Trump anuncia tarifa de 100% sobre chips e semicondutores que não sejam produzidos nos EUA

O Presidente norte-americano Donald Trump anunciou esta quarta-feira que os Estados Unidos vão aplicar uma tarifa de cerca de 100% à importação de chips e semicondutores provenientes de países que não fabriquem estes componentes em território norte-americano nem tenham planos concretos para o fazer.

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A medida, segundo Trump, visa proteger e incentivar a produção nacional no sector tecnológico, sobretudo no fabrico de chips, considerado estratégico. Empresas que já tenham assumido o compromisso de construir fábricas nos EUA ficarão isentas desta tarifa.

“100% de tarifa sobre todos os chips e semicondutores que entrem nos Estados Unidos. Mas, se tiverem feito um compromisso de construir (nos EUA), ou se estiverem em processo de construção (nos EUA), como muitos estão, não haverá tarifa,” disse Trump na Sala Oval.

Trump não explicou, contudo, que tipos de chips serão abrangidos pela nova tarifa, nem qual o calendário para a sua aplicação.

O programa federal de subsídios à indústria dos semicondutores, aprovado em 2022, prevê um investimento de 52,7 mil milhões de dólares (cerca de 48,6 mil milhões de euros) para apoio à investigação e instalação de fábricas nos Estados Unidos.

Na década de 1990, os Estados Unidos produziam cerca de 40% dos chips a nível mundial, quota que desceu para 12% em 2024, de acordo com dados oficiais.

“Se, por alguma razão, disserem que estão a construir e não construírem, então voltamos atrás, somamos tudo, acumula-se, e cobramos mais tarde. Têm de pagar, e isso é garantido,” avisou Trump.

Os “berbicachos” do Presidente

No rico e culto pecúlio vocabular de Marcelo Rebelo de Sousa há uma palavra que se repete a cada passo: berbicacho. Em Março de 2013, o Presidente ainda não era Presidente e alertou que o Governo de Passos Coelho tinha arranjado um “berbicacho” por causa do salário mínimo; em Março de 2022, perante a proximidade de eleições legislativas, avisou que, “se os portugueses não dão maioria clara a ninguém”, será “um berbicacho para o Presidente”. E voltou outra vez à palavra, que, dizem os dicionários, significa uma “situação complicada ou difícil de resolver”, a propósito da extinção anunciada pelo Governo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Em causa, diz Marcelo, está o risco de se “criar um berbicacho para resolver um problema que se entende que devia ser resolvido”.

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Lula: “Não me vou humilhar” para negociar com Trump

O Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, afastou nesta quarta-feira a hipótese de um diálogo com o homólogo norte-americano Donald Trump para discutir as novas tarifas impostas pelos Estados Unidos sobre produtos brasileiros, classificando essa possibilidade como uma “humilhação”.

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O dia em que a minha intuição disser que o Trump está disposto a conversar, não hesitarei em ligar-lhe. Mas hoje a minha intuição diz que ele não quer conversar. E eu não me vou humilhar”, disse Lula em entrevista à agência “Reuters”, a partir da residência oficial em Brasília.

As novas tarifas norte-americanas, que entraram em vigor esta quarta-feira, representam um aumento para 50% sobre vários produtos de exportação do Brasil.

Apesar do impacto potencial, Lula garantiu que não haverá, para já, medidas de retaliação da parte de Brasília.

Segundo Lula, o Governo está a estudar apoios a empresas afetadas, incluindo linhas de crédito e incentivos à exportação, embora sem revelar ainda detalhes concretos.

Lula sublinhou ainda que pretende contactar os líderes da China e da Índia para discutir uma resposta coordenada no seio dos BRICS.

“Não há ainda coordenação entre os BRICS, mas vai haver. Qual é o poder de negociação de um país pequeno com os Estados Unidos? Nenhum”, referiu.

O chefe de Estado criticou duramente a ligação entre as tarifas impostas pelos EUA e os processos judiciais contra Jair Bolsonaro, considerando inaceitável a tentativa de ingerência por parte de Washington.

Para Lula, Bolsonaro deve ser julgado não só pelas tentativas de reverter as eleições de 2022, mas também por incentivar a intervenção de Trump.

“O Supremo não está nem aí para o que o Trump diz, nem deve estar”, afirmou. “Bolsonaro é um traidor da pátria.”

O Presidente brasileiro disse estar aberto a um eventual encontro com Trump nas Nações Unidas, em setembro, ou nas negociações climáticas marcadas para novembro. Contudo, apontou o historial do ex-presidente dos EUA em situações semelhantes.

“O que o Trump fez com o Zelenskiy foi humilhação. Isso não é normal. O que fez com o Ramaphosa foi humilhação. Um presidente não pode humilhar outro. Eu respeito todos e exijo respeito.”

A ameaça do futuro que paira sobre nós

O chegar da chamada silly season tem para mim muito pouco de silly. Os últimos dias de julho recordam-me sempre que agosto se aproxima a passos rápidos e que, no dia 3, se cumprirá mais um ano sobre a primeira vez que fui seriamente ameaçado por ter escrito um artigo. Comentários rudes, violentos e ofensivos já os tinha tido, e muitos, nas caixas onde tal é possível ser feito em alguns jornais, nas edições online; mas, nesse dia, as palavras foram mais longe, através de uma mensagem pessoal enviada numa rede social.

Guardei as mensagens. Vasculhei o perfil da pessoa, as suas “postagens”. Era mais um simples nacionalista, adorador dos movimentos que nesse distante 2018 começavam a dar mais nas vistas. Seguia tudo o que tivesse pendor fascista. O meu artigo que o fez contactar-me, e que saíra na Visão, uns dias antes, tinha como base uma análise ao judaísmo em contexto da Grande Guerra, defendendo a paz e a concórdia: “Judaísmo, identidades e pré-conceitos: Uma leitura através de Mikhail Petrovich Artzybashev.”

