só o facto de Macron ter morrido politicamente e de Keir Starmer chefiar um governo em ruínas. São outras lideranças nos partidos e nas instituições do Estado não se atreverem sequer a convocar o mínimo de respeito ou de confiança. Há dias, o Primeiro-Ministro francês François Bayrou deu uma entrevista televisiva para explicar as razões da apresentação de uma moção de confiança no Parlamento, cuja derrota mais do que provável deixará a França sem governo digno desse nome. Minuto a minuto, a França assistiu em directo e a cores a um naufrágio pessoal e institucional. Na Grã-Bretanha, cada momento de comunicação do Primeiro-Ministro Starmer é um embaraço só ultrapassado pela confrangedora incompetência e amadorismo dos ministros que ele escolheu e que, entretanto, vai substituindo sem critério. Com a fragmentação crescente do sistema partidário e a inexorável inclinação esclerótica de muitas das instituições do Estado, é o próprio sistema político que declara a sua impotência.

Do outro lado, e porventura o sinal mais gravoso, temos uma fractura social como a França e o Reino Unido jamais conheceram. Diante de uma crise, padrões mínimos de coesão cívica e social tornam-se recursos indispensáveis para alimentar a esperança na sua superação dentro de um prazo razoável. Mas, em 2025, a França e o Reino Unido, que conheceram no passado conflitos sociais sérios em torno de clivagens económicas clássicas, estão internamente fracturados pela questão irresolúvel da imigração em massa. Tudo adquiriu uma tal proporção de um lado e do outro do canal da Mancha que hoje é inútil tentar silenciar o problema. Essas tentativas de silenciamento apenas estão a fazer crescer os partidos da direita radical que lideram as sondagens nacionais, condenando à insignificância os partidos tradicionais da esquerda e da direita. Já nem é uma questão de pessimismo perceber que as consequências destas transformações demográficas, sociais e culturais produzirão uma fractura social extraordinariamente difícil de reparar. Tal como já não há palavras românticas, nem sentimentos ideológicos que nos poupem às exigências dos tempos que criámos.

Contudo, o que torna toda a descrição mais ominosa é que estes ingredientes não são especificamente britânicos ou franceses. São, em grande medida, generalizáveis a um conjunto cada vez mais alargado de países europeus, a começar pela Alemanha. E como se vê pelas diferenças profundas que existem entre Reino Unido e França no que respeita ao sistema eleitoral, à formação dos partidos e à distribuição dos poderes, não há receitas mágicas que reformem os países quando as restantes circunstâncias conspiram contra a sua vitalidade cívica.

Consta que em 1921 um jornalista americano Lincoln Steffens, deslumbrado com o que viu na União Sovética, deixou-se levar por um acesso de entusiasmo e disse grandiloquentemente: “Vi o futuro e funciona!” Ninguém aqui fala com Deus, nem recorre à proverbial bolinha de cristal, mas estes sinais são fortes e feios. Por este andar, o futuro da Europa não se recomenda e não funciona.

O mundo pode mudar, se nós mudarmos

1. Esta crónica não é o começo nem o fim de férias. A minha praia foi uma clínica na Idanha. Tenho de agradecer, através do generoso acolhimento do PÚBLICO, a tantas pessoas que me mantiveram em contacto com o que se passava no país e no mundo.

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Aos populistas de todos os partidos

Nove meses depois de ter chegado ao Hôtel Matignon, o primeiro-ministro francês, François Bayrou, reconheceu que apenas com medidas impopulares é possível reduzir a despesa pública, baixar o défice e descer a dívida do Estado. E não, Bayrou não é um monstro. Pelo contrário, é um moderado com provas dadas, um político experiente, cauteloso, ciente dos equilíbrios necessários para negociar, exímio conhecedor das regras dos corredores do poder francês. Esteve com Balladur, Chirac, Juppé e Edouard Philippe. Foi dos primeiros apoiantes de Macron. Um verdadeiro sobrevivente político cuja carreira pode terminar amanhã levando consigo o presidente francês, caso a moção de confiança submetida pelo governo seja reprovada no parlamento. Bayrou não é um novato nem um populista, mas reconheceu o óbvio: a França tem de reduzir a dívida pública se quiser inovar e evitar um empobrecimento gradual, entrar no século XXI e não chegar a um momento (cada vez mais próximo) em que o fim das prestações sociais serão ditadas por uma convulsão social que fará com violência o que os políticos não conseguem com negociação. Isso, ou  acabar com um governo de cariz autoritário que garanta segurança e sossego à maioria da população mesmo que à custa de um empobrecimento generalizado.

