Plano Nocional de Leitura (XXXIII)

Muitos críticos que escreveram sobre o grande poeta Ruy Belo (1933-1978) observaram que depois de um ou dois livros em que falou sobretudo de assuntos religiosos e teológicos passou a preocupar-se com política.   Como várias outras pessoas da sua geração, teria entendido a política como uma maneira irresistível de passar a religião à prática; e à medida que as suas convicções religiosas iam esmorecendo, as suas convicções políticas teriam ficado um pouco mais assanhadas.

A ideia subjacente à tese desses críticos é a de que a política é simplesmente a religião por meios mais modernos e mais simples; e de que a religião sem política, como poderia ter dito o filósofo, é cega.   Qualquer poeta acabaria assim por perceber que as suas convicções religiosas são melhor e mais utilmente formuladas como convicções políticas; e que de facto as convicções políticas reciclam sem desperdício as nossas ideias mais arcaicas.

Num livro de 1970, considerado quase unanimemente um dos seus livros mais políticos, Ruy Belo incluiu um soneto atípico intitulado “Lucas, 21, 28.” O poema, que começa com o verso “Quando o último pássaro morrer,” conclui com uma promessa e uma injunção: “Aproxima-se a libertação.”  Sabendo o que se passou depois, a maior parte dos leitores admirou a presciência política do poeta.   O conselho “Coragem coração” parece pedir um último esforço no sentido da restauração das liberdades públicas.

E todavia os conselhos e as promessas de Belo não são muito simples.  Esperamos compreensivelmente que um poema intitulado “Lucas, 21, 28” se refira ao versículo 28 do capítulo 21, perto do fim do Evangelho de São Lucas.  Naquele versículo, depois de uma longa enunciação de acontecimentos inusitados, Jesus aconselha: “Cobrai ânimo e levantai a cabeça porque a vossa redenção está próxima.”  Parece ser uma espécie de “Coragem coração.”  Será também um caso de presciência política?

Acontece que o poema de Belo se refere também a outra passagem anterior do mesmo Evangelho, no capítulo 12.  A referência ocupa um terceto inteiro: “Não valem cinco pássaros apenas / dois asses e deus não os reconhece / no meio das demais coisas terrenas?”   Nesta pergunta nada fácil de decifrar Belo traduz fielmente uma palavra que também aparecia em Lucas: a palavra ‘asse.’   Um asse era uma moeda que valia uma décima-sexta parte daquilo que se ganhava num dia, isto é, que não valia quase nada.

À semelhança de Deus, para Belo a morte de cinco pássaros parece valer pouco.   O poema não anuncia porém um mundo preferível, embora faça parte de um livro onde esse anúncio é quase geral; e também não mostra sinais de luto pelo desaparecimento de uma espécie.  Como o Jesus da passagem de Lucas, Belo tem simplesmente alturas em que não consegue reconhecer as vantagens das “coisas terrenas.”  Nessas alturas não é improvável que para si aquilo a que chamou o “país possível” não valha um asse.

Celtics reagem em Nova Iorque e vencem Knicks no terceiro jogos das meias-finais

Neemias Queta jogou os dois últimos minutos da partida

Com Neemias Queta a jogar os últimos dois minutos, os Celtics mostraram esta noite a faceta de campeões, ao vencerem, em Nova Iorque, o terceiro jogo das meias-finais por 115-91 e assim reduzirem a desvantagem para os Knicks ( 2-1).

A equipa de Boston teve em Payton Pritchard (23 pts), Jayson Tatum (22) e Jaylen Brown (19) os motores.

Ainda na Conferência Este, os Cavaliers convenceram, após uma vitória sobre os Pacers por 126-104, em Indiana, liderando as meias-finais.

Já no Oeste, os Nuggets derrotaram os Thunder por 113-104, após prolongamento, num jogo frenético. O destaque foi o base Jamal Murray, que liderou a ofensiva com 27 pontos, quatro ressaltos e oito assistências, colocando Denver em vantagem nas meias-finais. 

Por Record

Não, não vem aí a nova era dourada do rust belt

Há um cheiro no ar do outro lado do Atlântico. Não é progresso, parece esperança, mas é apenas ferrugem requentada por retórica e eleitoral. Donald Trump, o hiperbólico profeta de um evangelho económico ultrapassado, anunciou o glorioso regresso da indústria americana com a mesma solenidade de um alquimista que jura transformar latão em ouro.