Nunca respondi, mas fui seguindo o seu perfil nas redes sociais. Passados alguns anos, o meu ameaçador faleceu. No seu mural era dada a notícia, mas durante largos meses continuaram a ser lá replicadas matérias xenófobas, racistas e fascistas – os automatismos e os algoritmos conseguem manter vivo um perfil para lá de quem o criou.

Nesse distante 2018, Eugénio, pois era o seu nome próprio, fazia uma leitura de quem eu era: “és licenciado, tens um bom emprego e julgas que és esperto”; e acrescentava: “estás a dizer que quando formos todos mestiços, filhos de pai preto, judeu ou muçulmano e mãe indiferenciada, este mundo será finalmente o oásis perfeito”. Finalizava afirmando o seu orgulho pátrio, o valor da nossa história e como queria passar esses valores para as netas.

Hoje, sete anos depois, regresso a essas mensagens que remetiam para um futuro que, infelizmente, vejo aproximar-se. Diretamente, para aquele momento, ele não me ameaçava; era num futuro em que a sua visão do nacionalismo seria vencedora que a ameaça valia. Depois de dizer que guardaria o meu nome, a intimação era lançada para o futuro: “quando esta merda rebentar, não fales judeu, porque anda por aí muito maluco, grita só o teu nome para conversarmos.”

Mas, hoje, o que interessa como reflexão não é o conteúdo em si dessa ameaça. Nunca chegámos a “conversar”, como ela sugeria que viesse a acontecer quando “esta merda rebentar”, mas sempre que vejo os números de simpatizantes de certos movimentos e partidos percebo como a forma daquela ameaça era quase profética.

Normalizadas certas posturas, normalizada a violência verbal e, em muitos casos, física, o que sobra do hiato que eu julgava existir entre a ameaça do dito Eugénio e o futuro? Cada vez estamos mais perto da barbárie, cada vez estamos mais longe das formas civilizadas de agir para com o outro.

Cada vez mais urge não ficar calado ou quieto.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

A solução dos três Estados

Que tempos verdadeiramente excepcionais vivemos! Numa era digital onde algoritmos conseguem calcular trajectórias espaciais com precisão milimétrica e onde a análise de dados move biliões de euros nos mercados financeiros, os nossos veneráveis órgãos de comunicação social ocidentais optaram por abraçar uma metodologia estatística revolucionária, aceitar cegamente números fornecidos por organizações terroristas como se fossem relatórios do Banco Central Europeu. É de perguntar se estamos perante jornalismo de investigação ou uma comédia de pastelão digna dos irmãos Marx.

Permitam-me que vos apresente uma das jóias da credibilidade jornalística contemporânea, o famoso “Ministério da Saúde de Gaza”. Que prodígio da transparência democrática! Uma entidade controlada pelo Hamas, organização que a União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Israel classificam como grupo terrorista, transformou-se, como por magia, na fonte estatística mais confiável do planeta Terra.

Pensem na ironia, os mesmos jornalistas que passam semanas a verificar as declarações de património de um qualquer ministro europeu, que questionam metodologias de sondagens eleitorais e que dissecam relatórios económicos governamentais com lupa de detective, aceitam, sem um único “mas”, números fornecidos por uma organização que usa civis como escudos humanos, constrói túneis militares sob hospitais e escolas, executa opositores políticos em praça pública, rouba ajuda humanitária para financiar rockets e ensina crianças de cinco anos a odiar judeus.

A manipulação mediática atingiu níveis tão grotescos que faria corar Goebbels. Cada estatística é apresentada como facto irrefutável, cada número como verdade sagrada. Onde estão os correspondentes internacionais independentes em Gaza? Onde estão as organizações de verificação de factos? Ah, olvidei-me, estão todos “escoltados” pelo Hamas, essa organização conhecida pela sua abertura à imprensa livre.

Esta encenação hollywoodesca seria cómica se não fosse trágica. O Hamas descobriu a fórmula perfeita, transformar cada morte num instrumento de propaganda, cada hospital destruído (convenientemente omitindo os arsenais na cave) numa “prova” de genocídio sionista. 

E aqui chegamos à mais recente obra-prima da diplomacia internacional, imaginem não uma solução de dois estados mas uma “solução de três estados”. Porque, evidentemente, se dois estados em conflito não funcionam, três é que é a resposta! É como resolver problemas conjugais arranjando uma segunda esposa… sim porque qual será a autoridade da ANP e da Fatah em Gaza?

Imaginemos este cenário, segundo esta lógica brilhante, dividiremos o território entre Israel, Cisjordânia (Palestina) e Gaza. Três estados, três governos, três sistemas jurídicos, três forças militares. O que poderia correr mal?

Mas aguardem, que a coisa fica ainda melhor. Perguntas que nenhum dos génios diplomáticos quer responder:

  • Reconheceria a ONU Gaza como estado soberano?
  • O que aconteceria quando este “estado” disparasse rockets sobre Israel? Seria considerado um acto de guerra entre estados soberanos?
  • Teria Gaza direito a assento na Assembleia Geral da ONU?
  • Poderia assinar tratados militares com o Irão?
  • O que acontece se Gaza reivindicar soberania sobre partes da Cisjordânia?
  • Quem controlará o espaço aéreo? As águas territoriais?
  • Como funcionará a livre circulação entre territórios palestinianos se Gaza for hostil à Cisjordânia?

Isto tudo num cenário hipotético, ou não… A resposta a todas estas perguntas é a mesma, ninguém pensou nisso. Ou melhor, pensaram, mas preferiram ignorar porque as respostas destroem toda a narrativa.

 

Esta pseudo-solução serve um propósito cristalino, eternizar o conflito. O Hamas não quer paz, quer a destruição de Israel. Está escrito na sua carta constitutiva, repetido nos seus discursos, demonstrado nas suas acções. Para esta organização, qualquer acordo que reconheça o direito de Israel a existir é traição aos “mártires”.