Um dos muitos danos que os governos de António Costa provocaram ao país foi um aumento inusitado do número de funcionários públicos, sem que tal tenha correspondido a uma melhoria dos serviços públicos. De 656 mil, em 2014, o número de funcionários públicos atingiu os 742 mil, em 2022. Um novo máximo foi alcançado em Maio com governo da AD, mas o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Ferroviários continuou com apenas um inspector especializado. Há funcionários públicos onde não deviam estar e não os há onde estes fazem falta. O impacto desta desorganização nas contas públicas não é difícil de imaginar. Sim, é verdade que os últimos governos de António Costa conseguiram excedentes orçamentais e que a dívida pública (face ao PIB) desceu. Mas à custa de cativações dos serviços públicos (um dos motivos por que pioraram) e devido às baixas taxas de juro porque a pressão inflacionista era reduzida na época. Não fosse o aumento do número de funcionários públicos e a desorganização do Estado e os excedentes orçamentais seriam maiores, as cativações menores ou até mesmo inexistentes. Mas a contratação ao calhas de funcionários públicos fez-se porque são um eleitorado fácil para os governos. À época, do PS; agora da AD, que se esforça por os cativar; a seu tempo mais uma fonte de crescimento do Chega. Um analista, comentador ou mesmo político mais cínico dirá que se trata de pragmatismo; outro mais realista, que não passa de populismo. Não o populismo histriónico que salta à vista, mas algo mais subtil, engenhoso, pomposo e manso, embora igualmente penetrante e destruidor.

A França tem uma dívida pública que a impede de inovar e Portugal um excesso de funcionários públicos que torna inócua uma reforma do Estado digna desse nome. Se a digitilização dos serviços do Estado tornar redundante muitos dos trabalhos prestados por funcionários públicos, uma reforma do Estado só será completa se o governo determinar o que fará com esses funcionários que deixarão de ter com que se ocupar. Mobiliza-os para outras funções? Força os mais velhos à reforma? Ou recorre ao despedimento? Levantar estas questões não é populismo nem ignorância. É querer lidar com os factos. Fazer o que há décadas a maioria dos políticos (governos e oposições) não estão dispostos a fazer porque querem ganhar eleições independentemente do custo que a sua inércia custe ao país e às pessoas. O tal populismo subtil, pomposo, engenhoso e manso, mas tão penetrante e destruidor quanto o dos que gritam.

A proposta de François Bayrou não é popular. Infelizmente é necessária. A proposta da Iniciativa Liberal para a redução do número de funcionários públicos não agrada à maioria. Mas é inevitável, sob pena de dentro de alguns anos termos milhares de pessoas sentadas em departamentos e repartições públicas sem terem nada que fazer. É verdade que em Portugal a percentagem de funcionários públicos relativamente à população empregada é inferior à da Suécia e da Dinamarca. Mas também à da França. E se há coisa que a Suécia fez nos anos 90 do século XX foi reformar o Estado e a economia. Alterou o sistema fiscal e a negociação colectiva dos salários, colocou um tecto nos gastos públicos, reduziu o sector empresarial do Estado e procedeu a uma aproximação entre os salários e a produtividade. Enfim, reformas das quais há anos que Portugal foge a sete pés, pelo que não deixa de ter graça que, por cá, os Estados que fizeram reformas sirvam de pretexto para não se fazerem reformas.

Podemos negligenciar as dívidas ou o peso desmesurado do Estado que reduz a margem para investimento e melhoria das condições de vida. Mas as dívidas, principalmente as dívidas públicas, foram dos maiores motores das revoluções mais destrutivas. E se há lição que a França vai recordar (até porque já passou pela experiência diversas vezes) é que é preferível agir e reformar enquanto há tempo que fazê-lo através de mudanças abruptas ou truques de cosmética que garantem segurança como compensação do empobrecimento. Se há lição de que nos podemos lembrar em Portugal (até porque já passámos pela experiência diversas vezes) é que ganhávamos todos se olhássemos para os problemas de forma séria e verdadeira em vez daquele modo pomposo que mais serve para disfarçar artifícios gastos.