A sua poção são as tarifas, essa panaceia milagrosa com a profundidade teórica de um tweet e a eficácia comprovada de um remédio homeopático para amputações.

Trump antevê uma utopia de fábricas ressuscitadas e chaminés novamente a fumegar, produzindo lixo a preços de luxo, com operários felizes e reluzentes, a caminho dos empregos certos de há 60 anos, embora tudo isto seja tão provável como encontrar a Mariana Mortágua daqui a um mês como primeira-ministra.

E para tamanho milagre, para ver Detroit a desabrochar numa nova era industrial, só é preciso taxar tudo o que vem de fora, desde aço alemão a cuecas vietnamitas. Esqueça-se para já a produtividade, a inovação ou a competitividade: o futuro é um revivalismo dos anos 50,

É uma lógica encantadora, quase poética, se não fosse tão economicamente analfabeta. Como se pintar a parede impedisse a casa de desabar.

A ironia filosófica aqui é brutal: ao tentar proteger a economia da competição global, Trump acelera o seu colapso interno. Quer fabricar estabilidade com a mesma ferramenta com que se fabrica ressentimento: a nostalgia. Uma nostalgia ardente de um tempo em que os homens eram alegres operários que fumavam Marlboro, os empregos eram para a vida, a Coca-Cola vinha mesmo com coca e as mulheres levemente maquilhadas eram “happy housewives” que usavam calças capri e blusas ajustadas, irradiando sorrisos domésticos sob os cabelos bem penteados.

O protecionismo, essa velha tentação de políticos preguiçosos, ressurge como um bolor. Não cria empregos, protege ilusões. É o equivalente económico ao culto de um passado idealizado que nunca existiu senão em memórias mal editadas. O protecionismo de Trump tem o charme de uma tenda de feitiçaria num parque de diversões: promete curas milagrosas, mas esvazia carteiras. É como partir as pernas de um atleta, colocar-lhe às costas um saco de batatas e exigir que corra mais depressa.

Quem pagará a conta desta mística industrial assente no bordão de que “no meu tempo é que era bom” será obviamente o consumidor. A classe média. O pequeno empresário. A América que trabalha. Os que verão o preço do seu frigorífico triplicar, o carro encarecer e o patriotismo ser cobrado nas facturas. Os que ficarão sem emprego. Tudo para que meia dúzia de fábricas obsoletas voltem a produzir peças de tractor e “belos carros americanos” com a mesma eficiência de uma máquina de escrever com reumatismo.

Ao mesmo tempo, os capitais, sem bandeira, sem alma e com GPS fiscal, fugirão para onde o lucro não precisar de se justificar com slogans. Porque o dinheiro não é patriota, é existencialista: busca sentido, não símbolos. E quando se aperceber que está preso num país a trancar portas com cadeados do século passado, se puder foge para pastagens mais verdejantes. Perguntem como é à Coreia do Norte ou a Cuba…

O mais trágico e mais profundamente cínico, é que esta política antitética do liberalismo económico se vende como um acto de coragem e liderança, quando é apenas medo disfarçado de bravata. Medo do mundo, medo da complexidade, medo de admitir que a grandeza de um país não se reconquista repetindo fórmulas gastas, mas criando novas. E de perceber que não se constrói o futuro regressando ao útero de 1955 e usando fórmulas de 1930, quando também se lançaram tarifas para “proteger” a indústria americana, com o belo resultado que se conhece. Volta Adam  Smith, ressuscita Ayn Rand, reencarna Milton Friedmann!

Provavelmente Trump não quer governar um país, mas sim alimentar o ego, animando ressentimentos colectivos. Não propõe soluções, fornece mitos. E estes, como Platão bem sabia, são úteis especialmente quando queremos esconder a realidade de nós próprios.

No fim, o resultado será um país mais isolado, mais caro, mais dividido. Uma América menos competitiva e mais fraca, para onde nem sequer fluirão os biliões de dólares externos resultantes dos “déficits comerciais”. Como um velho general que perdeu a guerra mas insiste em desfilar, sozinho, pela rua principal da cidade, com a farda vincada e os olhos embaciados. A América Grande Outra Vez, mas só no espelho retrovisor da imaginação.