O reconhecimento da Palestina sem contrapartidas de segurança será o maior erro diplomático desde que Chamberlain acenou com um papel em Munique declarando “paz para o nosso tempo”. Porque uma vez criado este precedente, quando o Hamas atacar Israel a partir do seu “estado soberano” de Gaza, como responderá a comunidade internacional?

Dirá que Gaza tem direito à “resistência”? Classificará os ataques como “direito à autodeterminação”? Ou reconhecerá finalmente que criou um Estado terrorista às portas do Mediterrâneo? 

Façamos uma análise realista das capacidades da ANP para governar Gaza.

Capacidade militar, zero. A ANP não possui forças armadas capazes nem de enfrentar uma milícia de bairro, quanto mais o Hamas. As suas “forças de segurança” são, na melhor das hipóteses, uma polícia glorificada.

Legitimidade popular em Gaza, Inexistente. O Hamas governa Gaza há 17 anos. Uma geração inteira cresceu sob a sua tutela. A ANP é vista como colaboracionista e corrupta.

Estruturas administrativas, fragmentárias. A ANP mal consegue gerir a Cisjordânia, onde tem algum controlo. Como administrará um território devastado pela guerra e controlado por túneis militares?

Apoio internacional, retórico. Os países árabes adoram fazer discursos sobre a Palestina, mas quando se trata de enviar soldados para combater o Hamas… silêncio absoluto.

Então, pergunta-se, como eliminará a ANP uma organização terrorista entrincheirada há décadas? A resposta é óbvia, não o eliminará. E quando o Hamas continuar os seus ataques, agora enquanto “proxy” iraniano operando a partir de um “estado soberano”, a quem pedirá ajuda a ANP?

À ONU? Essa organização que tem mais resoluções contra Israel (democracia funcional) que contra a Síria (que usou armas químicas contra civis)? Aos países árabes que em 75 anos nunca moveram um soldado para defender os palestinianos? Ou, suprema ironia, a Israel para limpar a casa?

O cenário mais provável é uma guerra civil sangrenta entre Fatah e Hamas, transformando Gaza numa Somália do Mediterrâneo. Mas desta vez com uma diferença crucial, será um Estado reconhecido internacionalmente, com todos os direitos e protecções jurídicas que isso implica.

E então, os mesmos progressistas que hoje aplaudem o reconhecimento da Palestina dirão quê? Que não era isso que queriam? Que não previram as consequências? Que a culpa é… de Israel?

O maior beneficiário desta loucura diplomática será Teerão. O regime iraniano ganhará uma base operacional “legítima” a 60 quilómetros de Tel Aviv. Gaza transformar-se-á no Hezbollah do sul, mas com estatuto de Estado soberano.

Que arsenal poderá o “Estado de Gaza” importar para “defesa nacional”? Mísseis de longo alcance? Mísseis anti-aéreos? Drones armados? E quando Israel tentar interceptar estes carregamentos, será acusado de “agressão contra um Estado soberano”?

O Irão conseguirá aquilo que nunca ousou sonhar, transformar o seu proxy terrorista numa entidade estatal reconhecida, com direitos internacionais e protecção jurídica. É o jackpot da proliferação terrorista.

A ONU, essa catedral da hipocrisia internacional, será forçada a enfrentar as suas próprias contradições. Como explicará que reconhece um Estado controlado por uma organização que a própria ONU classifica como usando “métodos terroristas”?

Como justificará dar assento na Assembleia Geral a representantes que, na semana anterior, podem ter executado dissidentes políticos? Como conciliará os princípios da Carta da ONU com a realidade de um Estado-membro que tem como objectivo declarado a destruição de outro Estado-membro?

A resposta será, como sempre, mais hipocrisia e mais duplos critérios. Israel continuará a ser o único país do mundo submetido a escrutínio permanente, enquanto “o novo Estado” gozará da benevolência internacional reservada às “vítimas”.

A Europa, esse continente que descobriu tardiamente os perigos da imigração descontrolada e do extremismo islâmico, está a preparar-se para criar um novo foco de instabilidade a duas horas de voo de Roma.

Quando a Palestina se transformar num Estado falhado, e transformar-se-á, as ondas de refugiados não se dirigirão para os prósperos países árabes do Golfo. Dirigir-se-ão para as costas europeias, como sempre acontece. E entre esses refugiados virão, inevitavelmente, elementos radicalizados pelo Hamas.

Os mesmos eurodeputados que hoje acenam com bandeiras palestinianas serão os primeiros a exigir “soluções europeias” para a crise humanitária que ajudaram a criar. A ironia será deliciosa, se não fosse trágica. 

Cada político, cada jornalista, cada activista que hoje defende esta “solução” fantasiosa carregará nas costas a responsabilidade histórica pelo prolongamento do sofrimento de inocentes. Porque ao criar as condições para a perpetuação do Hamas, ao legitimizar o terrorismo através do reconhecimento estatal sem contrapartidas, estarão a assinar uma sentença de morte para milhares de pessoas, palestinianos e israelitas.

A história não os perdoará. Quando crianças palestinianas morrerem em combates entre Fatah e Hamas, quando famílias inteiras forem executadas por “colaboração”, quando Gaza se transformar numa Síria em miniatura, lembrem-se, vocês construíram esta tragédia.

Os novos Filisteus não vêm do mar Mediterrâneo, como os seus antecessores históricos. Vêm das universidades de elite, das redacções dos jornais, dos parlamentos europeus. Têm diplomas em ciências sociais, falam de direitos humanos e vestem camisolas com slogans de paz.

Mas tal como os Filisteus originais, são invasores culturais. Invadem a complexidade do Médio Oriente com as suas simplificações ideológicas. Invadem a história com os seus mitos convenientes. Invadem a realidade com as suas fantasias progressistas.

