O celibato na Igreja Católica Oriental e Ocidental

Nem sempre foi obrigatório o celibato dos presbíteros católicos pois, nos primeiros tempos da história da Igreja, também os homens casados eram admitidos ao sacerdócio. Este costume manteve-se na Igreja católica oriental, mas não na Igreja católica latina, na qual o celibato é condição sine qua non para a ordenação sacerdotal.

O precedente da Igreja primitiva, o exemplo da Igreja católica oriental, o recente escândalo dos abusos de menores por sacerdotes, bem como a escassez de clero celibatário relançaram a questão da obrigatoriedade do celibato na Igreja católica latina.

Para este efeito, pareceu oportuno entrevistar o Papa São Paulo VI (*), que dedicou ao celibato sacerdotal uma das suas mais importantes encíclicas.

– Ao princípio, a Igreja católica não exigia o celibato aos candidatos ao presbiterado. Alguns Padres da Igreja, os primitivos escritores eclesiásticos, parecem até mais inclinados à ordenação de homens casados do que de homens solteiros …

“A estreita ligação – dizem alguns – que os Padres da Igreja e os escritores dos tempos passados estabelecem entre a vocação para o sacerdócio ministerial e a sagrada virgindade tem a sua origem em mentalidades e situações históricas muito diferentes das do nosso tempo. Lemos, na verdade, muitas vezes, nas obras dos Padres [da Igreja], que eles aconselham os sacerdotes mais a moderar o uso do matrimónio do que a guardar o celibato” (nº 6).

– Pode-se então dizer que a tradição do celibato eclesiástico não é apostólica, nem tem as suas raízes na primitiva Igreja?

“Na antiguidade cristã os Padres da Igreja e os escritores eclesiásticos dão testemunho da difusão, tanto no Oriente como no Ocidente, da prática livre do celibato entre os ministros sagrados, pela sua grande conveniência com a dedicação total deles próprios ao serviço de Cristo e da sua Igreja” (nº 35).

– Mas a obrigação do celibato na Igreja latina é relativamente tardia, não é?

“A partir dos fins do século IV, a Igreja do Ocidente, pela intervenção de vários Concílios provinciais e dos Sumos Pontífices, corroborou, desenvolveu e sancionou esta prática” (nº 36).

– A quem coube a iniciativa de propor o celibato na Igreja católica latina?

“Foram sobretudo os supremos Pastores e Mestres da Igreja de Deus, guardas e intérpretes do património da fé e da santidade dos costumes cristãos, que promoveram, defenderam e restauraram o celibato eclesiástico nas sucessivas épocas da história, mesmo quando se manifestavam oposições no próprio clero, e os costumes de uma sociedade decadente não eram favoráveis ao heroísmo da virtude.” (nº 36).

– No Oriente, pelo contrário, sempre se manteve e mantém, tanto na Igreja católica oriental como na Igreja ortodoxa, a disciplina do celibato opcional e, por isso, para além dos padres celibatários, também há padres casados. Não seria mais saudável que na Igreja católica latina igualmente ambos pudessem coexistir?

“Não será inútil ainda observar que, mesmo no Oriente, só os sacerdotes celibatários são ordenados Bispos, e os próprios sacerdotes não podem contrair matrimónio depois da ordenação sacerdotal; o que dá a entender como mesmo aquela veneranda Igreja possui em certa medida o princípio do sacerdócio celibatário e o de uma certa conveniência do celibato para o sacerdócio cristão, de que os Bispos possuem o cume e a plenitude.” (nº40).

– Não obstante esse apreço, também na Igreja católica oriental, pelo celibato sacerdotal, não se pode negar que, na Igreja católica ocidental, há um crescente interesse pela revisão do estatuto do clero secular, nomeadamente no que respeita à obrigatoriedade do celibato…

“Os Sumos Pontífices dos últimos tempos desenvolveram o seu mais ardente zelo e esforço doutrinal para esclarecer e estimular o clero na prática desta observância.” (nº 37).

– Mas o Papa São João XXIII, ao convocar o Concílio Vaticano II, não pretendeu modernizar a Igreja, nomeadamente no que respeita ao celibato sacerdotal?

“Não queremos deixar de render particular homenagem à piedosa memória do nosso imediato Predecessor [o Papa João XXIII], ainda vivo no coração dos homens, que pronunciou, no Sínodo Romano, com a aprovação sincera do nosso clero de Roma, estas palavras: ‘Aflige-nos que alguns possam imaginar que a Igreja Católica deliberadamente, ou por conveniência, virá a renunciar aquilo que, ao longo dos tempos, foi e continua a ser uma das glórias mais nobres e mais puras do seu sacerdócio. A lei do celibato eclesiástico e o cuidado de a fazer prevalecer evoca sempre os combates dos tempos heróicos, quando a Igreja de Cristo teve de lutar e conseguiu fazer triunfar a sua gloriosa trilogia, emblema constante de vitória: Igreja de Cristo livre, casta e católica’ (João XXIII, Alocução ao Sínodo Romano, 26-1-1960, AAS, 52, 1960, p. 226).” (nº 37).

– É frequente dizer-se que a imposição do celibato na Igreja católica latina é uma das principais razões para os abusos de menores pelo clero católico, bem como para a falta de vocações sacerdotais na Igreja, como, aliás, Vossa Santidade reconheceu: “Manter o celibato sacerdotal na Igreja causaria, por outro lado, gravíssimo dano onde a escassez numérica do clero, reconhecida e deplorada pelo próprio Concílio Ecuménico Vaticano II, provoca situações dramáticas, impedindo a plena realização do plano divino de salvação, pondo, por vezes, em perigo a própria possibilidade do primeiro anúncio do Evangelho. Muitos, na verdade, julgam que esta grande escassez de sacerdotes provém da obrigação de guardar o celibato” (nº 8).