Uma última nota relativamente à possibilidade do governo francês cair e de não ser aprovado um orçamento para 2026: a Alemanha é o único Estado que pode socorrer a França em caso de incumprimento do Estado francês. Mas a Alemanha (como aliás toda a Europa) tem mais em que gastar dinheiro, nomeadamente em defesa. 2026 não é 2011. Os meios disponíveis são menores e as ameaças externas, maiores. O próprio chanceler alemão, com a frontalidade que lhe é característica, alertou os jovens para que não contem com o sistema público de pensões. É um aviso à França, mas também a Portugal, cuja redução da dívida pública foi conseguida face ao PIB, e muito porque este cresceu. Na eventualidade de uma recessão, a percentagem da dívida face ao PIB sobe e as conquistas conseguidas esfumam-se de um dia para o outro. A margem é pequena, razão pela qual se torna urgente olhar para a reforma do Estado de uma forma séria e sustentada e não como algo cool e sexy como seja pôr documentos numa cloud.

O país da bola também vive de heróis do stick que lutam como animais selvagens: Portugal bate França e conquista Europeu pela 22.ª vez

Eis os animais selvagens. Foi essa a expressão que mais ecoou no seio da Seleção Nacional de hóquei em patins ao longo desta semana em Lordelo. Foi essa a expressão que o selecionador Paulo Freitas utilizou para descrever o que os seus jogadores tinham de fazer na fase a eliminar depois de uma fase de grupos em que perderam todos os jogos e acabaram no último posto do Grupo A. Freitas voltou a utilizá-la para antecipar o duelo com a Espanha, nas meias-finais, e a verdade é que, frente à tricampeã da Europa e campeã do mundo, Portugal mostrou um nível nunca antes visto neste Campeonato da Europa e ganhou nas grandes penalidades, marcando encontro com a França para uma final inédita (2-2, 2-3 g.p.).

A alma de Gonçalo e um Xano indomável comandaram o voo para a final com ligação a Barcelos: Portugal vence Espanha nos penáltis

“Portugal fez um jogaço. Os primeiros 25 minutos, então, foram fantásticos e acho que o desfecho acaba por ser justo, embora ache que não deveríamos ter ido à bola parada. Há quem fale em sorte, mas eu digo que, fundamentalmente, foi um momento de competência. A Espanha produziu aquilo que nós também deixámos. Fomos uma equipa muito intensa, com muita mobilidade, com e sem bola, e controlámos a maioria dos tempos de jogo. Conseguimos tornear a primeira linha defensiva da Espanha, criando sensações positivas aos nossos jogadores e deixando a Espanha desconfortável. Os jogadores hoje [sexta-feira] deram uma primeira resposta. Vamos tentar recuperar e estaremos aqui na final de cara lavada e peito aberto. As finais não se disputam, ganham-se”, começou por dizer o selecionador após a meia-final.

“Teremos de ser novamente uns animais competitivos [na final], porque a França é uma equipa muito forte e competente. Teremos de estar na nossa melhor versão, ou ainda melhor. Não há ainda um diagnóstico [sobre a lesão de Hélder Nunes]. O jogador apresenta dores na zona da virilha. A primeira impressão é a de que poderemos contar com o Hélder, mas vamos ver. Foi um pavilhão fantástico no apoio à equipa, mas nós também puxámos por eles. Esta dicotomia funcionou muito bem e já tive oportunidade de agradecer na flash interview este apoio”, concluiu Paulo Freitas.

Antes da final do 56.º Campeonato da Europa de hóquei em patins, a única garantia era que, no final, um português ia levantar o troféu, já que a seleção gaulesa é treinada por Nuno Lopes, técnico do Tomar. Com Hélder Nunes recuperado e a manter-se no cinco inicial, Freitas entrou de início com Xano Edo, Zé Miranda, Gonçalo Alves e Rafa Costa, repetindo a equipa que alinhou na meia-final. Do outro lado, Lopes contou com Pedro Chambell, Rémi Herman, Roberto Di Benedetto, Bruno Di Benedetto e Carlo Di Benedetto. A reedição da final da Golden Cat, que Portugal venceu por 4-3, começou com os franceses a ficarem perto do golo nos primeiros segundos, num lance em que Roberto obrigou Edo a aplicar-se (1′). Pouco depois, o defesa do Benfica voltou a criar perigo com um remate enrolado, mas o guarda-redes do Sporting superiorizou-se (4′).