E tal como os antigos Filisteus, o seu objectivo final é o mesmo, apagar Israel do mapa. Não com espadas e lanças, mas com resoluções da ONU e campanhas de boicote. Não com exércitos, mas com hashtags e manifestações. Não com honestidade, mas com manipulação mediática e falsificação histórica. 

A “solução dos três estados” é, na realidade, a fórmula perfeita para transformar uma tragédia regional numa catástrofe civilizacional. É a receita ideal para converter Gaza num Estado falhado, a Cisjordânia num campo de batalha e Israel num alvo permanente de um Estado terrorista legitimado internacionalmente.

Quando esta construção artificial ruir, e ruirá, porque está edificada sobre mentiras e sustentada por ódio, quando Gaza se transformar num Afeganistão mediterrânico, quando a guerra civil palestiniana atingir dimensões genocidas, quando o Irão instalar bases de mísseis a uma hora de Atenas, recordem-se destas palavras.

O tempo, esse juiz implacável da história, encarregar-se-á de expor a fraude intelectual e moral por detrás desta pseudo-compaixão progressista. E talvez então, demasiado tarde, percebam que o verdadeiro crime contra a humanidade foi aquele que cometeram contra a verdade, a lógica e o elementar bom senso.

Mas haverá justiça poética nisto tudo, os mesmos que hoje aplaudem a criação de um Estado terrorista serão os primeiros a sofrer as suas consequências. Porque a história, essa senhora severa mas justa, tem uma forma peculiar de fazer pagar a factura da estupidez ideológica a quem a assina.

Reconhecer a Palestina, neste momento, significa a vitória do terrorismo e empoderar todas as organizações terroristas no mundo. O tempo e a história se encarregarão…

O tempo, esse cronometrista incorruptível da justiça histórica, não perdoa aqueles que escolhem a militância cega em detrimento dos factos, a ideologia em detrimento da realidade, o ódio em detrimento da razão.

Jovens de hoje, cuidadores de amanhã: o futuro dos nossos idosos

Sou jovem, mas não posso fechar os olhos ao que vejo à minha volta. Escrevo sobre o envelhecimento em Portugal porque acredito que este é um tema que nos toca a todos, independentemente da idade. Porque, cedo ou tarde, somos todos chamados a envelhecer ou a cuidar de quem envelhece. E, se não começarmos agora a mudar, arriscamo-nos a perpetuar um silêncio que custa vidas e dignidade.

O que acontece a um país onde há cada vez mais avós e cada vez menos netos? A resposta não pode ser apenas esperar do Estado. Em Portugal, o envelhecimento da população já é uma realidade incontornável, mas a forma como cuidamos dos nossos idosos revela muito sobre os valores que queremos preservar. Somos um dos países mais envelhecidos da Europa, mas continuamos a agir como se o tempo não passasse, como se o futuro não nos dissesse respeito.

Mais de 23% da população portuguesa tem hoje 65 anos ou mais. Muitos vivem sozinhos, com pensões modestas que mal chegam para pagar a renda e os medicamentos. As listas de espera para entrar num lar são longas, e os cuidadores informais, muitas vezes familiares dedicados, enfrentam desafios enormes, sem o apoio que merecem.

Temos de reconhecer que a base do cuidado é a família e a comunidade. É nela que se constrói a verdadeira solidariedade, o apoio que o Estado não pode, nem deve, substituir por completo. Ao mesmo tempo, programas públicos e financiamentos existem, mas precisam de ser melhor organizados, mais eficazes e menos burocráticos.

Em 2022, a Cruz Vermelha relatou o caso de uma idosa que ligou para pedir companhia. Não precisava de medicamentos, nem de alimentação, apenas de alguém que lhe falasse. Noutra situação, uma mulher de 84 anos vivia num prédio sem elevador e já não conseguia sair de casa. Estes casos mostram que a desagregação social e o afastamento familiar são questões que devemos enfrentar com seriedade.

Envelhecer não é uma tragédia. A verdadeira tragédia é fazê-lo num país que não valoriza os seus valores fundamentais: o respeito pela família, a responsabilidade pessoal e o cuidado com os nossos. A dignidade não se perde com a idade, e muito menos com o distanciamento entre gerações.

É urgente pensarmos o envelhecimento como uma fase com valor, voz e direitos. Precisamos de políticas públicas integradas, sim, mas também de um reencontro com os valores que unem as famílias e as comunidades. Mais apoio domiciliário, melhores lares, estruturas que evitem o isolamento, sim, mas também uma sociedade que se reconcilie com a importância do papel familiar.

No fundo, cuidar dos nossos idosos é cuidar de nós próprios, da nossa história, das nossas raízes, do que somos. É olhar nos olhos de quem viveu, amou, trabalhou e construiu este país, e reconhecer que merece mais do que solidão ou abandono. É dar-lhes a mão quando o caminho fica mais difícil, é garantir que o último capítulo da vida seja escrito com dignidade, amor e respeito.

Porque, no final, somos todos responsáveis por que memória queremos deixar para quem vier depois de nós. Cuidar dos nossos idosos é um dever que define a alma de uma nação.

Quem esquece os seus, esquece-se a si próprio.

Portugal e a antiguidade dos sefarditas. Uma peça identitária fundamental

É longa, possivelmente de mais de dois milénios, a presença judaica no que hoje é o território português. Inevitavelmente, esta espessura histórica teria de marcar de forma muito clara as populações que hoje habitam esse mesmo espaço, dando material para o campo identitário.

Contudo, o caminho do tempo não foi simples e linear e, no Portugal contemporâneo, essa inevitável memória não é nada pacífica. É um desconforto que radica numa dificuldade em definir se os judeus sefarditas somos “nós” ou se são “eles”, vindo de séculos de perseguição que tentaram apagar os traços identitários do judaísmo sefardita da nossa cultura.