No final, teremos menos empregos, menos crescimento e mais chapéus com slogans. Não teremos as exportações milionárias da indústria aeroespacial, da indústria automóvel, do sector da defesa, das rações, dos serviços, mas apenas uma América reinventada como parque temático da decadência, onde o bilhete de entrada custará caro e o hambúrguer virá condimentado com angústia.

Chegados aí restará o plano B: culpar os europeus os canadianos, os mexicanos, Zelensky ou os moinhos de vento. Mas não faz mal, porque Trump garante que fala com Putin e Ji Xin Ping e que tudo pode ser fabricado “aqui mesmo”, mesmo que isso implique pagar mil dólares por uma torradeira e esperar seis meses por um caro parafuso feito artesanalmente no Kansas, com aço de Miami.

E talvez seja isto o mais filosófico de tudo: a tentativa desesperada de travar o tempo com tarifas, como se a História pudesse ser revogada por decreto e o Rustbelt transformado em Goldbelt por milagre ou ordem executiva, levará para o caixote do lixo aquilo que poderia ser a grande herança de Trump: o extermínio dos delírios woke, e a erradicação da vergonha do antissemitismo estrutural e do ódio ao Ocidente que se instalou no sistema de ensino.

Tensão em Espanha: ultras do Sevilha tentam invadir centro de treinos para agredirem jogadores

O Sevilha perdeu (3-2) em casa do Celta de Vigo e ainda continua a ser atormentado pelo fantasma da despromoção, visto que totaliza 38 pontos e está a seis da zona vermelha da Liga espanhola, numa altura em que faltam nove por disputar. No regresso a casa, a equipa foi recebida por um grupo numeroso de ultras que, além de terem apupado os jogadores e a direção e atirado ovos ao autocarro, ainda tentaram invadir o centro de treinos do clube.

O apocalipse do mundo info-gordo

As pessoas mais pobres que conheci nos Estados Unidos eram gordas. Passei lá a segunda metade de 2019 no sul, no Mississippi, um dos estados menos ricos: mais de quarenta por cento dos seus adultos são obesos. Pobreza quase sempre significa gordura no país mais poderoso do mundo.

O mundo hoje funciona ao contrário. Se antes a gordura seria um privilégio da fartura, agora é um sintoma da escassez. Neste momento, as pessoas mais saudáveis são aquelas que, com esforço físico, se esforçam para deitar fora os excessos. Ganha quem perde.

Esta nova relação com a comida não será assim tão diferente da nossa relação com o conhecimento. Do mesmo modo que a obesidade vem com a pobreza, o excesso de comunicação caracteriza a nova ignorância. O burro moderno é quem mais acumula informação.

O que Byung-Chul Han pensa não está distante disto. Ele escreve assim na sua “Sociedade do Cansaço”: há “um exagero de positividade (…), ‘obesidade de todos os sistemas atuais’ [termo de Baudrillard], do sistema de informação”. Ou seja, o tipo de sabedoria de que necessitamos é a que não tem medo de se livrar do excesso.

O Rei Salomão no Velho Testamento já punha em prática esta lição. Quando Deus o visita num sonho, o pedido do jovem monarca é presciente: “sou ainda menino pequeno, nem sei como sair, nem como entrar (…) A teu servo, pois, dá um coração entendido (…) para que prudentemente discirna entre o bem e o mal”. Quem discerne não acumula, distingue.

O discernimento é o verdadeiro conhecimento em acção. A história bíblica dá-nos mais ainda: logo de seguida, Salomão teve de dar prova da sabedoria que tinha acabado de receber, num complicadíssimo caso em que duas mulheres de má vida disputavam a maternidade da mesma criança. Quem sabe serve para resolver confusões reais.

O que fez Salomão? Pediu por uma espada para cortar a criancinha ao meio. Sob a ameaça do golpe fatal, a mãe real preferiu que a falsa a tivesse para lhe salvar a vida. Nesse momento, soube-se a verdade da mentira. Os métodos do discernimento podem parecer ameaçadores mas realmente separam o que é do que não é.

