Portugal e a antiguidade dos sefarditas. Uma peça identitária fundamental

É longa, possivelmente de mais de dois milénios, a presença judaica no que hoje é o território português. Inevitavelmente, esta espessura histórica teria de marcar de forma muito clara as populações que hoje habitam esse mesmo espaço, dando material para o campo identitário.
Contudo, o caminho do tempo não foi simples e linear e, no Portugal contemporâneo, essa inevitável memória não é nada pacífica. É um desconforto que radica numa dificuldade em definir se os judeus sefarditas somos “nós” ou se são “eles”, vindo de séculos de perseguição que tentaram apagar os traços identitários do judaísmo sefardita da nossa cultura.
Percebemos esta tensão no campo do adagiário. Como que num inconsciente coletivo, os ditados populares são uma marca do que se consolidou ao longo dos séculos como perceção e representação. “Trabalhar que nem um mouro” ou “fazer judiarias” são dois exemplos de como a cultura popular portuguesa consignou chaves de intolerância na memória coletiva, uma em relação aos muçulmanos, outra aos judeus.
Socialmente, um provérbio é a imagem de um tempo longo, de um tecido social com pouca mudança. O caso do judaísmo é, possivelmente, o caso mais significativo em Portugal. Se o “fazer judiarias” revela uma imagem negativa, um outro adágio, “andar com o credo na boca”, mostra como o medo dos critpo-judeus em serem apanhados sem saber a oração do Credo, não conseguindo provar que eram bons cristãos, passou para o tecido social, sem mácula da minoria supostamente indesejada e caricaturada – saber o Credo por forma a recitá-lo imediatamente, passou a ser imagem de um medo endémico numa população habituada a inquisições e polícias políticas. Neste caso, o todo do tecido social irmanou-se com o perseguido, com a minoria, com o “outro”.
De facto, se há campo da nossa memória coletiva que com alguma dificuldade conseguimos compreender, ele encontra-se na relação que os judeus sefarditas criaram com o território peninsular, mais propriamente com o português. Dois fenómenos correm paralelos num rio lodoso; por um lado, muito pouco se tem estudado sobre a antiguidade da presença dos judeus na Ibéria, pressentindo-se, apenas, que ela será milenar; por outro, de onde virá, como se formou essa estreita relação entre os judeus e Sefarad, uma mítica terra, uma mítica era, um mítico espaço de que resultou, mesmo após a conversão forçada, uma relação e uma proximidade simbólica fortíssimas?
Esta ligação, tantas vezes comprovada, por exemplo, no facto de em algumas sinagogas, como em Amesterdão, ainda se recitarem orações em português, vários séculos depois da fuga, foi um dos motores e justificativas para a Lei que em 2013 foi aprovada, por unanimidade, para permitir o acesso à cidadania portuguesa por parte dos descendentes dos sefarditas fugidos à Inquisição.
Apesar de muitas vezes perseguidos no início da Idade Média, os judeus peninsulares encontraram na Ibéria, até à passagem do século XIV para o XV, um espaço de significativa liberdade, quer religiosa, quer de ação. Foi este o fundo que resultou, ao longo dos séculos, na construção quase mítica da ideia de Sefarad, sempre associada a um espaço de profunda identificação e significativa felicidade.

Sinagoga Sefardita, na judiaria de Castelo de Vide.
Desde muito cedo, não sabemos quando, esta realidade designada por «Sefarad» foi identificada com a Península Ibérica (a palavra Sefarad surge no texto bíblico de Abdias, versículo 21, um texto do século VI a.C.). Não podemos saber desde quando, de facto, existiram judeus no território peninsular, mas podemos dizer, com certo grau de verosimilhança, que isso terá acontecido muito cedo, logicamente antes do domínio romano, aquando da grande expansão comercial dos fenícios.
Os fenícios, com as suas armadas preenchidas também com hebreus, pululavam numa época de primeira globalização em que a moeda e o ferro traziam uma rápida e brusca homogeneização de gostos e práticas culturais. A chegada dos primeiros hebreus deve estar relacionada, ou com a vinda de comerciantes fenícios logo no início da Idade do Ferro, ou com a proximidade, mais tarde, ao contínuo de dominação cartaginesa do Norte de África, onde as populações semitas dominavam, dominando também todo um modo de vida em torno do comércio. É o próprio texto bíblico a mostrar que o hebreu Rei Salomão organizara armadas com o Rei de Tiro para comerciar na Península Ibérica (1 Rs 10, 22). Estaríamos, provavelmente, entre os séculos X e IX a.C., quando os primeiros hebreus chegaram a terras, muito depois, apelidadas de portuguesas.
Com o advento do domínio romano, a presença judaica avoluma-se e, antes da chegada do Cristianismo, já existiriam grandes comunidades judaicas em várias regiões da Ibéria. O grande difusor do Cristianismo, Paulo de Tarso, é quem nos confirma essa realidade, quando afirma a vontade de vir evangelizar a este canto do mundo mediterrânico – S. Paulo deslocava-se sempre a cidades com grandes comunidades judaicas.
Afirma o apóstolo na sua Carta aos Romanos (Rm 15,23-24, 28):
“Como não tenho mais nenhum campo de acção nestas regiões, e há muitos anos que ando com tão grande desejo de ir ter convosco, quando for de viagem para a Hispânia… Ao passar por aí, espero ver-vos e receber a vossa ajuda para ir até lá, depois de primeiro ter gozado, ainda que por um pouco, da vossa companhia… Portanto, quando este assunto estiver resolvido, e lhes tiver entregado o produto desta colecta devidamente selado, partirei para a Hispânia, passando por junto de vós.”
Para a mesma época, a arqueologia também nos valida esta informação. Pela mesma época, com datação da primeira metade do séc. I d.C., foi encontrado em Mértola um grupo de onze moedas cunhadas na Judeia, atestando as trocas comerciais entre as duas regiões.

Pedra de anel com símbolos judaicos (Museu Cidade de Ammaia).
Uma pedra de anel, provavelmente proveniente da cidade romana de Ammaia, datado do séc. II d.C., e hoje em depósito no Museu Nacional de Arqueologia, constitui um dos testemunhos arqueológicos mais antigos para a datação da presença judaica, não só em Portugal, mas em toda a Península Ibérica.
Anteriores em Portugal, mais de um milénio antes de haver Portugal. Anterior em alguns séculos ao Cristianismo, o judaísmo sefardita é parte sem a qual é impossível compreender Portugal. Atores fundamentais na época da fundação do reino, foram imprescindíveis na construção da expansão dos séculos XV e XVI. Pena que a perseguição tenha caído sobre o reino e tenha destruído a riqueza cultural antes construída.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. As opiniões dos autores representam as suas próprias posições.]