Percebemos esta tensão no campo do adagiário. Como que num inconsciente coletivo, os ditados populares são uma marca do que se consolidou ao longo dos séculos como perceção e representação. “Trabalhar que nem um mouro” ou “fazer judiarias” são dois exemplos de como a cultura popular portuguesa consignou chaves de intolerância na memória coletiva, uma em relação aos muçulmanos, outra aos judeus.

Socialmente, um provérbio é a imagem de um tempo longo, de um tecido social com pouca mudança. O caso do judaísmo é, possivelmente, o caso mais significativo em Portugal. Se o “fazer judiarias” revela uma imagem negativa, um outro adágio, “andar com o credo na boca”, mostra como o medo dos critpo-judeus em serem apanhados sem saber a oração do Credo, não conseguindo provar que eram bons cristãos, passou para o tecido social, sem mácula da minoria supostamente indesejada e caricaturada – saber o Credo por forma a recitá-lo imediatamente, passou a ser imagem de um medo endémico numa população habituada a inquisições e polícias políticas. Neste caso, o todo do tecido social irmanou-se com o perseguido, com a minoria, com o “outro”.

De facto, se há campo da nossa memória coletiva que com alguma dificuldade conseguimos compreender, ele encontra-se na relação que os judeus sefarditas criaram com o território peninsular, mais propriamente com o português. Dois fenómenos correm paralelos num rio lodoso; por um lado, muito pouco se tem estudado sobre a antiguidade da presença dos judeus na Ibéria, pressentindo-se, apenas, que ela será milenar; por outro, de onde virá, como se formou essa estreita relação entre os judeus e Sefarad, uma mítica terra, uma mítica era, um mítico espaço de que resultou, mesmo após a conversão forçada, uma relação e uma proximidade simbólica fortíssimas?

Esta ligação, tantas vezes comprovada, por exemplo, no facto de em algumas sinagogas, como em Amesterdão, ainda se recitarem orações em português, vários séculos depois da fuga, foi um dos motores e justificativas para a Lei que em 2013 foi aprovada, por unanimidade, para permitir o acesso à cidadania portuguesa por parte dos descendentes dos sefarditas fugidos à Inquisição.

Apesar de muitas vezes perseguidos no início da Idade Média, os judeus peninsulares encontraram na Ibéria, até à passagem do século XIV para o XV, um espaço de significativa liberdade, quer religiosa, quer de ação. Foi este o fundo que resultou, ao longo dos séculos, na construção quase mítica da ideia de Sefarad, sempre associada a um espaço de profunda identificação e significativa felicidade.

Sinagoga Sefardita, na judiaria de Castelo de Vide.

Desde muito cedo, não sabemos quando, esta realidade designada por «Sefarad» foi identificada com a Península Ibérica (a palavra Sefarad surge no texto bíblico de Abdias, versículo 21, um texto do século VI a.C.). Não podemos saber desde quando, de facto, existiram judeus no território peninsular, mas podemos dizer, com certo grau de verosimilhança, que isso terá acontecido muito cedo, logicamente antes do domínio romano, aquando da grande expansão comercial dos fenícios.

Os fenícios, com as suas armadas preenchidas também com hebreus, pululavam numa época de primeira globalização em que a moeda e o ferro traziam uma rápida e brusca homogeneização de gostos e práticas culturais. A chegada dos primeiros hebreus deve estar relacionada, ou com a vinda de comerciantes fenícios logo no início da Idade do Ferro, ou com a proximidade, mais tarde, ao contínuo de dominação cartaginesa do Norte de África, onde as populações semitas dominavam, dominando também todo um modo de vida em torno do comércio. É o próprio texto bíblico a mostrar que o hebreu Rei Salomão organizara armadas com o Rei de Tiro para comerciar na Península Ibérica (1 Rs 10, 22). Estaríamos, provavelmente, entre os séculos X e IX a.C., quando os primeiros hebreus chegaram a terras, muito depois, apelidadas de portuguesas.

Com o advento do domínio romano, a presença judaica avoluma-se e, antes da chegada do Cristianismo, já existiriam grandes comunidades judaicas em várias regiões da Ibéria. O grande difusor do Cristianismo, Paulo de Tarso, é quem nos confirma essa realidade, quando afirma a vontade de vir evangelizar a este canto do mundo mediterrânico – S. Paulo deslocava-se sempre a cidades com grandes comunidades judaicas.

Afirma o apóstolo na sua Carta aos Romanos (Rm 15,23-24, 28):

“Como não tenho mais nenhum campo de acção nestas regiões, e há muitos anos que ando com tão grande desejo de ir ter convosco, quando for de viagem para a Hispânia… Ao passar por aí, espero ver-vos e receber a vossa ajuda para ir até lá, depois de primeiro ter gozado, ainda que por um pouco, da vossa companhia… Portanto, quando este assunto estiver resolvido, e lhes tiver entregado o produto desta colecta devidamente selado, partirei para a Hispânia, passando por junto de vós.”

Para a mesma época, a arqueologia também nos valida esta informação. Pela mesma época, com datação da primeira metade do séc. I d.C., foi encontrado em Mértola um grupo de onze moedas cunhadas na Judeia, atestando as trocas comerciais entre as duas regiões.

Pedra de anel com símbolos judaicos (Museu Cidade de Ammaia).

Uma pedra de anel, provavelmente proveniente da cidade romana de Ammaia, datado do séc. II d.C., e hoje em depósito no Museu Nacional de Arqueologia, constitui um dos testemunhos arqueológicos mais antigos para a datação da presença judaica, não só em Portugal, mas em toda a Península Ibérica.

Anteriores em Portugal, mais de um milénio antes de haver Portugal. Anterior em alguns séculos ao Cristianismo, o judaísmo sefardita é parte sem a qual é impossível compreender Portugal. Atores fundamentais na época da fundação do reino, foram imprescindíveis na construção da expansão dos séculos XV e XVI. Pena que a perseguição tenha caído sobre o reino e tenha destruído a riqueza cultural antes construída.