O jogo continuou com uma entrega brutal das duas equipas, que não se coibiram de fazer faltas, principalmente os gauleses, que se apresentaram mais intensos e a caírem na estratégia montada pela equipa técnica de Portugal. França continuou mais perigosa, com os irmãos Di Benedetto em grande evidência, mas Xano Edo não queria ficar atrás e negou o golo a Bruno com uma defesa com o ombro (11′). Na resposta, Rafael Bessa recebeu ainda longe da baliza, ultrapassou Roberto e, já dentro da área, atirou fora do alcance de Chambell, num golo em que o atleta de Paredes acabou por dedicar à família, que se deslocou em peso ao Pavilhão Rota dos Móveis (15′). Em estreia absoluta na Seleção, o avançado do Sporting estreou-se a marcar… numa final. Nuno Lopes parou o jogo de imediato e mudou a forma de atacar da sua equipa, mas Portugal deu continuidade ao bom momento, com Bessa a obrigar o luso-francês a uma defesa apertada (17′).

À beira do intervalo, França atingiu a décima falta de equipa e, chamado à responsabilidade, Alvarinho deixou Pedro Chambell pregado à pista e levantou para o 2-0, na primeira vez que tocou na bola (19′). A quatro minutos do intervalo, Freitas pediu a sua pausa técnica e pediu à sua equipa para “jogar com razão” e foi isso que os jogadores fizeram, com Alvarinho a criar perigo com uma picadinha, mas Chambell voltou a impor-se (21′). Na última ocasião do primeiro tempo, Herman teve espaço na esquerda e atirou cruzado, mas a bola saiu ao lado da baliza (24′).

Na etapa complementar, Portugal voltou a entrar por cima e, nos primeiros minutos, Zé Miranda ficou perto do terceiro golo (27′). Pouco depois, Roby derrubou Rafa dentro da área e, na cobrança, Gonçalo Alves voltou a mostrar-se irrepreensível e aproximou a Seleção Nacional da reconquista do troféu (29′). De seguida, Rafael Bessa voltou a ter espaço no corredor central e, isolado, atirou para mais uma grande defesa de Pedro Chambell (33′). Nuno Lopes reagiu de pronto a parar o jogo e Paulo Freitas aproveitou para dar dois minutos de descanso ao quarteto principal. Nessa fase, Gonçalo Alves (36′) e Bessa (37′) quase marcaram, mesmo com Portugal à beira da décima falta. Na resposta, Carlo apareceu isolado, mas atirou ao lado (40′). Gonçalo Alves voltou a fazer das suas de seguida e, numa jogada magistral, atirou para mais uma defesa de Chambell, que continuou a salvar França (41′).

Os franceses responderam com mais um lance de Carlo Di Benedetto, que levantou a bola e obrigou Xano Edo a uma defesa em cima da linha de baliza (42′). Na outra baliza, Luís Querido isolou Bessa, que voltou a desperdiçar a oportunidade de fechar a final (43′). Nos últimos cinco minutos, Portugal tentou controlar o jogo a circular a bola por todo o ringue mas, a 1.50 minutos do fim, a dupla de arbitragem assinalou penálti para os franceses e mostrou o azul a Querido. Na cobrança, Rémi Herman atirou diretamente para a baliza, mas Xano Edo defendeu e voltou a levar a melhor na recarga (49′). Com França a jogar em 5×3, Carlo chegou a reduzir, mas com o patim, pelo que o golo foi anulado. Contudo, depois de consultarem o Serviço de Revisão de Vídeo (SRV), os árbitros que inicialmente anularam o golo, validaram-no de forma inacreditável (49′). No recomeço, Portugal recuperou rapidamente a bola e, sem guarda-redes na baliza Rafael Bessa fez o 4-1 final (50′).

Depois de uma fase de grupos desastrosa que gerou muitas críticas fora do seio do hóquei em patins, Portugal reconquistou o título europeu nove anos depois e chegou às 22 vitórias no Campeonato da Europa, voltando a distanciar-se de Espanha, que tem 19. Esta foi a primeira vez que a Seleção triunfou em Paredes, que recebeu o Europeu pela terceira vez. Por outro lado, é a 12.º vez que a Seleção de hóquei em patins vence a competição em território português, ao cabo de 15 edições.

