Quando Viana se veste de Agonia


Perguntar a alguém de Viana “o que são as festas da Agonia?” é o mesmo que lhe perguntar “qual é o sentido da vida?”. E o único prejuízo disso é não ter de ler Shakespeare, Homero ou Flaubert para se saber a resposta.
Cada tempo teve as suas tentativas de obra de arte total. De unificar todas as formas de beleza numa só. Platão teve a República. A Idade Média, as catedrais. O iluminismo, a Enciclopédia. Wagner, a Ópera. Viana tem a Romaria da Senhora da Agonia.
Como Roma, há cidades fundadas sob um mito. Como Alexandria, há cidades fundadas sob um nome. Como Jerusalém, há cidades fundadas sob uma promessa. Viana, ao invés, é fundada sob uma festa. E se é verdade que Viana existia muito antes de haver Romaria, como havia Constantinopla antes de Constantino, e Atenas antes da Democracia, Viana é, hoje, o outro nome da Agonia.
Como muitas festas que povoam Portugal, a Romaria da Senhora da Agonia não é só uma Romaria. Quando estava doente, a minha avó não fazia questão de ir a um restaurante, nem de viajar até algum lugar. Mas não quis perder a Romaria. Quando vinha de ir às compras, ao talho ou à mercearia, não parava na biblioteca nem no café. Mas subia o escadório, para repousar dentro da igreja da Senhora da Agonia. Nunca ouviu Bob Dylan comigo. Nunca leu um livro de Agostinho ou de Tomás de Aquino. Nunca me levou a um museu. Mas andou comigo nos carrosséis. Levou-me a comer farturas. Comprou-me um chapéu verde tropa, para me proteger do Sol nas procissões. Cantou, várias vezes, o “Havemos de ir a Viana” ao meu lado.
Por isso, a Romaria é como a liberdade. Não é parolice. Nem o Alto-Minho Pop das manhãs televisivas. Porque aqui ninguém é figurante do Portugal dos Pequeninos. Como também não é resistência cultural ou ativismo. É outra coisa. Não é uma feira medieval com trajes regionais e procissões. Não é uma despedida de solteiro. Não é um passado distante. A Romaria é a Romaria. E a Romaria é de todos.
Durante as Festas d´Agonia, Viana está para além da verdade e da mentira. É como a Dublin de Joyce, a Rússia de Dostoiévski e Tolstói, o Inferno de Dante ou a Macondo de García Márquez. Não adianta perguntar se existe ou não; se tudo é real ou se tudo faz sentido. Porque como nos livros, tudo só vale a pena depois de um mergulho. De nada serve ficar na prancha.
Por estes dias, Viana torna-se uma epopeia, mas onde as personagens não têm uma história gloriosa para contar. Apenas procuram o seu autor. Todos somos órfãos de algo ou de alguém, que se busca na rua. E ainda assim, não vamos à Romaria para encontrar nada. Vamos para nos perdermos. Acima de tudo, para perder a certeza de que a vida é sempre igual.
Numa crónica curiosa, Miguel Esteves Cardoso diz que em Viana “não se esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista”. E é verdade. Viana é como uma parábola. Daquela onde se conta a chegada de um grande exército a uma pequena cidade para reclamar as suas riquezas e o seu tesouro. Onde essa mesma cidade o coloca diante dos soldados, com gosto, sem truques, sem jogos, e ainda insiste: não lhe querem tocar, levem uma pecinha convosco, e não levem só uma, que só uma seria uma desfeita. E onde, depois disso, o exército se sente incapaz de saquear seja o que for. Porque em Viana, na Romaria, desarma-se um exército não pela força, mas pela claridade.