[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. As opiniões dos autores representam as suas próprias posições.]

A fantasia do reconhecimento do “estado” da Palestina

Há vários problemas com a fantasia de se reconhecer o “estado” da Palestina. O primeiro é que não existe um “estado” da Palestina. Como se pode reconhecer o que não existe? Existem dois territórios palestinos: a margem ocidental do rio Jordão; e a faixa da Gaza. São territórios distintos, com dois governos diferentes, que não reconhecem legitimidade política um ao outro. Qual das “Palestinas” será reconhecida por Portugal e por outros países europeus? Parece que será a Autoridade Palestiniana na margem ocidental do rio Jordão. Essa é a primeira contradição da fantasia (lamento, mas não é possível chamar-lhe estratégia). Querem reconhecer o “estado” da Palestina por causa da guerra de Gaza, mas se o fizerem estão a atacar directamente a autoridade que governa Gaza, o Hamas.

Os governos europeus também querem pressionar o governo de Israel. Mas, curiosamente, ao não reconhecerem o Hamas como a autoridade soberana palestina, colocam-se ao lado de Israel que pede a rendição absoluta do Hamas desde os ataques de 7 de Outubro de 2023. O Hamas reclama que representa o povo palestino, em Gaza e na faixa ocidental do rio Jordão, mas se os países europeus não reconhecerem a autoridade que o Hamas reclama para si próprio, estão a acabar com o Hamas como ele existe de momento. Eis a segunda contradição: parecendo que estão a atacar Israel, os governos europeus estão a colocar-se ao lado do governo de Israel contra o Hamas.

Obviamente, os governos europeus sabem isso tudo. Mas insistem na fantasia do “estado” da Palestina. Ora, o que vão os governos europeus fazer para ajudar a construir um estado palestino? É o preço de querer reconhecer o que não existe: que se faça alguma coisa para que passe a existir. A primeira coisa que teriam que fazer seria forçar o Hamas a render-se. Os países europeus não têm poder nem vontade para pagar os custos de impor essa estratégia. Por isso, o reconhecimento de um “estado” da Palestina seria (ou será, se a sensatez não prevalecer) mais uma exercício europeia de diplomacia vazia e sem consequências.

Mas há ainda uma quarta contradição. Só na aparência é que o eventual reconhecimento do “estado” da Palestina constitui um acto de política externa. Na verdade, é um exercício populista de política interna. Por um lado, acham que as maiorias das populações europeias querem reconhecer um “estado” da Palestina. As televisões querem, mas as televisões há muito que deixaram de representar a maioria das populações europeias. Os governos europeus estão convencidos que é popular, internamente, reconhecer o “estado” da palestina, e que também lhes dá uma superioridade moral que não enjeitam, mas a busca de popularidade entre as suas populações é política interna, não é diplomacia.

No caso da França e do Reino Unido há também uma tentativa de Macron e de Starmer de apaziguar as populações muçulmanas, onde os grupos radicais islâmicos exercem muita influência. É próprio de líderes fracos, como são o Presidente francês e o PM britânico. Mas uma outra dimensão mais preocupante: as minorias imigrantes começam a influenciar as políticas externas de países europeus. A diplomacia não serve para apaziguar grupos radicais. Sobretudo, as fraquezas e os problemas internos de Macron e de Starmer não devem influenciar a política externa de outros países europeus.

Espanha exclui F-35 da lista de compras e aposta em caças europeus

O Governo espanhol decidiu não avançar com a compra dos caças F-35, de fabrico norte-americano, e está agora a considerar duas alternativas europeias: o Eurofighter e o Future Combat Air System (FCAS).

Esta informação foi confirmada esta quarta-feira por um porta-voz do Ministério da Defesa, após notícia do “El País”.

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A decisão surge no contexto de uma reorientação dos investimentos militares para a indústria de defesa europeia.

Segundo o “El País”, o Executivo liderado por Pedro Sánchez pretende aplicar a maior parte dos 10,5 mil milhões de euros adicionais para a Defesa em aquisições feitas no continente.

O orçamento espanhol de 2023 já previa uma dotação de 6,25 mil milhões de euros (cerca de 7,24 mil milhões de dólares) para a compra de novos caças, mas a escolha do F-35, fabricado pela norte-americana Lockheed Martin, foi descartada.

Questionada sobre a decisão, a Lockheed Martin limitou-se a referir que “as vendas militares estrangeiras são transações entre governos e esta questão deve ser tratada pelo governo dos EUA ou pelo governo espanhol”.

O reforço do investimento na área da Defesa insere-se no compromisso do Governo espanhol de atingir, até 2025, a meta de 2% do PIB exigida pela NATO.

Ainda assim, o primeiro-ministro Pedro Sánchez tem recusado subir esse valor para 5%, como pretendido por Washington.

A ilustre autarquia

Em 1900, no livro A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queiroz explicou candidamente que Portugal não era mais do que uma bela fazenda governada por uma “parceria”. Esta, composta por cerca de “trinta sujeitos”, mandava e governava a dita fazenda, tendo nas mãos os destinos dos restantes milhões de portugueses que nela passavam a vida, nuns casos a trabalhar, noutros simplesmente “a olhar”.

Não faço ideia se serão somente trinta indivíduos aqueles que mandam nisto tudo. Ajustados a uma população que, entretanto, cresceu de cinco a seis milhões para cerca de dez, talvez a parceria do Século XXI ande já nos cinquenta, sessenta indivíduos ou, mais arrojado, levando em linha de conta o crescimento económico do Estado Novo e, mais tarde, do final do Século XX nos tempos áureos do Cavaquismo, talvez a coisa já ande na ordem das centenas. Ainda assim, independentemente do número, o facto é que, entre os fundos europeus, as grandes linhas de investimento, a necessidade de trazer o “progresso”, fazer “avançar” Portugal, ou, mais simples e à sorrelfa, trocando licenças bancárias que monopolizam a capacidade criar dinheiro, e dívida, distribuindo-a por amigos e familiares que assim compram e vendem empresas, conselhos de administração, outros bancos, grandes conglomerados ou gigantescos “fundos”, no final, a coisa, mesmo em país pobre e remediado como este, ainda dá para muita gente.