Nas contas finais do Europeu, Itália completou o pódio, depois de ter vencido Espanha na luta pela medalha de bronze (1-3). Há 75 anos, desde a 16.ª edição, que os espanhóis não terminavam fora dos três primeiros. O quinto lugar ficou para Andorra, que bateu a Suíça (3-1) e conseguiu, assim, a qualificação direta para a “primeira divisão” do Mundial do próximo ano. O sétimo lugar ficou para a Alemanha, que venceu a Áustria na primeira partida deste último dia de competição (3-9).

O direito à não-indignação

A julgar pelo número de pessoas que estão indignadas poderíamos pensar que, mais do que um direito, a indignação é um dever.  Mas se a indignação é um dever levanta-se a questão de saber porque deveríamos cumprir esse dever e ficar tão comummente indignados, e por que razão deveria o estado mais frequente nos nossos semelhantes, isto é, a indignação, tornar-se por força também o nosso estado normal.

Tal como copiar os sentimentos dos nossos semelhantes não nos torna mais semelhantes a eles, assim não partilhar esses sentimentos não nos torna membros de outra espécie ou de outro planeta.   Quem não cumpre o seu dever de indignação não é menos parte da espécie daqueles que se indignam:  é quando muito como uma pessoa que não é exactamente igual a todos os membros da sua espécie; ou seja, é como qualquer membro da nossa espécie.

A noção de que nos devemos por princípio indignar depende de uma ideia característica sobre o mundo. A essa ideia poder-se-ia chamar “a maldade das coisas.”  A maldade das coisas é a propriedade metafísica do mundo que predispõe para o torto os objectos, as pessoas e os arranjos impalpáveis. A indignação é no fundo um sentimento de quem acha que tudo está constantemente a dar para o torto; em especial um protesto contra o que se estipulou ser a inclinação funesta das coisas.

A noção de maldade das coisas é um modo muito comum de sugerir que o dever da indignação é natural. Não é; e quando não aceitamos esse dever ficamos dispensados de acreditar nela. Não está mais calor ou perdemos um botão porque tudo neste mundo dá para o torto.  O que os não-indignados dizem aos indignados é que as ocorrências que deploramos permitem por vezes tirar conclusões sobre pessoas ou melhorar maneiras de fazer as coisas; mas não permitem discutir com o que aconteceu.

O mundo da pessoa não-indignada é diferente do mundo da pessoa indignada.   Não depende do dever de imaginar que nos situamos em relação às coisas como quem verifica se uma promessa que nos fizeram foi cumprida, ou se um artigo que encomendámos foi executado na perfeição. Para o não-indignado, mesmo quando tenta proteger e manter coisas, não somos clientes das coisas, ou utentes do mundo; e é ocioso imaginar que podemos devolver à procedência as coisas que nos desagradaram.

Não cumprir o dever de nos indignarmos não é só uma questão de nos libertarmos do cumprimento de cadernos de encargos absorventes; ou de nos sentirmos sossegados para ir fazer aquilo que realmente nos interessa, sem ter de dar contas disso a ninguém.  É principalmente o reconhecimento de que o mundo não é um artigo, uma tarefa, um projecto, ou um objecto em relação ao qual possamos reclamar, mas uma coisa que já era o caso muito antes de repararmos nele pela primeira vez.

Paulo Freitas. “Orgulho enorme em ser português e ter representado Portugal”

O selecionador de Portugal, Paulo Freitas, emocionou-se depois do título de campeão europeu conquistado diante da França.

Em declarações à RTP, Paulo Freitas lembra que sempre acreditou que seria possível reconquistar o título, que vinha sendo perdido para Espanha.

De recordar que Paulo Freitas vai agora deixar a seleção e seguir para o FC Porto.

Portugal derrotou a França, por 4-1, na final disputada em Paredes.

A partida

Não foi um jogo com a qualidade do jogo de ontem [contra a Espanha], muito também por aquilo que a França apresentou. Esta foi uma equipa com muito coração, muita alma e muita razão. Não tínhamos de nos andar a expor nesta parte final, mas faz parte do jogo. Somos campeões europeus, estou muito orgulhoso de liderar esta rapaziada e representar o meu país.”

Sonho tornado realidade

“Era com isto que sonhava. Era dar uma alegria a todo o mundo do hóquei, aos portugueses e a toda a gente que aqui está. Faço parte deste trajeto e tenho um orgulho enorme em ser português e ter representado Portugal.”