Mais ainda: a tradição cristã entende o verbo criador divino, Cristo, como o grande separador, desde Génesis ao Apocalipse—no início, separa céu da terra e por aí fora; no fim, separa quem lhe pertence de quem não lhe pertence. A palavra é a lâmina mais cirúrgica que existe e sem ela as maiores bibliotecas podem ser apenas estéreis armazéns lotados.

Agora que vivemos carregados de tanto conhecimento, o melhor leitor será quem sabe jejuar de tanta leitura. Ler bem será um compromisso com a leveza. Os info-esqueléticos podem revelar-se mais intelectualmente ágeis do que a assentada elite pensante.

É também por isto que o exercício racional com mais futuro e urgência se caracterizará talvez pela subtracção. Como cristão evangélico, não resisto até a sugerir alguma iconoclastia. Qual é a minha esperança? Os que parecem culturalmente anoréticos sobreviverão ao icónico apocalipse do mundo info-gordo.

O Aqueduto das Galegas e a memória esquecida dos imigrantes

No coração da Falagueira, na Amadora, sobrevive um pedaço quase esquecido da nossa história  coletiva: o Aqueduto das Galegas. Parte integrante do monumental Aqueduto das Águas Livres,  esta estrutura de pedra do século XVIII permanece como uma testemunha silenciosa das gentes  que ajudaram a construir Portugal. Porém, poucos sabem ou se lembram a razão por trás do seu  nome: “Galegas”. Este nome não é um acaso nem uma simples designação geográfica. É, na  verdade, um símbolo dos milhares de imigrantes galegos que, vindos do norte de Espanha,  contribuíram com o seu trabalho, a sua cultura e, para muitos, até as suas vidas, para erguer  aquilo que agora tomamos como dado adquirido.

Tal como tantos outros imigrantes ao longo da nossa história, os galegos não trouxeram apenas  braços para o trabalho, mas também barrigas que fizeram filhos. Construíram não só cidades,  mas também famílias que, à medida que se misturaram com a sociedade portuguesa, acabaram,  muitas vezes, por ocultar as suas verdadeiras origens. Além de contribuírem com o seu trabalho,  trouxeram também palavras que, com o passar dos séculos, incorporámos na língua portuguesa  sem nos darmos conta das suas raízes estrangeiras. Trouxeram ainda a culinária, com as suas  tascas e pequenos restaurantes onde gerações de portugueses saciaram a fome e que ainda  hoje resistem como lugares de sociabilidade.

Na Amadora, o Aqueduto das Galegas é um exemplo gráfico desta história de encontros. Apesar  do crescimento vertiginoso do tecido urbano, é possível encontrá-lo no Parque da Mónica ou  em ruínas discretas ao longo da Estrada de Queluz, sobrevivendo como um fragmento de uma  memória que se tenta apagar. A cidade, por seu turno, avança apressada, moldada pela  modernidade global, enquanto as marcas da participação galega, até explícitas no nome deste  troço, desaparecem para dar lugar a abstrações que nos afastam da nossa verdadeira história.  Neste silêncio, os “Galegos” de outrora tornam-se invisíveis. A velha estratégia da neutralidade  – apagar nomes, apagar histórias – é, afinal, um método que Portugal já conhece bem.

Por isso, é surpreendente ouvir, quase 300 anos depois do início da construção do Aqueduto das  Águas Livres, que o debate contemporâneo sobre a imigração continua a ser pautado pelo  esquecimento. Recentemente, fomos informados de que 18.000 imigrantes serão notificados  para deixar o país nas próximas semanas. Eles são tratados como meros números, como se a  vida pudesse ser simplesmente organizada e apagada com a mesma facilidade com que se risca  uma linha num documento do Excel. No entanto, esquecemo-nos de que este país não seria o  que é sem as muitas mãos estrangeiras que, ao longo dos séculos, não só moldaram as pedras  dos aquedutos e dos edifícios, mas também as ruas, os mercados e as casas onde hoje  habitamos. Falamos de expulsão, mas esquecemo-nos da memória. Falamos de crise, mas não  reconhecemos que os imigrantes sempre foram fundamentais para sustentar esta nação.

