Tu votas num monstro!


Acho que vivemos uma epidemia — a epidemia do voto egoísta. E com isto eu não quero dizer que devemos votar a pensar nos outros e não apenas em nós próprios. E com isto eu não quero dizer que o voto deve ser generoso e altruísta. E com isto eu não quero dizer que há votos melhores do que outros (será que há quem pense que há?). Então o que quero eu dizer com isto? Acho que quero dizer que sinto no ar o mesmo que sentia na manhã do dia 10 de março de 2024, ainda antes de sabermos o resultado das eleições, quando escrevi aqui no Observador “Eu não sei o que vai acontecer no dia 10 de março, (…) mas quem vai a outra parte do país culpar por este fenómeno? Vão culpar um homem só, vão culpar a ignorância dos portugueses, vão culpar os meios de comunicação que tanta atenção deram a Ventura? Ou será que daqui por 20 anos se vão culpar a eles mesmos, pelo fosso que abriram na sociedade, a sociedade dividida ao meio, a sociedade dos “evoluídos” e dos “tacanhos”.
Vamos ser sinceros numa coisa — há um clima elitista instalado sobre os votos bons e os votos maus. Não vamos ter palas nos olhos sobre isto. Não, não gostamos dos votos de toda a gente. Não, nem toda a gente que grita amor pela democracia gosta dos votos de toda a gente. Mas haverá coisa pior em democracia do que acreditar que há votos “tacanhos” e votos “evoluídos”? Vou citar uma frase de Nietzsche. Não o faço por nenhum motivo em especial, mas talvez por muitos em particular. A frase é a seguinte: “Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro”. O que eu retiro desta frase é que devemos ter muito cuidado quando apontamos as monstruosidades dos outros sem analisar as nossas. Temos uma facilidade encantadora para reconhecer monstros nos outros e uma dificuldade conveniente, soberba e prepotente para não reconhecermos os nossos.
Para mim, a democracia tem de ser protegida, mas há um erro de casting a circular — é que a democracia não se perde apenas quando se elegem ditadores. A democracia começa a perder-se muito antes, quando se começa com esta conversa dos “bons” e dos “maus” por todo o lado, à esquerda e à direita. Não há inocentes, não queiramos ser inocentes, todos criámos e continuamos a alimentar a “teoria dos monstros”. Os partidos que apelidamos de “monstruosos” não nascem no vácuo do universo, nascem de uma sociedade que cria monstros.
Sabem o que é que eu acho? Que a palavra mais importante que eu utilizei neste artigo é bem capaz de ser a palavra “acho”, do verbo “achar”, da atividade pouco honesta, e tão portuguesa, do “achismo”. Temos demasiadas cabeças pululantes que acham tudo e sabem muito pouco, mas que acham sempre com a autoridade de quem sabe tudo. Vamos ser sinceros noutra coisa — a hipocrisia das classes políticas, das classes elitistas e até mesmo da classe média instalada tem de ser reconhecida. Há uma classe gigantesca abaixo da classe média e a classe média que se diz letrada, “culta e adulta” tem de reconhecer que não conhece a vida das classes que estão por baixo dela porque não a vive. A verdade é que nós não conhecemos assim tão bem como pensamos a revolta dos outros, e talvez devêssemos admiti-lo mais vezes, porque já custa o espectáculo penoso do “faz de conta que conheço a vida do outro”. Não conheço não, eu própria sei que não conheço, e estou longe de ser a única.
Já não se espera por nada, já não precisamos de conhecer as pessoas para saber quem são os “maus”, os “bons”, os “tacanhos”, os “fascistas”, os “comunistas”, os “elitistas”. Calçar os sapatos do outro? Mas para quê se os meus são tão confortáveis? Há quem diga “ah, mas eu já me imaginei nos sapatos do outro.” (Ah sim, esse espaço doloroso da imaginação, onde a sola até magoa os pés.) E depois também há quem ache que por experimentar uma vida durante 24 horas estamos a vivê-la (em campanha eleitoral então, experimentam-se tantas vidas). Mas é muito diferente fazer uma viagem no tempo com ida e volta marcadas, ao invés de estar encurralado na mesma viagem…
Assumimos tudo, está tudo garantido na nossa cabeça, e tudo porque achamos muito e amamos muito pouco. E o amor? Agora para aqui chamado? Não foi para cair num romantismo forçado, é mesmo porque acho que é o que nos falta quando encaramos os outros.