Nunca teve dúvidas que Portugal ia ser campeão?

“Nunca deixei de acreditar. Passámos uma semana terrível. Percebo que as pessoas estão habituadas a um contexto diferente e a vitórias. Hoje é festejar a dizer obrigado a toda esta gente. Tal como diz o Luís Querido: isto foi por nós e por quem nos quer bem, porque há muita gente que não nos quer bem.”

O que quer mesmo a Rússia

Não, não é “desnazificar”, nem “proteger minorias”, nem “resolver as causas profundas”. Isso são os pretextos e pretextos não são causas.

Em 1997, Aleksandr Dugin escreveu “Os Fundamentos da Geopolítica”. Não é um mero tratado académico. É mais uma análise e um plano. De como Moscovo deveria agir para voltar a ser o centro de um império, e assim evitar a inelutável queda para o segundo plano da História.

Dugin recorreu aos clássicos da Geopolítica, Mackinder, Haushoffer, Mahan, mas temperou a teoria do Heartland com vodka, religião, etnonacionalismo e mitos históricos.

Quem controla a massa continental eurasiática domina o mundo. E, no meio dela está a Rússia, um país poderoso, com um pé na Europa e outro na Ásia, destinado a dominar. A Rússia deve, pois, ser o Império Eurasiático, e liderar um bloco continental contra o mundo atlântico, EUA e Reino Unido.

Como? O plano é claro e pragmático: reincorporar o espaço pós-soviético, enfraquecer o Ocidente com guerras híbridas, separar as ilhas britânicas e os EUA, da Europa, dividir a Turquia explorando as suas minorias, e usar a China como parceiro táctico, mas contendo a sua ascensão.

Putin tomou nota, e usou os seus escritos como referência intelectual para o nacionalismo russo que o sustenta. É dele que retira também as ideias gerais, a mitologia e o palavreado grandioso. Para Dugin, a independência da Ucrânia foi um “erro colossal” e um disparate histórico. Porque sem Kiev, a Rússia jamais poderá ser um império eurasiático.

Putin aplicou a lição.  Disse mesmo que “O colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX.”

Pouco depois de chegar ao poder, atacou na Chéchénia, e ocupou parte da Geórgia. Mais tarde ompeu os tratados que garantiam o respeito pelas fronteiras ucranianas, anexou a Crimeia em 2014, fomentou guerra no Donbass e lançou a invasão total em 2022.

O objectivo é claro: recuperar a Ucrânia e, com isso, garantir também a massa crítica demográfica, sem a qual nenhum império é viável. Mas a resistência de Zelensky à invasão de 2022, não estava nos planos. A Rússia não contava ter de travar uma guerra destas dimensões.

Quanto à Europa, Dugin aconselhou corromper, dividir, enfraquecer. Criar uma aliança circunstancial com a Alemanha e, em menor grau, com a França. Converter a Europa de Leste em tampão, se possível em satélite.

Putin fez exatamente isso: energia como trela energética, negócios fáceis com França e Itália, dinheiro russo a financiar partidos antissistema. Durante vinte anos, Berlim acreditou que estava a comprar gás, não dependência. Paris acreditou na “interdependência benigna”, não na chantagem.

O plano de Dugin preferia propaganda, manipulação, compra de elites e subversão. Era mais barato e menos arriscado que a acção militar directa.

Putin tentou seguir o guião. Criou o RT, o Sputnik, as fábricas de trolls, as campanhas de desinformação. Não para fazer eleger amigos, mas para apodrecer as democracias e lançar a discórdia. Como os romanos que lançaram Tulios Detritus, entre os irredutíveis gauleses de Asterix.

Dugin referiu Teerão, Damasco e Pequim como aliados necessários.

Putin fez check: salvou Assad em 2015, estreitou laços com o Irão, abraçou o dragão. Mas também aqui algo falhou. Assad caiu, o Irão envolveu-se numa inoportuna guerra local e a Rússia acabou a fazer um pacto faustiano com a China, porque só assim pode prosseguir a guerra total na Ucrânia.

Dugin aconselhou prudência. Mas Putin avaliou mal e teve de escolher o kowtow à China, que está a jogar, com muito mais fôlego, um “Go” geopolítico que tem provavelmente os mesmos objectivos. Se Moscovo não lograr os seus a Ocidente, o futuro da Rússia será ficar na sombra da perigosa tolerância chinesa.

