Crentes nos transportes públicos ao domingo de manhã


Domingo de manhã, comboio das 7.20 de Oeiras para Lisboa. Não leva muita gente e consigo lugar logo na primeira carruagem, naqueles de dois lado a lado, onde aproveito para ir sossegado à janela, de preferência a ler. À minha frente, naqueles lugar de quatro, de dois virados para dois, estão duas senhoras africanas. Diria que são angolanas mas não tenho a certeza. Estarão nos seus sessentas. Conversam animadas.
A determinada altura, uma delas levanta-se e vai chamar alguém que viu na segunda carruagem. Regressa com um senhor nos seus quarentas, português, branco, banal como eu. Só pela mistura, desconfio que sejam evangélicos. Domingo de manhã, transportes públicos, pessoas que se juntam de raças diferentes—devem ser crentes, diz-me o instinto de 47 anos assim (e “crente” é o termo que os evangélicos usam para distinguir quem faz parte). Confirma-se. Em segundos falam de pastores, de bispos, de cultos a que vão.
Em Portugal a palavra “culto” mete medo. Não devia mas é típico de um país que ao longo dos séculos foi trancado numa religião única. Culto implica cultuar, implica cultivar. Só associará culto a oculto quem presta pouca atenção a palavras e talvez ainda menos a pessoas. Mas creio que é essa a associação negativa que acontece na maioria dos portugueses. Os evangélicos não têm missas, têm cultos—e não se envergonham disso. São esses mesmos cultos que juntam pessoas tão diferentes na adoração ao mesmo Deus. Um português comum de 40 anos em conversa animada com duas sexagenárias africanas acontece por causa do culto.
Aqueles três no comboio comentavam transferências pastorais, horários das reuniões preferidas, planos futuros para a igreja. Falavam com emoção, riam, não escondiam o entusiasmo pela hora que estava a chegar em que orariam juntos, cantariam juntos, leriam juntos, ouviriam juntos, provavelmente chorariam juntos. Tive vontade de os interromper e dizer-lhes que era um pastor baptista a caminho do culto também. Mas deixei-me ficar, contagiado pela vibração das vozes deles. Era como se o culto já tivesse começado ali, na carruagem de comboio, e eu me juntasse mesmo que silenciosamente.
E é isso mesmo. Naquele centro móvel de Lisboa, conduzido em carris, o culto já tinha começado, reunindo quem geralmente anda separado. Um pequeno grupo de três, luso-angolano, branco e preto, feito de um homem e duas mulheres, certamente popular, é a semente de algo futuro ao mesmo tempo que é antídoto para o pior do presente. Vivo para fazer parte dele.