Aliás, sejam esses quantos forem, verdadeiramente, a dita parceria até se “democratizou”. Ao contrário de tempos idos onde apenas a heráldica apropriada, ou o sobrenome, permitiam o acesso, hoje, e recompensando a insistência social generalizada na regra dos apelidos compostos, ainda que muitas vezes um seja da mãe e outro do pai, do triunfo da moda de andar a adivinhar quantos beijinhos dar na cara daquele desconhecido, isto enquanto, como sempre, se ajeitam também à necessidade de parar neste ou naquele bar, este ou aquele restaurante, usar esta ou aquela marca, frequentar esta ou aquela praia no Verão, a verdade é que o clube há muito que abriu as carteiras às notas sujas de nódoas, mas alto valor facial, de uma multitude de noviços, provincianos ou, como o pantomineiro Marcelo arvorou, rurais.

Todos estes, ainda que ensacados em fatos modernos e progressistas, fruto da produção em massa e do pronto-a-vestir, calçando, sem meia no Verão, sapatinhos de marca italiana com berloque, ostentando nos pulsos reluzentes relógios a condizer, fio no peito, e esteticamente empapuçados de brilhantina na tola, estão também mortinhos para se alçar ao famoso salto à (Armando) Vara — de caixas de banco a banqueiros da Caixa —, pelo que, como não poderia deixar de ser, não deixam de fazer as piruetas, os mortais e as genuflexões adequadas às suas próprias, altíssimas, nobilíssimas, aspirações.

No fim, junta-se a fome com a vontade de comer, pelo que um dos grandes legados da democracia não pode também deixar de ser o verdadeiro elevador social nacional em que se tornou a carreira partidária — como é evidente, aliás, para a maioria da população que, de fora, olha, ou pasma, com inveja e ranger de dentes, os pulos sociais que a militância política, junto com o chamamento de Lisboa, semeia pela província abandonada. Tudo é mau. Desde logo, até a designação utilizada pelos próprios como carimbo de competente especialização, a noção de “político de profissão”, ou seja, o tal que envereda pela “carreira política”, logo trata de arrepiar a pele do pescoço dos espíritos mais atentos. Estranho é, apenas, que ninguém repare, pois que “carreira” e “partido” são duas noções que, no campo dos princípios, aqueles em que qualquer camarada, companheiro ou com-militante se besuntam e perfumam, aparecem de imediato como contraditórias. O partido, ou seja, a “parte” da representação popular democraticamente escolhida, significa, ou pretende significar, trocas de ideias, discussões acaloradas, opções estratégicas, sonhos e quimeras, debates, quezílias, dilemas entre conflitos de valores fundamentais, grandes discursos e o triunfo magno das ideias faladas, discutidas, e não impostas a murro, calhau ou baioneta — ou seja, não se sabe, a cada momento, quem ganha a peleja.

Já “carreira”, esse é um termo que significa todo o oposto. Tal como o autocarro, o destino da viagem, não apenas está previamente traçado, como, mais importante, há a absoluta garantia que é desse modo planeado e pré-definido que a viagem decorrerá. O progresso é automático, as gerações substituem-se, os cargos trocam-se, mas, a pouco e pouco, paragem a paragem, sobe-se na “carreira”, começando por varrer as salas das sedes partidárias, passando para arregimentador de votos em assembleias plenárias e, depois, alçando-se a assistente, assessor ou secretário de vereação, daí, sobe-se de grau, ou nível, passando o arregimentador de votos a arregimentador de arregimentadores de votos, o que lhe permite, com jeito e empenho, o próprio do lugar de vereador de onde, já com motorista, a seu tempo, se faz deputado, secretário de estado e, em auge, o cume apenas permitido aos mais brilhantes tenebrários de cada geração, a cadeira de ministro.

Ora, uma questão subsiste. Como é conciliável o incerto e problemático debate estratégico da Nação com a carreira garantida no funcionalismo político? Pois bem, a resposta é fácil de alcançar: no final, quezílias sobre quem fica com o quê à parte, a verdade é que pensam todos da mesma maneira, fazem todos por igual, pensam todos o mesmo — aquilo que é popular e oferece direitos de publicidade eleitoral no jornal, na TV e na rádio. Assim posto e explicado o esquema, agora democrático, nestes estáveis e respeitáveis termos, como poderia a parceria negar o acesso do secretário de estado e do ministro ao remanso atapetado e pleno de sofás de couro dos seus clubes privados? Não podia. Daí a plena democratização onde, em lhes abrindo a porta e mostrando o fausto dos seus interiores, quem manda acena a cenoura que excita o mais idealista dos caciques eleitorais. Em troca, como bilhete, milhares e milhares de posições se mandam criar, nomear e preencher, desde os motoristas, a rodos, às secretárias, passando pelos “técnicos” da respectiva especialidade que, no Diário da República, saltam das comissões políticas das secções e distritais para os “gabinetes” do secretário de estado e do ministro.

Eis, pois então, em todo o seu esplendor e fulgor, a brilhante carreira partidária, o expoente máximo do funcionário político que, organizado em “partes”, cada qual com a sua cor, sinalética de punho, mão ou dedos, hino e lema, tudo muito patriótico e pejado de idealismo, assim acaba gerindo o país. Gerindo, atente-se, não governando, que isso é outra coisa. Aliás, e nem de outra forma poderia ser, se se passa o tempo útil da “carreira” a tratar de votos e de cargos, de calendários e orçamentos eleitorais, de estratégia alpinista para garantir que, a cada fornada geracional, se ocupa aquele ou aqueloutro poiso, se se passa o tempo nisto, ora, pode-se até perceber muito de muita coisa, desde as relações humanas aos equilíbrios de poder, dos compromissos práticos e das parcerias estratégicas, agora do que não se percebe nada é de como governar o país, ainda que em nome do qual, a cada minuto e segundo do dia, se esbraceje, se grite, se discorde, se cante, se chore. No final, sobra, naturalmente, o teatro.