– Com efeito, o celibato obrigatório afasta muitos católicos do sacerdócio …

“Nosso Senhor Jesus Cristo não hesitou em confiar a um pequeno número de homens, que todos julgariam insuficientes em número e qualidade, a esmagadora missão de evangelizar o mundo então conhecido, e a esse ‘pequeno rebanho’ ordenou que não temesse porque, por Ele e com Ele, graças à sua assistência constante, conseguiria a vitória sobre o mundo. Jesus advertiu-nos ainda que o reino de Deus tem em si mesmo uma força íntima e secreta que lhe permite crescer e chegar à colheita sem que o homem o saiba” (nº 47).

– Mas, essa confiança na providência divina não pode esconder uma certa inércia e grave imprudência em relação às vocações sacerdotais?!

“A messe do reino de Deus é grande e os operários são poucos ainda hoje, como no princípio; nunca foram em número tal que o julgamento dos homens os achasse suficientes. Mas o Senhor do reino manda que se reze para que seja o Senhor da messe a enviar operários para o seu campo. Os projectos e a prudência do homem não podem sobrepor-se à misteriosa sabedoria daquele que na história da salvação desafiou a sabedoria e o poder do homem com a sua loucura e a sua fraqueza” (nº 47).

(*) Todos os textos entre aspas e em itálico procedem da Encíclica SacerdotalisCaelibatus, do Papa São Paulo VI.

Oito mil clientes sem luz por causa dos incêndios

Cerca de oito mil clientes estavam esta sexta-feira, pelas 22h00, sem eletricidade em diversos concelhos do Norte e Centro de Portugal continental atingidos pelos incêndios rurais, informou à Lusa fonte oficial da distribuidora E-Redes.

Segundo a fonte, os concelhos mais afetados hoje por avarias elétricas causadas pelos fogos foram Mêda, Vila Flor, Sernancelhe, Penedono, Moimenta da Beira, Arganil, Oliveira do Hospital, Pinhel, Torre de Moncorvo, Trancoso, Lousã, Góis, Pampilhosa da Serra, Mogadouro e Freixo de Espada à Cinta.

Durante o dia, o número de clientes afetados pelas avarias chegou a atingir os 20 mil, mas à noite, pelas 22h00, a situação encontrava-se “em processo de normalização, com cerca de oito mil clientes ainda sem fornecimento de energia nos locais referidos”, indicou a E-Redes, acrescentando que “tem no terreno” cerca de 150 trabalhadores que, “em estreita colaboração” com a Proteção Civil, “estão a intervir para repor o fornecimento de energia elétrica sempre que as condições o permitem”.

A E-Redes salientou que o encerramento de algumas estradas “tem dificultado o acesso das equipas a determinadas zonas”, criando obstáculos à resolução de algumas avarias.

A mesma fonte adiantou que as equipas da E-Redes e parceiros continuarão no terreno “para avaliar os danos, nas zonas ardidas, e repor a rede quando for possível fazê-lo em condições de segurança”.

“Palestinianismo”, essa doença infantil

O “wokismo” está em queda desde há dois ou três anos. O primeiro prego no caixão foram os severos prejuízos das empresas que apostaram nas maravilhas da “inclusão” e julgaram que insultar dois terços do público era uma hábil estratégia comercial. O segundo prego, praticamente um rebite, foi o regresso de Donald Trump à Casa Branca, tragédia que levou incontáveis derrotados a gritar terapeuticamente para o mar, para o TikTok ou para o psiquiatra. De desfeita em desfeita, a coisa murchou. Começa a tornar-se difícil encontrar um sujeito que fale em “pessoas que menstruam” sem se rir ou sem que riam dele. As “reparações” parecem ruínas de um passado quase tão remoto quanto os absurdos “motivos” das próprias “reparações”. E o respeito pela susceptibilidade de criaturas “micro-agredidas” sumiu em parte incerta. Episódios como o dos jeans/genes da modelo Sidney Sweeney são, desconfio, o estertor de um culto esgotado.

Sucede que o culto, a que podemos chamar esquerda, é perito a esgotar-se e a ressurgir sob novas formas, ao estilo dos percevejos e salamandras. Há décadas que a derrocada da luta de classes força a esquerda a consumir-se e a  renascer sem parança, em busca de trafulhices fresquinhas. Não é tarefa simples. Arranjar alternativas à arcaica defesa dos trabalhadores dá um trabalhão. Felizmente, o trabalho dá frutos: mal um truque é desmontado em praça pública e privada, os “activistas” puxam da cartola outro prontinho a usar. Com as alucinações “woke” nos cuidados intensivos, o truque em voga é o “palestinianismo” – ou o “gazismo”, para poupar nas sílabas.

É escusado explicar a etimologia das palavras. Basta notar que a esquerda está concentrada em afligir-se pela “Palestina”, sobretudo o pedaço da “Palestina” dominado pelo Hamas, e em esconjurar Israel. À semelhança do que acontecia no “identitarismo”, as vítimas continuam a ser instrumentais. A indignação face aos mortos reais e imaginários em Gaza perde um bocadinho de legitimidade quando não se estende a qualquer população ou grupo de facto massacrados por esse mundo afora. Do Sudão do Sul a Moçambique, da Nigéria ao Darfur, da Síria à falecida Birmânia, não há vivalma nas ruas da Europa e da América a protestar as matanças em curso.

A reacção às matanças, portanto, é altamente selectiva: com a excepção de Gaza, onde na verdade há uma guerra, os restantes desgraçados podem morrer livre e impunemente. Porquê? Porque as respectivas mortes não podem ser atribuídas a Israel (mesmo que através de mentiras e “Photoshop” básico), pormenor que só por si garante boa parte da indiferença. O bónus de, na maioria dos casos, as referidas chacinas serem cometidas por muçulmanos assegura a indiferença completa. Conforme o nome indica, o “palestinianismo” não se distrai com minudências.