Ao observarmos o grande arco do Aqueduto das Águas Livres, que corajosamente atravessa o  Vale de Alcântara, ou os fragmentos do Aqueduto das Galegas, no coração da Amadora, não  podemos deixar de reconhecer a verdade: somos um país construído sobre migrações, sobre o  encontro de culturas e sobre a riqueza da diferença. Ao ignorarmos esses contributos históricos,  ignoramos também uma parte de nós próprios. E é por isso que apelar à expulsão de imigrantes  neste momento não é apenas um erro prático, mas um erro moral. Porque até as pedras têm  histórias para contar e, um dia, seremos lembrados por aquilo que fizemos — ou deixámos de  fazer — com a oportunidade de honrar essa herança.

Neste Portugal de hoje, definir quem fica e quem sai não é apenas decidir sobre o futuro, mas  também reconhecer toda a força que o passado imigrante trouxe e continua a trazer para aquilo  que somos. Afinal, quantos de nós, sentados hoje em cadeiras confortáveis, com os nossos apelidos ancestralmente registados, devem a sua própria existência aos imigrantes que agora  rejeitamos?

Antes de informar os portugueses sobre a expulsão de 18 mil imigrantes, talvez agora, durante  a campanha eleitoral, seja o momento oportuno para perguntar se queremos repetir os erros  do passado, ignorando a contribuição daqueles que nos fizeram e continuam a fazer crescer.

Nota: As opiniões expressas são pessoais e não representam a posição do IST.

Putin propõe negociações diretas com a Ucrânia para 15 de maio

O presidente russo, Vladimir Putin, propôs este sábado negociações diretas com a Ucrânia para o dia 15 de maio, a realizarem-se em Istambul, na Turquia, numa tentativa de “eliminar as causas profundas do conflito” e “alcançar a restauração de uma paz duradoura e de longo prazo”.

O presidente russo disse este domingo, em Moscovo, que “não foi a Rússia que quebrou as negociações em 2022, foi Kiev”.

“No entanto, propomos que Kiev retome as negociações sem quaisquer pré-condições”, acrescentou Putin.

Em conferência de imprensa, o líder da Rússia afirmou ainda que o Kremlin apresentou várias iniciativas para um cessar-fogo, mas que a Ucrânia nunca respondeu.

“A nossa proposta está em cima da mesa. A decisão, agora, é das autoridades ucranianas”, disse Vladimir Putin, que não descarta um possível acordo de trégua durante estas negociações.

Defesa: uma necessidade e simultaneamente uma oportunidade para Portugal

A invasão da Ucrânia, em 2022, gerou na Europa um sentido de urgência em matéria de defesa que não existia desde os anos quentes da Guerra Fria. Os países europeus, incluindo Portugal, vêem-se compelidos a repensar a sua postura: reforçar capacidades militares, reabastecer arsenais e garantir o apoio a qualquer aliado que venha a estar sob ataque. Simultaneamente, a presidência de Donald Trump reabriu, na Europa, o debate sobre a sua dependência excessiva dos Estados Unidos, em matéria de defesa. Este contexto de instabilidade acelerou decisões há muito adiadas.

A União Europeia (UE), tradicionalmente ausente na área de defesa, quebrou tabus e lançou medidas inéditas para robustecer a Base Tecnológica e Industrial de Defesa Europeia. Além de programas como o EDIRPA (reforço industrial de defesa via aquisições conjuntas urgentes) e o ASAP (apoio à produção de munições), criados para apoiar rapidamente a Ucrânia, pretende-se desenvolver capacidades próprias de produção, através do Programa Europeu da Indústria de Defesa (EDIP), para o qual o Parlamento Europeu aprovou a sua posição, antecedendo as negociações com o Conselho da União Europeia, em vista à sua aprovação final. Trata-se de um plano estruturante para o setor, com uma dotação inicial de, aproximadamente, 1,5 mil milhões de euros em subvenções, até 2027, a que o Parlamento pretende acrescentar até 20 mil milhões de euros em empréstimos, no âmbito de um novo instrumento de financiamento para os Estados-Membros: Ação pela Segurança da Europa (SAFE), visando transformar a defesa europeia num esforço genuinamente coletivo, cooperativo e “Made in Europe”.

