Quer o seu vinho com ou sem bâtonnage?

Primeiro, foi a barrica, com os produtores e enólogos a querer reduzir a presença de madeira nova nos seus vinhos; depois, a vindima precoce, em busca de acidez e menos álcool; agora, é a bâtonnage que os técnicos querem controlar. É o vinho a fugir das receitas-padrão. A conversa sobre fim da bâtonnage é exagerada, mas lá que começa a dar que falar no meio onde circulam produtores, críticos de vinhos, sommeliers e a classe dos enochatos (o mundo não é um mar de rosas), lá isso dá. Atenção que não vamos aqui atirar pedras a quem faz bâtonnage. Isso seria ridículo. Vamos é perceber se esta técnica contribui ou não para uma certa padronização de perfil dos vinhos brancos portugueses. Melhor dito, vamos questionar se a bâtonnage — aliada à barrica nova e à fermentação maloláctica — faz sentido.
A bâtonnage é uma técnica que consiste em agitar as borras finas presentes no fundo de uma barrica ou de num depósito de inox para que, em contacto com o vinho e por via de determinadas reacções químicas que não vamos agora desenvolver, acrescentem maior volume de boca, textura sedosa, sabores peculiares (as famosas notas de manteiga), alguns aromas também eles lácteos e — muito importante — protecção contra a oxidação do vinho ao longo do tempo. Como a agitação se popularizou em França por via de um bastão que se introduzia na barrica (bâton), ficou conhecida a nível mundial como bâtonnage, embora a técnica já fosse praticada no tempo dos romanos.
Durante o evento de lançamento em Portugal da distribuidora brasileira Clarets, cujo portfólio é sustentado com vinhos de nicho de produtores franceses menos badalados, o sommelier de serviço, Pedro Ramos, terminava a apresentação de cada vinho (e foram muitos) nos seguintes termos: “com bâtonnage” ou “sem bâtonnage”. Quando o jantar caminhava para o fim, Pedro Ramos (brasileiro e conhecido no meio como Pedrones) adaptou o discurso desta forma: “Este produtor não brinca de bâtonnage.” Portanto, é plausível que, de agora em diante, os consumidores venham a ser confrontados com esta conversa de vinho ou sem bâtonnage.
A bâtonnage começou a ser prática regular em Portugal para os vinhos brancos a partir do processo de modernização recente do sector, que se iniciou nos anos 80 do século passado. A ideia de tornar os vinhos brancos mais volumosos, sedosos e longevos tanto se destinava ao mercado interno (desconhecedor deste perfil de vinhos) como aos mercados externos, onde era preciso competir por imitação de práticas francesas que faziam escola em todo o mundo.
Adriano Miranda / Arquivo do PÚBLICO
Sucede que, associado à bâtonnage, estava o uso de barricas de fermentação e estágio (barricas de carvalho novas de 225 litros) e a prática das fermentações malolácticas (transformação do ácido málico em ácido láctico), que tinham por objectivo tornar os vinhos menos ácidos, mais aveludados, mais estáveis e, no prolongamento da bâtonnage, reforçar as tais notas de manteiga e pastelaria.
Vinhos fotocópia
Se a fermentação em barrica, a bâtonnage e a fermentação maloláctica são técnicas que podem funcionar separadamente (e há quem pratique o método), usá-las todas para a produção de um vinho passou a ser, para muitos produtores, uma receita-padrão do Douro, no Alentejo, no Tejo, em Lisboa ou Setúbal, estivéssemos perante um vinho da casta Arinto (ácida) ou da casta Fernão Pires (pouco ácida).
E o que é que resultou desta prática? O lançamento de vinhos muito aproximados em termos de perfil e, nalguns casos, aquilo a que chamamos vinhos fotocópia. Pior ainda, tais vinhos, em prova cega, tinham — ainda têm — uma incapacidade acentuada para expressarem a sua região de origem, coisa que atenta contra o espírito do conceito de denominação de origem protegida (DOP). Muito pior ainda, a partir de um segundo copo, estes vinhos — que viram o álcool crescer ao longo do tempo — tornavam-se enjoativamente adocicados, amanteigados, chatos e pouco gastronómicos. Dirk Niepoort arranjou-lhes um nome perfeito: “Vinhos pesadelo.”
Claro que uma coisa é o efeito destes vinhos-padrão em enófilos preocupados com o conceito de terroir e outra é o comportamento da generalidade dos consumidores que bebem vinho como quem bebe refrigerantes e que ficam aborrecidos se alguém lhes mudar de perfil em função dos anos climáticos. Para estes, a barrica nova e de pequeno formato, leveduras científicas e internacionais, a bâtonnage e fermentações alcoólicas garantem um padrão imutável, seguro e descomplicado. Em rigor, são estes consumidores que pagam as contas das adegas.
Ora, tanto se extremou este comportamento padronizado que alguns produtores se viram obrigados a abandonar a receita, procurando substituir protocolos por práticas que valorizem o carácter regional e identitários dos seus vinhos.