O “palestinianismo” também não poupa no léxico. Benjamin Netanyahu é nada menos que um “nazi” e os esforços de Israel para eliminar um bando de psicopatas enquanto tenta conter as baixas civis são um “genocídio” comparável ao Holocausto. A lenda do “genocídio”, originada no ministério da Propaganda, perdão, da Saúde do Hamas, e acolhida de braços abertos por 90% dos “media” ocidentais, embate de frente contra uma realidade em que a demografia de Gaza prospera em vez de encolher. Já as comparações com o Holocausto são uma óbvia desvalorização do mesmo e um lamento dissimulado do seu parcial falhanço: se não houvesse sobreviventes à Solução Final, Israel não existiria, um enorme alívio para milhões de “anti-sionistas”, os boçais que desconhecem o significado do termo e os que o usam com pura má-fé.

Embora a ignorância pese bastante, a má-fé é aqui essencial. Em larga medida, a esquerda sabe que Israel é uma democracia e que Gaza é um covil de assassinos. A esquerda sabe dos alertas das IDF e da crueldade dos assassinos para com os locais, dissonantes ou sacrificiais. A esquerda sabe do vergonhoso papel das metástases da ONU e de inúmeros “jornalistas”. A esquerda sabe o que quer dizer “do rio ao mar” e demais juras de extermínio. A esquerda sabe que o conflito no Médio Oriente opõe a civilização que temos à selvajaria, e por isso não hesita em escolher o lado da trincheira. Entre o nosso proverbial “modo de vida” e a sua destruição radical, a esquerda nunca hesitou e não hesitará agora. O “palestinianismo” é apenas a máscara com que hoje a esquerda esconde, muito mal, os recorrentes objectivos de assalto, conquista e aniquilação. Não é a primeira máscara e não será a última.

A novidade é que, ao contrário do “wokismo” e de todos os simulacros de “causas” anteriores, o “palestinianismo” conta com abundantes aliados à “direita”. E o que para a esquerda é principalmente pretexto, para essa “direita” é absolutamente desígnio, e a oportunidade de exercer com à vontade o velho horror ao judeu. Nesta matéria, “skinheads”, fascistas a sério, alguns sociais-democratas e até o ocasional libertário unem-se à esquerda e ao terrorismo islâmico na aversão visceral a Israel. Ao conferir ao seu povo um lugar comum, Israel oferece aos inimigos um propósito partilhado, capaz de mitigar desavenças e apagar contradições. Ao juntar beatos às viúvas de Lenine, o “palestinianismo” é capaz de fenómenos insondáveis. O ódio faz milagres.

Miguel Sousa Tavares: “Os helicópteros bons que tínhamos demos à Ucrânia, para ajudar à guerra, e agora não os temos para combater os fogos”

Neste episódio do podcast Miguel Sousa Tavares de Viva Voz, o jornalista começa por Washington, para onde Trump enviou tropas da Guarda Nacional para conter uma alegada onda de crime: “Toda a gente está a capitular perante Trump, é um autêntico bulldozer que ninguém trava, e eu chego a espantar-me como é que ele tem capacidade durante as 24 horas de um dia para tomar tantas decisões e disparar em tantas direções”.

Tiago Pereira Santos

Aliás, o cronista vê o Presidente dos EUA a aproximar-se do “seu grande sonho de ser Prémio Nobel da Paz: “Seria uma coisa extraordinária que um homem que intimida o mundo inteiro, através de ameaças ou através de tarifas, fosse considerado o maior pacifista do mundo, mas eu já vi prémios Nobel serem atribuídos por razões políticas. Basta pensar que Kissinger [ex-Secretário de Estado dos EUA] foi Nobel da Paz, e portanto tudo é possível”.

A situação em Gaza merece atenção neste episódio, em que também se antevê o que poderá sair do encontro de sexta-feira no Alasca, entre Trump e Putin, do qual a Europa se vê arredada: “Não fez nada para que essa guerra terminasse, e agora vê-se nesta situação de ser ultrapassada, humilhada, desconsiderada pelos Estados Unidos, e merece-o. Merece-o porque esta geração de dirigentes europeus é absolutamente incompetente, hipócrita e está fora da história”.

Miguel Sousa Tavares de Viva Voz é um podcast de Paula Santos e que neste episódio foi conduzido por João Pedro Barros. Oiça e subscreva na aplicação que usa no seu smartphone para ouvir podcasts ou acompanhe em Expresso.pt.

Quando as raízes são esquecidas…

1. Em fevereiro de 1945, nas margens do Mar Negro, mais precisamente em Yalta, reuniam-se Franklin D. Roosevelt, Josef Stalin e Winston Churchill. A fotografia do acordo final é um ícone de uma mundividência em que se une o leste euro-asiático, Europa e América.

Em agosto de 2025, ocorreu uma reunião altamente simbólica entre os presidentes dos Estados Unidos e da Rússia na Base Conjunta Elmendorf‑Richardson, no Alasca, para tratar do futuro da Ucrânia e, por inerência, do futuro da Europa. Mas, onde está a Europa? A Europa assistiu de fora, o que evidencia com clareza a marginalização do continente nas decisões cruciais sobre o futuro.

Este “momento Alasca” é mais do que geopolítica: é um sintoma da profunda irrelevância em que a Europa redundou. Com efeito, a Europa nasceu de uma matriz espiritual inconfundível. Mas quando uma árvore corta as suas raízes, não pode esperar permanecer de pé. Hoje, assistimos ao declínio do peso europeu no mundo, não por falta de recursos, nem por debilidade económica, nem tampouco por fraqueza tecnológica, mas por uma crise mais profunda: o esquecimento da sua própria identidade.

2. A sombra deste declínio político reflete a perda das raízes judaico-cristãs que estruturaram a alma da Europa. Durante séculos, a ética cristã – com seus princípios de dignidade humana, justiça, solidariedade e verdade transcendente – foi o espaço legítimo de expressão da civilização europeia. Hoje, em muitos círculos, ela é vista como opcional, irrelevante, desprovida de toda a força e influência.