O EDIP insere-se na Estratégia Industrial de Defesa Europeia e pretende colmatar a lacuna entre os esforços a curto prazo e uma abordagem mais permanente e estratégica a longo prazo. Em termos práticos, o programa cria incentivos financeiros para que os Estados-Membros realizem compras conjuntas de armamento “Made in Europe” e invistam de forma a aumentar a capacidade de produção das suas indústrias de defesa. O objetivo é duplo: por um lado, garantir que as forças armadas europeias têm acesso atempado a equipamentos militares (de munições a sistemas complexos); por outro lado, alavancar a produção industrial no continente, com mais inovação e menos dependência de fornecedores externos. A meta é inverter décadas de fragmentação e subinvestimento. Até 2030, o Parlamento Europeu pretende que 40% dos equipamentos de defesa sejam adquiridos de forma colaborativa e que, pelo menos, 35% do mercado europeu da defesa seja produzido na União Europeia.

Um dos pilares centrais do EDIP é o princípio de “buy European”, segundo o qual serão cofinanciados projetos em que pelo menos 70% do valor do produto final corresponda a componentes ou tecnologias oriundas da UE (ou de países associados). Esta medida, defendida pelo Parlamento Europeu, visa salvaguardar que o investimento público europeu incentiva a criação de emprego e valor acrescentado dentro da UE, reforçando a autonomia estratégica coletiva. Isto significa que futuras aquisições de produtos e material de defesa, com recurso a financiamento de Bruxelas, deverão privilegiar fornecedores europeus. Esta é uma oportunidade para que as indústrias nacionais se integrem em cadeias de produção continentais.

No entanto, é um desafio reduzir as dependências de componentes produzidos fora da UE. Se, por exemplo, um equipamento militar, tradicionalmente, incorpora tecnologia ou componentes importados de países terceiros, agora haverá um forte incentivo para encontrar (ou desenvolver) alternativas europeias, sob pena de não se aceder aos fundos do EDIP. É um desafio saudável, compatível com o propósito da UE de alavancar o mercado único europeu: promove a inovação e a colaboração industrial intraeuropeia e incentiva a procura de novos fornecedores locais.

Outro aspeto inovador do EDIP é o seu critério de equilíbrio geográfico e de cooperação alargada. Para que um projeto de defesa seja considerado de interesse europeu comum e receba apoio, deverá integrar um mínimo de seis Estados-Membros (ou pelo menos quatro, caso sejam países com alto risco de ameaças convencionais). Esta exigência torna, praticamente, obrigatória a participação de consórcios multinacionais em cada iniciativa, garantindo que os benefícios industriais e estratégicos sejam partilhados de forma mais equilibrada por grandes e pequenos países. Na prática, isto pretende evitar que apenas as nações com complexos industriais de defesa robustos (como França, Itália, Alemanha ou Suécia) absorvam a fatia de leão dos fundos.

Portugal, tradicionalmente na periferia dos grandes projetos de armamento, passa a ter mais hipóteses de ser incluído se tomar a iniciativa de se associar a parceiros europeus desde cedo. O equilíbrio geográfico promovido pelo EDIP vai ao encontro de uma antiga aspiração: assegurar que todos os Estados-Membros beneficiam do reforço do investimento em defesa europeia, incluindo aqueles com indústrias mais modestas. Será, igualmente, incentivada a participação de PMEs inovadoras, reconhecendo que a base industrial de defesa não se resume aos gigantes do setor, mas inclui uma rede de pequenos fornecedores, mas altamente especializados, localizados em toda a Europa.

Portugal tem trunfos a jogar: start-ups e PMEs nacionais têm desenvolvido soluções vanguardistas, como demonstram os drones de vigilância da “unicórnio” Tekever (atualmente utilizados em operações da Frontex e da NATO) ou os sistemas de comunicações navais da EID, para citar dois exemplos. Com o enquadramento certo, estas e outras empresas podem crescer e integrar-se em projetos europeus, aumentando a sua competitividade.