Enólogo em diferentes projectos entre a Bairrada, o Dão e o Douro, Paulo Nunes diz-nos que sempre fugiu às notas de manteiga “pelo facto de tornarem os vinhos parecidos uns com os outros”, pelo que a bâtonnage é técnica que não pratica de todo. “Quanto à fermentação maloláctica — e no caso da Casa da Passarela —, não me preocupo muito. Para uma mesma colheita que está em diferentes barricas, o que acontece é que numas a maloláctica ocorre e noutras não. No final, faço o lote com os vinhos neste estado e encontro o equilíbrio que quero.”
Mas, quanto à estabilidade dos vinhos no tempo, a bâtonnage é ou não importante? Responde Paulo Nunes: “Em vez de deixar o vinho nas borras finas e andar a levantá-las de 15 em 15 dias, prefiro deixar o vinho sobre as borras totais e arriscar um certo efeito redutor no vinho — aromas potencialmente desagradáveis — que, com o tempo (dois ou três anos), me vão melhorar a capacidade evolutiva dos meus vinhos. Prefiro arriscar inicialmente para ganhar mais à frente e nunca ter vinhos a cheirar manteiga. Até porque a bâtonnage promove uma evolução estanque e em bloco dos vinhos, enquanto a redução me dá a evolução natural que desejo num vinho”.
Recordando que a bâtonnage e a fermentação maloláctica fazem sentido na Borgonha, onde vinhos da casta Chardonnay têm níveis de acidez muito elevados (não é o que se passa em todas as regiões), o enólogo da Passarela realça que tais técnicas — assim como a utilização de leveduras de fermentação universais ou o véu nas barricas (película de leveduras que cobre o vinho) — têm a capacidade de anular a casta, o solo e o clima onde nascem os vinhos.
Barricas de grande formato
Pela mesma bitola anda Bernardo Cabral (Vicentino, Picowines, Murga e outros vinhos), que, em vez de se preocupar com a bâtonnage, prefere o trabalho do vinho nas barricas de grande formato ou, preferencialmente, em balseiros. “Eu pratico cada vez menos a bâtonnage. Numa primeira fase, um mês, posso dar alguma ‘porrada’ no vinho, mas depois deixo-o estar sossegado nas borras. A bâtonnage dá volume e estabilidade aos vinhos, isso é certo, mas eu procuro as condições para isso no trabalho de viticultura e no volume das barricas. Notas minerais e de pólvora eu gosto, amanteigados, não. Por exemplo, por que raio haveria eu de querer sabores lácteos num vinho do Pico? Isso não faz sentido. O que eu quero é que o vinho realce a salinidade e a mineralidade do basalto. Ponto.”
Enólogo e professor na Bairrada, José Carvalheira reconhece que hoje há uma “notória procura por vinhos mais frescos e elegantes, pelo que a acidez é um factor determinante”, mas defende que “o levantamento das borras é importante para a estabilidade e longevidade do vinho. As borras — ou seja, as leveduras mortas em suspensão — têm de facto um efeito antioxidante. Imagine um cenário em que coloco um mesmo vinho acabado de fermentar em duas cubas separadas. No vinho da cuba A eu faço bâtonnage de 15 em 15 dias; no vinho da cuba B eu não faço bâtonnage alguma. Pois eu garanto-lhe que este último, ao fim de um ano, vai parecer um vinho com um ano, enquanto o vinho A vai parecer um vinho com seis meses de vida — um vinho bastante mais jovem. Aliás, não nos esqueçamos de que, em Champagne, todos os vinhos-base passam pela técnica da bâtonnage, em especial aqueles que servirão para a produção de champanhes de assemblage (vinhos com diferentes colheitas numa mesma garrafa)”.
Dito isto, José Carvalheira é um praticante moderado da bâtonnage, assim como um defensor acérrimo da identidade territorial dos vinhos. “Um dos nossos problemas é andarmos sempre a imitar o que os outros fazem nas regiões clássicas, aquelas que, como as regiões francesas, não se interessam muito pelos conceitos de tendências e de modas.”
Manuel Roberto / Arquivo do PÚBLICO
Para rematar, Diogo Lopes (AdegaMãe, Herdade Grande, Kranemam ou Quinta dos Frades) salienta que “é ridículo usar-se a bâtonnage à laia das regras do HCCP [em português traduzimos por Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controlo]”. “Mas não nos podemos esquecer de que todos os grandes brancos do mundo fazem bâtonnage, porque isso dá elegância aos vinhos. Se eu quero que os meus vinhos brancos se destaquem pela bâtonnage? Claro que não. Eu, enquanto enólogo, não posso é ser radical. Tenho de afinar a técnica da bâtonnage região e região e casta a casta, sendo certo que não pratico, num mesmo vinho, bâtonnage e fermentação maloláctica. Isso não.”
Moral da história, precisamos de mais bom senso e menos imitações; mais identidade e menos cosmopolitismo vínico; maior arrojo e menor seguidismo. Em nome do carácter dos diferentes perfis dos vinhos brancos portugueses. É um bocadinho como dizia sobre o Oscar Wilde sobre outras matérias: “Sê tu próprio, todos os outros já existem.”