Ao longo de séculos, buscou-se uma secularização de tudo o que era religioso e espiritual na Europa, acabando-se num laicismo (bastante diferente da sã laicidade) ateu e agnóstico, que encerra o dado religioso apenas na esfera privada. Isto conduziu à recusa em incluir a referência às raízes cristãs da Europa na Constituição Europeia (anos de 2003 e 2004), situação que levou São João Paulo II a recordar, com amargura, que não se entende a Europa sem a referência à fé cristã. São sintomáticas estas palavras: “O ‘velho’ continente tem necessidade de Jesus Cristo para não perder a sua alma e para não perder tudo o que o fez grande no passado”. (1)

O pontificado de Bento XVI ficou marcado por sucessivos convites para a Europa fazer exame de consciência a respeito da sua identidade mais profunda, sublinhando como só se entende o projeto europeu com base no Direito romano, na Filosofia grega e na Ética judaico-cristã. A colocação de Deus como fundamento transcendente da realidade é essencial para que subsistam aqueles valores fundamentais que pautam a vida europeia. Com efeito, como afirmava Bento XVI falando no Bundestag, na Alemanha: “A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa”.(2) Sem a visão de transcendência, as cadeias de significado rompem-se e a cultura degrada-se em utilitarismo.

Também o Papa Francisco, na visita ao Parlamento Europeu em 2014, assinalou de forma marcante que “uma Europa que já não seja capaz de se abrir à dimensão transcendente da vida é uma Europa que lentamente corre o risco de perder a sua própria alma e também aquele ‘espírito humanista’ que naturalmente ama e defende”.(3) Com efeito, o vazio espiritual nunca é neutro: destrói a herança cultural e torna a político impotente.

A necessidade incontornável do transcendente para fundar aquilo que é a vida social foi também assinalada pelo Papa Leão XIV quando, dirigindo-se aos governantes que participaram no Jubileu, afirmou: “Para ter um ponto de referência unitário na ação política, em vez de excluir a priori nos processos decisórios a consideração do transcendente, será útil procurar nele o que une todos”.(4)

De facto, a realidade é muito clara: sem essa bússola ética que orientou a Europa durante séculos, as instituições perdem coerência, a solidariedade estreita-se, o testemunho no mundo esvai-se. Sem princípios que transcendam o imediato, as decisões tornam-se reféns do cálculo e do interesse momentâneo. É imprescindível reencontrar as raízes da Europa se queremos recuperar a unidade na diversidade, que sempre foi a identidade europeia.

3. Este momento é sério, mas não sem esperança. A crise pode ser um convite à conversão – um retorno consciente às fontes que forjaram nossa identidade.

Em primeiro lugar, é necessário ter memória. Recuperar a memória das raízes judaico-cristãs, não como nostalgia, mas como renovação inteligente de uma cultura que promove o bem comum, a dignidade de cada pessoa e a verdade que torna a convivência humana possível. Neste sentido, é necessário recordar a importância do conceito de família edificado sobre o matrimónio monogâmico, única forma de garantir a igual dignidade entre homem e mulher.

O segundo desafio é de intervenção na vida pública. É necessário integrar essas raízes na vida pública – na formação dos responsáveis, no espaço da persuasão democrática, na educação, na solidariedade internacional – não como vestígios, mas como horizonte que sustenta o futuro. Neste desafio abrem-se duas portas essenciais: uma recuperação da ética como orientação fundamental para a vida e presença pública; devolver a dignidade à ação pública e política, para que seja sempre e por todos vista e vivida como missão de serviço ao bem comum.

Terceiro desafio premente: presença mundial. Temos de construir uma presença europeia capaz de dialogar com o mundo – diplomática, cultural, ética – que reforce a relevância internacional da Europa como ator moral e civilizacional. E, ao mesmo tempo, oferecer ao mundo algo único: a audácia de viver segundo ideais que talvez outros esqueceram, mas que são também fermento de esperança.

A Europa esqueceu a fé que construiu as suas catedrais e universidades, inspirou a sua arte e moldou a sua política. Em troca, abraçou um pragmatismo sem horizonte, uma neutralidade que é, afinal, vazio. Sem Deus, não há visão. Sem visão, não há liderança. E sem liderança, a Europa torna-se irrelevante.

Este é o momento de sermos europeus com raízes fortes, que entendem que a relevância não se reconquista apenas com poder ou tecnologia, mas com verdade, beleza e compaixão. Que sejamos, novamente, farol de civilização, guiando o mundo de volta à dignidade, ao respeito e ao horizonte transcendente.

Ainda que com enquadramento bélico, vale a pena recordar o que G. K. Chesterton escreveu: “O verdadeiro soldado não combate porque tem diante de si algo que odeia. Ele combate porque tem atrás de si algo que ele ama”. Será que a Europa saberá o que ama para ter algo que defender? (5)

(1) Discurso, 23 de fevereiro de 2002, n. 4.
(2) Bento XVI, Discurso, 22 de setembro de 2011.
(3) Francisco, Discurso, 25 de novembro de 2014.
(4) Leão XIV, Discurso, 21 de junho de 2025.
(5) G. K. Chesterton, Our notebook, in The Illustrated London News, 31 de dezembro de 1910, p.
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Portugal a várias velocidades: a atratividade regional está a falhar

Portugal não é um país pequeno, é um país concentrado, centralizado e institucionalmente preguiçoso quando se trata de repensar a organização do seu território. A geografia administrativa permanece quase inalterada há décadas. A arquitetura da governação ignora, em grande medida, a diversidade de contextos regionais, e os fundos europeus, que deveriam ser o principal instrumento de transformação territorial, são frequentemente usados para reforçar o que já existe em vez de corrigir desigualdades.