No entanto, é necessário fazer um breve diagnóstico: qual é o estado atual da indústria de defesa portuguesa face a este novo panorama? Apesar de vários pontos de excelência, a nossa indústria é de dimensão reduzida. Portugal investe, atualmente, cerca de 1,5% do PIB em Defesa, e essa contingência orçamental histórica, associada à excessiva dependência do setor no investimento público, traduziu-se numa base industrial pouco diversificada. Ainda assim, existe um núcleo de competência tecnológica em áreas específicas, muitas vezes alavancado por parcerias internacionais. A experiência para a produção do avião de transporte KC-390 é elucidativa: através de um acordo com o fabricante brasileiro Embraer, a indústria nacional produz em Évora e em Alverca do Ribatejo algumas das estruturas primárias mais complexas desta aeronave. Por cada KC-390, vendido mundialmente, a economia portuguesa ganha cerca de 10 milhões de euros em exportações. Ou seja, ao investir num projeto multinacional e ao exigir retorno industrial, Portugal inseriu-se num programa de futuro, obtendo, simultaneamente, capacidades militares (a Força Aérea Portuguesa receberá cinco destas aeronaves) e benefícios económicos. Este percurso, ainda que modesto, demonstra que quando existe visão estratégica e cooperação, Portugal consegue participar em programas de defesa de alto nível. Exemplos como este servem de inspiração para o que agora se avizinha com o EDIP.

Para Portugal aproveitar plenamente o EDIP será fundamental adotar uma postura proactiva e construtiva, tanto por parte do Governo como da indústria. Em primeiro lugar, é fulcral uma direção política alinhada com o mercado que defina uma estratégia transversal: quais os nichos em que a nossa indústria pode competir e crescer, como por exemplo, setores ligados ao Oceano Atlântico (drones marítimos, sensores navais), cibersegurança ou manutenção aeronáutica, bem como canalizar os esforços necessários para ser competitivo a nível europeu e mundial.

Além disso, é preciso coordenação: as autoridades nacionais (Ministérios da Defesa, Economia, Emprego e Negócios Estrangeiros) devem funcionar como ponte entre as empresas portuguesas e os consórcios europeus que sejam criados, promovendo encontros, facilitando contactos e até alinhavando acordos políticos com outros governos para desenvolvimento conjunto de capacidades.

Para além disso, é crucial garantir previsibilidade no financiamento para a defesa: a meta de atingir pelo menos 2% do PIB, a curto prazo, em investimentos militares, prevendo-se que, após a próxima cimeira da NATO, que terá lugar no final do próximo mês em  Haia, esta meta deva subir para valores a rondar os 3,5% do PIB, nos próximos anos, é um compromisso que Portugal terá de cumprir. Com um horizonte temporal claro para alcançar este objetivo, as empresas terão confiança para investir em novas tecnologias e aumentar locais e capacidades de produção, sabendo que haverá procura interna e externa.

Cabe-nos agora corresponder, com trabalho sério. Isso inclui melhorar processos internos (simplificar procedimentos de contratação e processos de licenciamento, para acompanhar o ritmo acelerado dos projetos europeus), investir na capacitação de mão de obra especializada e fomentar a ligação entre a academia, as Forças Armadas e as empresas, um triângulo de inovação crucial para gerar novos produtos de defesa competitivos. Ao participar neste esforço europeu, Portugal pode ganhar escala e relevância que sozinho não conseguiria. Podemos passar de meros clientes a parceiros na produção de equipamentos de defesa, com todas as vantagens associadas, em termos de transferência de tecnologia, criação de emprego qualificado e fortalecimento da nossa base industrial.

É importante lembrar que existem desafios evidentes: de capacidade, de recursos e de conhecimento. Mas está a desenvolver-se um quadro europeu favorável sem precedentes para superá-los. O momento pede visão e ação concertada. Portugal deve apresentar-se como um aliado confiável e empenhado, disponível para investir em conjunto, partilhar riscos e colher frutos. E não se trata apenas de cumprir regras ou metas impostas de fora, mas sim de servir o interesse nacional de forma moderna, contando com os nossos verdadeiros aliados. É, precisamente, essa a visão subjacente ao EDIP, que Portugal tem de capitalizar, mobilizando vontades e recursos para que não fiquemos para trás neste novo capítulo da Defesa europeia.

Tu votas num monstro!