Quem manda, então? Ora bem, a tal parceria. A parceria é que manda garantindo que as coisas se mantêm como esta, e ela recebe o seu quinhão. E manda tanto mais quanto esta gigantesca rede clientelar de “carreiras” dela depender, assim cimentando, em cima do polvo que criou, o seu próprio poder — ao qual, em lhe querendo cheirar, tocar, mexer, comer e beber, cada pequeno tentáculo do enorme polvo político-partidário presta a devida vassalagem — e apenas assim se consegue explicar o paradoxo que permite que se façam carreiras nobilíssimas, vistosas, importantíssimas, assentes nas eternas promessas de “progresso” e “mudança”, isto enquanto acabam sempre, ou quase sempre, garantindo que tudo fica absolutamente na mesma.

Façam-se umas décadas, senão séculos, disto e não sobra muito mais do que aquilo que temos hoje, e que toda a gente vê — um exército de inúteis práticos, especializados na arte de vender princípios que não conhecem, em gerir coisas que não são suas, em planificar estratégias que não compreendem, mas apenas repetem, decoradas, assim como os slogans e hinos das respectivas cores partidárias. A cartilha, dada por quem manda, claro, sai para os ouvidos de quem faz, é certo. Mas, depois, para justificar, logo corre também para as mentes de quem legitima o esquema todo, o jornal. E assim pode ser porque, tal como a carreira partidária, o mesmo se processa também em todas as outras carreiras corporativas, desde logo na redacção. No fim, tudo se interliga e repete: desde o político ao jornalista, do comentador ao locutor, bem como da apresentadora ao entretainer, dos artistas à espera do subsídio aos pretendentes a humoristas, isto no mundo público e publicado, um mero reflexo, e refluxo, da realidade última que também discorre com naturalidade nas carreiras de gestão da empresa pública, de regulação do interesse público, da própria academia, no mundo das gigantes privadas, seja por onde for, num país de primos e enteados, amigos e cunhados, assim se vai aplicando religiosamente o princípio de Peter — lambendo-se botas, aproveitando-se o conhecimento deste ou daquele, vilipendiando-se este ou aqueloutro, sobe-se na carreira até atingir o nível máximo para o qual, manifestamente, não se tem qualquer competência.

Progressivamente, o carreirismo burocrático, como caruncho, tomou conta de todo o sistema — incompetente, cego, surdo, mas vocal, bem vocal, de dedo em riste, explicando sempre como com mais “investimento”, com maior dedicação à “causa pública”, procurando “resolver os reais problemas das populações”, agora é que se vai ser bem-sucedido na arte da governação. A seu tempo, naturalmente, a coisa torna-se insustentável, acabando invariavelmente na falência — algo que os portugueses conhecem muito bem. Ora, esta última, depois de uma tentativa de enfrentar os donos disto tudo e remar contra a dita parceria — leia-se o esforço inglório de Passos Coelho entre 2011 e 2015 —, resolveu-se vendendo politicamente o país, desde logo a sua soberania à magna direcção de Bruxelas que ora decide, impõe e escolhe o destino estratégico da coisa, incluindo os meios e os objectivos a serem alcançados pelo país — que, em troca do assentimento do governador local, vê generosamente cabimentados com pompa e circunstância no orçamento quinquenal. Assim, transformando subsidariedade em subserviência, continuam chovendo os fundos e se garantem as contas nos mínimos que mantêm os edifícios de pé, tal como afiançam a estabilidade das rendas, dos lucros e dos impostos que pagam toda a enorme rede tentacular que suporta, e alimenta, a parceria.

Cento e vinte e cinco anos depois, o país continua, portanto, sendo a tal fazenda da qual Eça falava: belíssima à vista e ao cheiro, óptima nas férias, fiel destino de turismo onde se aluga a preço módico aquilo que os indígenas não conseguem alienar, ou estragar — sol, mar e uma tradição milenar de cozinhar restos e aproveitamentos. Do mesmo modo, em particular depois de 2015, continua bem mandado pela dita parceria, apenas que agora reduzida ao papel de capataz de feudo. Já o Governo é, de facto, uma enorme autarquia que vive como habitualmente gerindo a minudência orçamental e decidindo, por decreto, o traçado das estradas e dos horários no centro de saúde, os regulamentos escolares, ou os metros de distância entre cada casa e a árvore mais próxima — já governar e definir a política do longo prazo, isso não tanto. E assim continuará a ser enquanto os fantoches políticos fizerem, de cabeça baixa e mão estendida, aquilo que os verdadeiros donos mandarem fazer.

Quanto à parceria, essa lá vai feliz e contente, navegando a coisa. Por um lado, vilipendiando quem a afronta — em especial o malandro, sacripanta, estoura-vergas Passos Coelho a cada vez que ousa aparecer em público —, por outro, promovendo quem não a chateie. O dinheiro, como se sabe, não tem pátria, nem hino, ou sequer vergonha. Daí que trocar a soberania de um povo pela garantia de uma boa posição regional não tenha sido algo que perturbasse almas tão requintadas — garantidas as concessões, Bruxelas que trate, e pague, do resto. Já ao povoléu, em particular aquele que não se contenta apenas com “olhar”, e tal como quase sempre desde há mais de duzentos anos, a quem quiser sonhar mais que isto, sobra vergar a mola, varrer as esplanadas e sacar uns cobres aos camones — ou então emigrar.

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