A OCDE tem vindo a desmontar, com precisão analítica e base empírica robusta, a ilusão da homogeneidade territorial em Portugal. Os quatro relatórios publicados no âmbito do programa Rethinking Regional Attractiveness constituem uma avaliação sem precedentes sobre a capacidade das regiões portuguesas para atrair e reter talento, investimento e visitantes. As conclusões são claras: Portugal é um país a várias velocidades, com assimetrias profundas e modelos de desenvolvimento regional desconectados entre si.

O Norte apresenta dinamismo industrial e alguma capacidade de inovação, mas enfrenta riscos demográficos graves e fraca retenção de talento jovem. A Área Metropolitana de Lisboa concentra investimento, conhecimento e conectividade global, mas sofre de polarização funcional, fragmentação institucional e uma pressão habitacional insustentável. O Alentejo tem recursos naturais e espaço, mas regista os piores indicadores de coesão social, inovação e vitalidade económica. O Algarve vive da monocultura turística, com fragilidades digitais, exclusão territorial no interior e elevada exposição a choques externos.

O diagnóstico é consistente, transversal e conhecido. Não é a falta de dados, estudos ou planos estratégicos que impede a correção destas assimetrias. É a ausência de uma política territorial consequente, liderada por um Estado que continua a confundir centralismo com coesão.

Em vez de desenhar políticas públicas diferenciadas, adaptadas às especificidades de cada território, o Estado português insiste em aplicar soluções uniformes, tecnocráticas e indiferenciadas. Os Programas Regionais do Portugal 2030 continuam a ser moldados por lógicas setoriais verticais, com escassa integração territorial e pouca margem para estratégias genuinamente regionais. Os fundos europeus, em vez de promoverem transformação, são muitas vezes absorvidos por estruturas administrativas que reproduzem inércia, desperdício e subaproveitamento estratégico.

A política de coesão da União Europeia oferece instrumentos claros: especialização inteligente, governação multinível, monitorização por indicadores territoriais, reforço da capacidade institucional local. Portugal adere formalmente a estes princípios, mas não os concretiza. Os relatórios da OCDE demonstram que, fora da Área Metropolitana de Lisboa, o país falha sistematicamente em transformar potencial em atratividade. A taxa de emprego jovem no Alentejo é a mais baixa do país. O interior do Algarve permanece à margem da conectividade digital básica. O Norte perde talento qualificado para os mesmos centros urbanos que já concentram quase tudo. A governação intermunicipal é frágil, a cooperação regional é episódica e o planeamento integrado continua a ser uma exceção.

A fragmentação da governação territorial reflete-se também na incapacidade de alinhar políticas nacionais com os objetivos europeus. Enquanto a União Europeia insiste numa transição digital, verde e coesa, Portugal responde com planos genéricos, metas vagas e decisões que continuam a privilegiar os territórios já dominantes. A transição energética no Alentejo não se traduz em fixação de população ou renovação institucional. O sucesso turístico do Algarve não gera redistribuição de riqueza nem requalificação do interior. A concentração de investimento em Lisboa não é acompanhada por mecanismos de compensação que promovam equilíbrio funcional entre regiões.

O verdadeiro obstáculo à atratividade regional em Portugal é político. É o facto de continuarmos sem uma visão territorial integrada, sem descentralização efetiva, sem articulação real entre níveis de governação. O país precisa de deixar de ver o território como um espaço a gerir e começar a tratá-lo como um sistema a desenvolver. Isso implica reformar profundamente a governação local, criar instrumentos de planeamento intermunicipal vinculativo, assegurar recursos adequados às regiões e assumir, com clareza, que a coesão territorial exige escolhas difíceis, prioridades definidas e coragem institucional.

A atratividade regional não é um luxo analítico, é uma condição estrutural para o desenvolvimento sustentável, a justiça social e a competitividade económica. A Europa já o percebeu. Está a investir em regiões inteligentes, em territórios resilientes, em estratégias diferenciadas. Portugal, se quiser acompanhar, terá de fazer mais do que aceitar fundos: terá de transformar o seu modelo de decisão política.

As ferramentas estão disponíveis, os dados estão acessíveis, os diagnósticos estão feitos. O que falta é o essencial: vontade de mudar, e essa responsabilidade não é dos relatórios técnicos, é da governação central.

“Sem uma viragem estratégica clara, Portugal arrisca-se a perpetuar um modelo territorial desequilibrado, onde os recursos europeus alimentam a estagnação em vez de promoverem a convergência.”

O dia em que deixei de ver a minha filha

Tudo mudou para o José numa única semana: a separação, as acusações, a ordem judicial. Nove anos depois, continua sem abraçar a filha. Neste e nos próximos artigos, vamos percorrer esta história passo a passo.

José recordou com clareza o dia em que a sua vida mudou para sempre. Na altura, a Maria, a sua única filha, tinha apenas seis anos e meio. Pouco tempo depois da separação da mãe da Maria, ele viu-se repentinamente afastado do convívio diário que sempre tivera com a filha. Como nos contou, esse afastamento, que inicialmente acreditou ser temporário, prolongou-se por mais de nove anos e ainda hoje, com a Maria já adolescente de 16 anos, a distância mantém-se: “O meu nome é José, tenho uma filha, a Maria (nome fictício), hoje com 16 anos e deixei de ter convívio com ela há já nove anos e meio, altura em que me separei da mãe (…) na sequência de uma queixa às autoridades, com a acusação formal de eu haver praticado crimes de violência doméstica, dois para ser exato, na forma de agressões físicas e verbais continuadas, ao longo de 6 anos, a ela e à minha filha, desde o primeiro mês de idade”.

As acusações surgiram logo após a separação, como um golpe súbito que alterou por completo a sua relação com a filha. A mãe apresentou queixa formal às autoridades, imputando a José dois crimes de violência doméstica.