Acho que vivemos uma epidemia — a epidemia do voto egoísta. E com isto eu não quero dizer que devemos votar a pensar nos outros e não apenas em nós próprios. E com isto eu não quero dizer que o voto deve ser generoso e altruísta. E com isto eu não quero dizer que há votos melhores do que outros (será que há quem pense que há?). Então o que quero eu dizer com isto? Acho que quero dizer que sinto no ar o mesmo que sentia na manhã do dia 10 de março de 2024, ainda antes de sabermos o resultado das eleições, quando escrevi aqui no Observador “Eu não sei o que vai acontecer no dia 10 de março, (…) mas quem vai a outra parte do país culpar por este fenómeno? Vão culpar um homem só, vão culpar a ignorância dos portugueses, vão culpar os meios de comunicação que tanta atenção deram a Ventura? Ou será que daqui por 20 anos se vão culpar a eles mesmos, pelo fosso que abriram na sociedade, a sociedade dividida ao meio, a sociedade dos “evoluídos” e dos “tacanhos”.

Vamos ser sinceros numa coisa — há um clima elitista instalado sobre os votos bons e os votos maus. Não vamos ter palas nos olhos sobre isto. Não, não gostamos dos votos de toda a gente. Não, nem toda a gente que grita amor pela democracia gosta dos votos de toda a gente. Mas haverá coisa pior em democracia do que acreditar que há votos “tacanhos” e votos “evoluídos”? Vou citar uma frase de Nietzsche. Não o faço por nenhum motivo em especial, mas talvez por muitos em particular. A frase é a seguinte: “Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro”. O que eu retiro desta frase é que devemos ter muito cuidado quando apontamos as monstruosidades dos outros sem analisar as nossas. Temos uma facilidade encantadora para reconhecer monstros nos outros e uma dificuldade conveniente, soberba e prepotente para não reconhecermos os nossos.

Para mim, a democracia tem de ser protegida, mas há um erro de casting a circular — é que a democracia não se perde apenas quando se elegem ditadores. A democracia começa a perder-se muito antes, quando se começa com esta conversa dos “bons” e dos “maus” por todo o lado, à esquerda e à direita. Não há inocentes, não queiramos ser inocentes, todos criámos e continuamos a alimentar a “teoria dos monstros”. Os partidos que apelidamos de “monstruosos” não nascem no vácuo do universo, nascem de uma sociedade que cria monstros.

Sabem o que é que eu acho? Que a palavra mais importante que eu utilizei neste artigo é bem capaz de ser a palavra “acho”, do verbo “achar”, da atividade pouco honesta, e tão portuguesa, do “achismo”. Temos demasiadas cabeças pululantes  que acham tudo e sabem muito pouco, mas que acham sempre com a autoridade de quem sabe tudo. Vamos ser sinceros noutra coisa — a hipocrisia das classes políticas, das classes elitistas e até mesmo da classe média instalada tem de ser reconhecida. Há uma classe gigantesca abaixo da classe média e a classe média que se diz letrada, “culta e adulta” tem de reconhecer que não conhece a vida das classes que estão por baixo dela porque não a vive. A verdade é que nós não conhecemos assim tão bem como pensamos a revolta dos outros, e talvez devêssemos admiti-lo mais vezes, porque já custa o espectáculo penoso do “faz de conta que conheço a vida do outro”. Não conheço não, eu própria sei que não conheço, e estou longe de ser a única.

Já não se espera por nada, já não precisamos de conhecer as pessoas para saber quem são os “maus”, os “bons”, os “tacanhos”, os “fascistas”, os “comunistas”, os “elitistas”. Calçar os sapatos do outro? Mas para quê se os meus são tão confortáveis? Há quem diga “ah, mas eu já me imaginei nos sapatos do outro.” (Ah sim, esse espaço doloroso da imaginação, onde a sola até magoa os pés.) E depois também há quem ache que por experimentar uma vida durante 24 horas estamos a vivê-la (em campanha eleitoral então, experimentam-se tantas vidas). Mas é muito diferente fazer uma viagem no tempo com ida e volta marcadas, ao invés de estar encurralado na mesma viagem…

Assumimos tudo, está tudo garantido na nossa cabeça, e tudo porque achamos muito e amamos muito pouco. E o amor? Agora para aqui chamado? Não foi para cair num romantismo forçado, é mesmo porque acho que é o que nos falta quando encaramos os outros.