Para Dugin, o “inimigo número um” é claro: Estados Unidos e seus aliados no Rimland. O guião era desgastá-los sem confronto directo.

Putin procurou seguir à letra. Ucrânia como prioridade, expansão imperial, guerra híbrida, alianças externas, corrosão das democracias ocidentais. Mas os erros e fracassos assinalados, colocam tudo em causa, principalmente a submissão à China e o irritante ucraniano.

Para Dugin, “Sem resolver a questão ucraniana, é inútil falar de geopolítica continental.” É por isso que Kiev é apenas o início para Putin. A etapa seguinte é a Europa. E isto permite compreender plenamente a posição da Rússia quanto a negociações de paz.

Trump, no Alasca, tratou Putin como estadista respeitável. Saiu da reunião a papaguear o guião de Moscovo, convencido da sua própria esperteza. Várias semanas depois o saldo é o habitual: Putin a forçar a rendição da Ucrânia, Trump a gabar-se de um encontro “cordial”, e a Ucrânia a fincar os pés.

O “plano de paz” de Trump só interessa a Putin se lhe der tempo. Para se rearmar, para melhorar a posição, para atacar outra vez e prosseguir o seu objectivo. O que consta no guião de Dugin.

A paz não nascerá por isso de backdrops com slogans como Pursuing Peace. Nem de frases para telejornal, risos cordiais, palmas e passadeiras vermelhas. A paz só nascerá de uma de duas coisas: ou da derrota da visão imperial da Rússia, ou do seu sucesso. O primeiro cenário, implica coisas concretas e pela ordem certa. Em primeiro lugar, garantias de segurança para Kiev; eventuais cedências territoriais, de facto, mas não de jure, só depois.

E o que são garantias de segurança? Não é tinta em papel. Isso já não serve, a Rússia não respeita tratados. A principal garantia é um exército ucraniano forte, bem equipado e armado. São tropas europeias com poder de combate, em solo ucraniano, aviões americanos perto da fronteira, espaço aéreo protegido pela aviação aliada. E um compromisso claro de que atacar Kiev é atacar todos. Uma mini OTAN, com dentes moldados à volta de um sósia do célebre artigo 5.º. Sem isso não haverá outra paz senão a pax imperial russa.

E é aqui que o tema deixa de ser apenas Kiev e passa a ser “nós”. Porque essas garantias exigem que a Europa assuma as responsabilidades que sempre tentou evitar. Os Países Bálticos e a Polónia já vivem nesse registo, porque sabem o que os espera, se a Ucrânia cair.  Berlim está a começar a cavar trincheiras. Paris, Madrid ou Lisboa preferem continuar a oferecer comunicados de solidariedade, e material de segunda linha.

Mas o precedente de Budapeste 1994 é um aviso: a Ucrânia entregou as armas nucleares em troca de promessas vagas. Vinte anos depois, foi invadida. Se o erro for repetido, estaremos apenas a comprar tempo a Putin. Que o sabe usar melhor do que nós.

Quanto à Administração americana, parece estar a agir deliberadamente para isolar os EUA dos seus aliados, arruinar a economia e enfraquecer o país a médio e longo prazo, enquanto favorece Moscovo e Pequim.

Marcelo Rebelo de Sousa disse aquilo. É o que os italianos resumem com ironia: se non è vero, è ben trovato. Se não há aqui génio maquiavélico, há um amadorismo inacreditável, mas o resultado é o mesmo. Washington vai coleccionando erros estratégicos, e cada um deles é um presente para Putin e Xi Jinping.

E o mais trágico é isto: a factura virá de dentro, porque o backlash interno será inevitável. Em breve, regressarão ao poder forças que deitarão ao lixo tudo o que esta Administração fez. Incluindo as poucas políticas que mereciam ser salvas, como o controlo da imigração, o combate ao antissemitismo ou a resistência ao vírus woke.

Trump continuará quase certamente a privilegiar o espectáculo  e o espelho da Rainha Má. Mas se a Europa não montar um sistema de garantias sem depender da Casa Branca, o óbvio acabará por cair-nos em cima: a sobrevivência da Ucrânia é a nossa. E perder em Kiev é começar a perder em casa.

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