Do ponto de vista psicológico, este é um padrão frequente nos casos de alienação parental: a introdução de acusações graves no momento da rutura conjugal, muitas vezes coincidente com pedidos de guarda exclusiva. A narrativa acusatória constrói-se de forma a criar medo ou rejeição na criança e a sustentar medidas judiciais que limitem ou impeçam o contacto com o pai ou mãe alienado.

José sempre negou as acusações e sentiu que a verdadeira intenção não era proteger Maria, mas sim afastá-lo definitivamente. A partir daí, iniciou-se um processo judicial que, nas suas palavras, foi usado como instrumento para justificar o corte do vínculo pai-filha, como nos partilhou: “Esse processo correu os trâmites normais, Tribunal de Instrução Criminal, que considerou existir matéria para levar o processo a julgamento, a que se seguiu o julgamento de facto, cerca de sete meses depois, em Tribunal Criminal e perante um coletivo de juízes, tendo, entretanto, por essa altura, para a regulação das responsabilidades parentais, o Tribunal de Família e Menores, quando da primeira Conferência de Pais, entendido fixar, como medida cautelar, a guarda provisória da criança, a minha filha Maria, sob a responsabilidade da mãe”.

A situação descrita é bem ilustrativa da dupla penalização que pode ocorrer na gestão de um processo judicial similar. Apesar de não existir qualquer sentença definitiva no processo criminal é tomada uma medida cautelar que inibiu o José de partilhar a guarda de Maria. A partir daquele momento, a mãe passou a ter a guarda exclusiva, enquanto José recebia uma determinação judicial que definia os seus direitos e limitações. Na prática, isso significou que, a partir daquele momento, José deixou de ter qualquer convivência regular com a filha.

Essa decisão provisória, comum em contextos de conflito parental intenso, teve impacto psicológico imediato: ao entregar a guarda exclusiva à mãe no início do processo, o tribunal criou um ambiente de convivência unilateral, onde a criança ficou exposta a apenas uma das versões da história familiar, num contexto nada saudável de deturpação da realidade, de acordo com o José: “Quanto aos direitos, obrigações e responsabilidades do pai, para além da fixação de uma pensão de alimentos, a possibilidade de ‘…poderá estar com a menor, mediante a supervisão da Segurança Social’. Parecia uma medida aceitável, dadas as circunstâncias, já que tinha absoluta consciência de que as acusações eram falsas e caluniosas e até formuladas de forma invertida, já que a vítima, na verdade, era eu, não de agressões físicas, porque nunca existiram, felizmente de parte a parte, mas de 6 anos de agressões verbais, de ofensas profundas e caluniosas, a mim, a diversos membros da minha família, incluindo os meus pais e amigos, perpetrados pela mãe da minha filha, habitualmente no calor de frequentes surtos psicóticos, movidos por um transtorno da personalidade, já então classificada de borderline (estado limite), por diversas avaliações psiquiátricas e psicológicas, nomeadamente pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), de que eu tinha provas de facto”.

Os meses transformaram-se em anos, e a ausência prolongada fez com que Maria crescesse rodeada apenas pela narrativa materna. José sente que, além de ter perdido o contacto, foi apagado da memória afetiva da filha. A decisão judicial, ainda que provisória, criou um distanciamento que se tornou cada vez mais difícil de reverter.

José acreditava que, mesmo com restrições, poderia manter algum contacto com a filha e investir na relação para restabelecer o vínculo. No entanto, essa esperança desfez-se rapidamente. Aquilo que começou como um processo judicial deveria, em teoria, proteger Maria, mas acabou por contribuir para a rutura total do vínculo afetivo entre pai e filha. José ficou com cicatrizes emocionais e sociais profundas e um sentimento de injustiça que o acompanha até hoje e a Maria cresceu sem o pai, exposta a um discurso unilateral e privado de uma relação parental equilibrada. Para a Maria, a ausência do pai ao longo da infância e adolescência criou lacunas afetivas, memórias e recordações distorcidas e uma imagem paternal construída apenas a partir da influência constante de uma única versão dos factos, da narrativa materna alienadora.

Hoje, José sobrevive com as consequências desse afastamento, o peso emocional de uma relação interrompida, a reputação abalada pelas acusações e a dor de não poder acompanhar o crescimento da filha.

Esta é a história de um pai e de uma filha alienados, separados entre si, não por sua escolha, mas por um processo que, no seu entender, transformou acusações em barreiras, e medidas cautelares em muros quase intransponíveis.

Um poema, um erro e o eco de Tirésias

A versão mais completa do mito de Narciso pode ser encontrada em Metamorfoses, um poema do século I d.C., da autoria de Ovídio, um romano apaixonado pela cultura grega. Ovídio foi, no auge da fama, exilado por Augusto – uma espécie de Reagan da época, um homem astuto que percebia que a retórica dos valores familiares era uma ferramenta política bem mais eficaz do que eleições ou exércitos – por razões que, até hoje, permanecem um mistério.

A única pista que temos é do próprio poeta, que, numa série triste de cartas em verso dirigidas ao pétreo e implacável imperador, menciona um certo carmen et error, “um poema e um erro”. O consenso académico é, desde há muito, de que tanto o poema como o erro seriam de natureza erótica. Quando li pela primeira vez Metamorfoses, despojado da poesia num semestre frio e cinzento, senti como meu esse erro de desejo capaz de, terrível, nos afastar para sempre de casa, daquele lugar que nos define.

O mito que Ovídio narra – entrançando mitos antigos que ouvira e lera, e moldando-os naquilo que consideramos a versão definitiva – é-nos familiar: Narciso, um belíssimo jovem, apaixona-se irremediavelmente pelo seu próprio reflexo depois de parar para beber numa fresca clareira. Encantado pela sedutora imagem que pensa ser um espírito da água, vê constantemente frustradas as tentativas de lhe tocar: sempre que se inclina para lhe acariciar o pescoço, toca apenas água insubstancial; quando amorosamente se dirige àquele branco rosto de mármore, os lábios que cobiça movem-se também, mas não proferem um discurso claro. Depois de dias de desespero, definha e morre. “A Morte”, escreve Ovídio, “fechou os olhos maravilhados com a beleza do seu dono”.

