Ensinar o ego a pescar

No Natal de 2021, subi ao palco do Teatro Nacional D. Maria II e, durante uma hora, comparei a nossa atitude perante as alterações climáticas com uma rã na panela.
Há uns dias vi esse mesmo título numa notícia online e o meu ego ficou magoado. “Não me ouviram no Natal de 2021 e, agora, roubam-me a ideia. Sacanas.”
Ocorreu-me agora que ESTE é um dos impedimentos principais entre nós e a salvação que já não chegará a tempo: ego.
Desde esse Natal tenho vindo a publicar linhas sobre este tema. Estas são frequentemente recusadas porque soam a disco riscado. Agradeço ao Observador não mandar estas para o caixote do lixo electrónico e vamos já directo para o slide vermelho na minha apresentação natalícia, que dizia “Keep calm and do the math“.

Enquanto esse slide estava no ecrã recordei o público de como a Revolução Industrial marcou o início do transporte de Carbono desde o chão, onde esteve enterrado durante milhares de milhões de anos (na forma sólida, líquida e gasosa) para a atmosfera. A seguir expliquei o que é um motor de combustão, que consiste em cilindros metálicos dentro dos quais é injectado combustível, que explode. O combustível consiste predominantemente em longas moléculas de átomos de Carbono rodeadas de átomos de Hidrogénio, daí adoptarem a designação de Hidrocarbonetos.
A seguir expliquei que, no início da Revolução Industrial, começámos por pôr máquinas a mexer queimando lenha e carvão (lá está, Carbono), para aquecer água e pressurizando o vapor desta para mover corpos pesados, como locomotivas, carros, pistões, êmbolos e motores variados. Seguiu-se o motor de combustão a gasóleo, depois o de gasolina e a explosão destes. Refiro-me às explosões no interior dos seus cilindros, mas também à explosão na sua proliferação.
Sabem quantos motores de combustão existem actualmente? A internet diz-nos que são aproximadamente 1500 milhões em carros, autocarros, camiões, motociclos e outros veículos. Mais uns largos milhões em 10 milhões de fábricas, mais uns 109.000 navios e perto de 25.000 aviões activos. Agora imaginem quantos existiram antes destes. E agora imaginem que cada um dos motores que existe agora, mais todos os motores que existiram desde a Revolução Industrial, funcionam a vários milhares de rotações por… minuto.
Recordemos o slide “Keep calm and do the math“.
Multipliquemos o total dos motores actuais – sem esquecer os já desactivados e ancestrais – pelo número de cilindros de cada um, pelo número de rotações por minuto e pelo número de horas, dias, semanas, meses, anos, décadas durante os quais hidrocarbonetos explodiram dentro desses cilindros.
…e expeliram os gases dessa combustão para uma atmosfera finíssima, de um planeta minúsculo, cuja espessura pode ser equiparada a uma folha de papel aderente que embrulha uma bola de basquete.
Se não tiverem veia matemática, escusam de ler mais porque não entendem o alcance do resultado da multiplicação e metáfora anteriores.
Se tiverem veia matemática e entenderam a metáfora, provavelmente também vão parar de ler e vão a correr ensinar os vossos filhos a pescar em vez de lhes darem peixes, porque perceberam a magnitude do problema que temos pela frente.
“Problema” é um belo eufemismo para caracterizar o fim da nossa espécie neste minúsculo planeta e pela nossa mão, porque esta quantidade alucinante de Carbono “a mais” numa atmosfera outrora equilibrada não pode ser – e não é – inconsequente.
Os gráficos são abundantes. Os discursos alarmistas de cientistas climáticos também.

Apesar disso, sempre que toco o meu disco riscado da rã na panela invariavelmente ouço e leio “Lá vem a esquerdalha radical apregoar o fim do mundo. Você tem noção que a quantidade do CO2 na atmosfera corresponde a 0,0(…)1% dos gases na dita?”
A isso respondo “E você tem noção dos conceitos de ‘sistema’ e de ‘equilíbrio’? Tem noção de quão poucas casas decimais são necessárias para desequilibrar algo que está equilibrado há milhares de milhões de anos? Tem noção de que a diferença entre água a -1°C ou +1°C é profunda? E tem noção de que a diferença entre água a 99°C ou 101°C é igualmente profunda? Tem noção de que as Leis da Física Clássica não querem saber das noções que tem, ou não tem?”
Sabem o que separa a floresta Amazónica do deserto Sahara? Dois ou três graus centígrados e o facto de que um tem vegetação e consegue reter humidade e o outro não tem vegetação e, por isso, não retém humidade. O problema é que bastam, de facto, dois ou três graus centígrados para o topo da floresta aquecer demasiado e algumas folhas morrerem. Deixando de fazer sombra no solo, e nas plantas abaixo, estas também secam e também morrem, num ciclo de feedback positivo em que secura gera mais secura. Não demora muito tempo para uma floresta passar a deserto. Bastam dois ou três graus e umas décadas. Ou menos. Adicionemos o desmatamento e incêndios provocados e aceleramos ainda mais esse processo.
Não é preciso muito para isso acontecer. Basta um processo eleitoral.
Há líderes que levam um povo na direcção do entendimento e solução de problemas. E há líderes que levam o povo que os elegeu na direcção do desentendimento e do abismo.
Lá está o ego a falar. A mania de que temos sempre razão. O ego que nos levou à Lua e que levou sondas a Marte. O ego que já meteu duas sondas fora do Sistema Solar e outras dentro do Sol. O mesmo ego que nos impele a mover acções judiciais contra os que gozam connosco ou a desamigá-los porque não há saco para lidar com a discórdia. O mesmo ego que me leva a exibir os meus modestos dotes literários e raciocínio acutilante nestas matérias climáticas. O ego que nos salvou tantas vezes, é o mesmo que nos levou à perdição.
Uso o tempo verbal passado porque já estamos perdidos.
O que me leva ao tema “pesca”.
Diz-se que não devemos dar um peixe a uma pessoa com fome, mas sim ensiná-la a pescar.
Concordo.
Principalmente desde que sou pai, um privilégio que celebra seis anos precisamente quando escrevo estas linhas.
Ainda ontem ensinávamos o petiz a empurrar os meninos que o empurrarem. “Nunca empurres ninguém, nunca chames nomes. Mas, se te empurrarem, se te chamarem nomes, não te fiques.” ou não fosse ele filho de um biólogo marinho que sempre adorou Física e que leva a Lei de Acção-Reacção de Newton muito à séria.
Cá em casa tentamos fazer parte da solução e não do problema. Mas o ego é tramado. Quando toca ao nosso bem-estar físico e emocional, venham-me cá com dicas apaziguadoras, que eu já vos digo. “Empurraram-te? Empurra-o com mais força.” Lá se vai a razoabilidade pela janela.
O ego é tramado. E poderia ter-nos salvado. Mas lixou-nos. Com f.