Mas o mito de Narciso em Ovídio é, na verdade, a segunda parte de uma história mais longa. A primeira parte relata como, antes de ter o azar de se ver, o belo Narciso provocou uma ninfa chamada Eco, que há muito o amava em segredo. Eco vivia uma maldição terrível, uma punição pela sua tendência para a tagarelice: não era capaz de falar, mas apenas de repetir o que outros dissessem. Um dia, enquanto caçava numa floresta densa, Narciso separou-se dos seus companheiros. “Está alguém aí?”, gritou; e Eco, escondendo-se, conseguiu apenas gritar de volta: “Aí!” Curioso, Narciso pediu que o estranho aparecesse. “Vem!” gritou Eco de volta. Por fim, Narciso disse: “Vamo-nos encontrar”, palavras que Eco alegremente… ecoou. Mas quando ela se revelou, Narciso ficou horrorizado e fugiu-lhe. E de um eco ferido, definhando em saudade e desejo, fica apenas, como bem sabemos, uma voz. Ovídio não especifica a razão pela qual Narciso ficou horrorizado com a visão de Eco; mas diz-nos que o subsequente e fatal arrebatamento com o seu próprio rosto foi disso uma punição.

O mito de Eco nada mais é senão uma história sobre a diferença confundida com a semelhança: nela, objecto e sujeito são de facto distintos, dois indivíduos separados, mas (pelo menos inicialmente) parecem indistinguíveis; e a história de Narciso, como sabemos, é uma história sobre a semelhança confundida com diferença, na qual o objecto e o sujeito são de facto o mesmo, mas parecem ser diferentes.

Quando ponderada contra as densas complexidades da experiência vivida, essa leitura da “identidade” não pode deixar de parecer inadequada – mais útil do que verdadeira; plana, fácil, segura. A imagem que a água reflecte nem sempre é a imagem complacente que desejávamos; a verdade é mais rica, mais complexa, muito mais exigente.

E, escusado será dizer, mais problemática. Pois um homem sonhar com a sua própria imagem reflectida nas águas era, pensavam os gregos, uma premonição da sua própria morte. O conhecimento – uma visão clara da sua própria imagem – pode ser perigoso. O conhecimento pode tornar-nos conscientes de que as certezas dos outros são muitas vezes mais convenientes do que verdadeiras, permitindo que aqueles que as alimentam vivam uma vida coerente e serena, permitindo que as suas escolhas e ideias façam uma espécie de sentido. O conhecimento das complexidades, dos homens e das coisas, desestabiliza-nos, fragmenta o sentido de quem somos, estilhaça-nos a identidade.

O que me leva ao meu segundo ponto: sabemos que a mãe de Narciso, uma ninfa, perguntou certa vez ao cego profeta Tirésias se a criança viveria até a velhice. Em Ovídio, a ninfa consulta o vetusto vidente logo após dar à luz; mas numa outra versão, uma versão que prefiro – pois não serão a profecia e a gravidez duas condições em que se está cheio de futuro? – a mãe de Narciso aproxima-se do velho profeta pouco antes do parto, quando ainda transporta a criança dentro de si.

Nesta versão, a rapariga procura conhecimento, desejando saber se o filho por nascer terá uma boa vida. O velho, exausto de todo o conhecimento, com a pele tão dura como couro velho, de mãos retorcidas, assusta, talvez, a rapariga com os olhos riscados de albumina que, dentro de si, na escuridão, vêem tudo. E que vêem eles? Vêem a bela miúda que ali está de pé, lábios húmidos de medo; vêem, sob o vestido de gaze, a pele esticada e brilhante da enorme barriga pronta a estourar, como um fruto, tão grande que o crescente de pelos púbicos desapareceu, para baixo daquela linha, onde apenas os seus olhos cegos podem ver; vêem o feto crescido dentro da barriga, e, além disso, como a semente no interior da fruta, um belo rapaz, membros longos, dentro da rapariga cansada e deformada. E eles conseguem ver, por fim, o rapaz a tentar abraçar o que vê na água; o vidente consegue ver as pontas molhadas dos seus caracóis no lago; consegue ver a visão do rapaz embaçada à medida que o seu rosto se aproxima da água, todas as distinções ondulando já para o nada: o velho consegue ver tudo, e ele já sabe, como o rapaz não sabe e jamais poderá saber, que aquilo que ele procura não está ali, que o abraço que ele procura iludi-lo-á sempre, que não há nada entre os lábios e a água, entre o desejo e o reflexo, apenas o mito e o espelho, apenas desejo irrealizável, e loucura e extinção.

Sim, diz o velho por fim, piscando os seus olhos cegos de volta ao presente: um homem cego tentando não ver, um velho tentando impedir que a rapariga tente conhecer o mistério da identidade; uma tarefa desesperada, como bem sabe. Sim, a criança que ainda não nasceu pode viver até a velhice: Si se non noverit. Apenas se jamais se conhecer.

Do Estado de Direito ao Estado de Suspeita: o que esconde o Chat Control?

Com o pretexto de proteger as crianças contra o abuso sexual online, a União Europeia prepara-se para abrir as portas a uma das maiores violações da privacidade da história digital europeia. A proposta legislativa conhecida como Chat Control (Regulamento para Prevenção e Combate ao Abuso Sexual de Crianças) pretende impor a vigilância sistemática das comunicações privadas digitais — incluindo mensagens encriptadas — através de algoritmos de inteligência artificial. Se for aprovada, a Europa deixará de ser um espaço onde a privacidade é garantida por princípio. Passará a ser uma zona de suspeição digital permanente, onde todos somos potenciais criminosos à espera de triagem automatizada.

A proposta contraria frontalmente os artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que protegem a vida privada e os dados pessoais. O próprio Tribunal de Justiça da UE já reafirmou, em decisões como Digital Rights Ireland (C-293/12) e La Quadrature du Net (C-511/18), que a vigilância massiva e indiscriminada é ilegal, mesmo com motivações legítimas. Mas a Comissão Europeia, numa inversão perigosa da lógica constitucional, defende que o interesse superior da criança justifica medidas de exceção.É a porta de entrada para o Estado de exceção digital.

Com o Chat Control, a tua vida privada deixa de ser tua. Eis alguns cenários perfeitamente possíveis:

Envias uma foto do teu filho no banho ao médico? O algoritmo deteta nudez. A tua conta é bloqueada. O teu nome é sinalizado num sistema europeu.

Tens uma relação à distância e trocas vídeos íntimos com consentimento? A tua intimidade será escutada por um filtro automático. O conteúdo pode ser retido ou investigado.

Publicas um conto com metáforas sensíveis? As tuas palavras são analisadas por uma IA sem contexto. És classificado como potencial risco.

O método técnico para esta vigilância é conhecido como client-side scanning — a leitura das tuas mensagens diretamente no teu dispositivo, antes da encriptação. Isso significa que nem o WhatsApp, nem o Signal, nem nenhum outro serviço pode garantir privacidade real. O teu telemóvel será o agente infiltrado do regulamento europeu.

O perigo não está apenas na proposta atual, mas no precedente que cria.
Se hoje aceitamos que nos escutem para proteger crianças, amanhã aceitar-se-á para combater terrorismo, desinformação, discurso de ódio ou até protestos. A lista cresce com a conveniência dos tempos políticos.

A Amnistia Internacional já declarou que o Chat Control pode “normalizar a vigilância massiva e minar décadas de proteções de direitos humanos”. O Relator Especial da ONU para a Liberdade de Expressão, em parecer de 2023, alertou que este tipo de legislação “abre caminho à censura algorítmica e à criminalização da comunicação privada”.

O Chat Control é mais do que uma má proposta legislativa. É um ensaio de autoritarismo digital com rosto europeu. Destruir a privacidade para proteger a infância é instaurar um sistema de vigilância total que sacrifica os inocentes para castigar os culpados. A democracia não se constrói com escutas preventivas. A liberdade não se salva apagando-se.
Ou gritamos agora — ou calamo-nos de vez.

A tecnologia que se escreve à mão: quando a inovação respeita o essencial

Inovar não é, necessariamente, romper com o passado. Em muitos casos, é compreender o que merece ser mantido. É reconhecer o que continua a funcionar, o que tem impacto real, o que resiste ao tempo — e, a partir daí, construir algo novo, útil e intencional.

Este princípio ganha especial relevância quando falamos de educação — um terreno onde tradição e progresso coexistem de forma delicada. Nas últimas décadas, assistimos a uma transformação digital acelerada, com promessas de acessibilidade, personalização e interatividade. Mas à medida que se multiplicam as plataformas, apps e soluções ditas “disruptivas”, é inevitável colocar uma questão simples, mas crucial: o que é que realmente ajuda os alunos a aprender melhor?

A resposta raramente está na sofisticação tecnológica. Está, muitas vezes, nos gestos antigos que continuam a provar o seu valor — como o de escrever à mão. A escrita manual, para além de uma prática essencial de expressão, é também uma ferramenta cognitiva profunda. Estimula a memória, organiza o pensamento e cria uma relação mais duradoura com o conteúdo. É uma prática que exige tempo, atenção e presença — três ingredientes que, curiosamente, parecem escassear na era digital.

Mas isso não significa que devamos opor papel e tecnologia. O verdadeiro desafio está em reconciliá-los — em criar soluções que partam da escrita e a expandam, sem a diluir. Soluções que não anulem o processo, mas que o acompanhem e reforcem.

É precisamente nesse espaço intermédio que começa a emergir uma nova geração de ferramentas educativas. Tecnologias que não chegam para substituir o que já existe, mas para melhorar o que os alunos já fazem. Que respeitam o gesto de escrever, mas que acrescentam a ele organização, clareza, orientação. Que digitalizam, sim, mas apenas para devolver ao aluno uma experiência de estudo mais estruturada, mais eficaz, mais autónoma.

Esta abordagem representa uma mudança profunda na forma como pensamos a inovação. Deixa de ser uma corrida por funcionalidades e passa a ser uma escuta ativa das necessidades reais: a dificuldade de organizar apontamentos, a falta de apoio em casa, o tempo reduzido de contacto com os professores, a fragmentação da atenção. É a partir dessas realidades concretas que a tecnologia pode — e deve — intervir.

E quando o faz com esta intenção, os resultados são visíveis. Os alunos sentem-se acompanhados sem perderem autonomia. Os professores veem o seu trabalho reforçado, não substituído. E os pais ganham confiança num sistema que alia tradição a inovação, sem cair em modismos tecnológicos que pouco contribuem para a aprendizagem verdadeira.

Este é o tipo de inovação que mais falta faz à educação. Não a que impressiona, mas a que se integra. Não a que brilha nas apresentações, mas a que responde a necessidades silenciosas. Não a que rompe com tudo, mas a que constrói com o que já existe — respeitando o essencial.

Porque a educação não se faz apenas com acesso à informação. Faz-se com estrutura, tempo e foco. E é precisamente aí que a tecnologia deve atuar: não para impor novos caminhos, mas para tornar mais claro e seguro o caminho que o aluno já está a percorrer.

A escrita à mão continuará a ser uma ferramenta central no ato de aprender. Mas pode — e deve — ser acompanhada de soluções que organizam, esclarecem e apoiam. Desde que essas soluções saibam escutar. Desde que saibam o seu lugar.

E esse lugar, mais do que nunca, é ao lado do aluno — não à frente dele.

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