Férias meditativas


Começo a apreciar este Governo, embora não esteja a apreciar este Governo. Esta declaração esquizofrénica requer explicação, mas primeiro vou dar uma volta. Com licença:
Suponho que não há quem não seja (tirando eu e um ou outro ocasional maduro) a favor da justiça social e da diminuição das desigualdades.
Deixemos em paz a justiça social, à qual cada um dá o conteúdo que quiser, mas sempre se resumindo nisto: fulano teve ou tem vantagens materiais sobre mim, uma grande injustiça, de modo que devo ser compensado e os meus filhos também no caso de não lhes ter podido dar vantagens sobre os filhos dos outros.
Se a diminuição da desigualdade é um bem, a igualdade é o maior bem que se pode obter. Mas como não há maneira de garantir que, na imensa variabilidade das competências, circunstâncias e interesses, todos atinjam os mesmos resultados materiais, haverá que pilhar os mais bem sucedidos a benefício dos restantes.
Nos bons tempos do marxismo não havia mistério: de cada qual segundo a sua capacidade (isto é, o que produzes não é teu), a cada qual segundo as suas necessidades (isto é, as que podem ser satisfeitas). A coisa ruiu porque implicava pessoas que não existem, aquelas que se esforçam a benefício não de si mesmas e dos seus filhos, mas da comunidade. E como as que existem são as que sempre existiram, com o tempo os regimes ficaram igualitários, mas com uns cidadãos mais iguais do que os outros; e o processo da criação de riqueza travou. Ainda há quem defenda este modelo falido e, por mim, são pessoas que encaro com ternura: quando ainda tinham poder, e portanto representavam um perigo, eu era novo e agora não sou. O perigo passou mas infelizmente também os anos, e de toda a maneira vejo com uma certa simpatia pessoas com ideias disparatadas; e, se se reclamarem de superioridade moral, acho-as até cómicas.
Quer dizer que a defesa explícita da igualdade absoluta na riqueza desapareceu; mas ficou a retórica e esta tem consequências até mesmo para aquelas pessoas exornadas de intelectos brilhantes e cultura histórica assinalável: a uma ouvi ser um atentado à humanidade a existência de magnatas americanos que têm riquezas superiores às do PIB de muitos países.
Têm sim senhor, e dificilmente teriam se não fossem americanos. O que é surpreendente é que não se ligue uma coisa à outra e não se perceba que é precisamente o culto da diferença e não da igualdade que explica o sucesso do modelo americano, em conjunto é claro com outros factores. Esses trilionários andam agora de faca nos dentes a investir em inteligência artificial sem que ninguém esteja certo de que seja uma aposta de sucesso, e menos ainda de que haja espaço para todos. Enquanto isso, a Europa social-democrata produziu já regulamentações daquela IA e os defensores da legislação, que são legião, e os críticos, que são menos, vão ventilar as suas divergências para as redes sociais… que são americanas porque o génio europeu está ocupado a produzir teorias, revoluções, regulamentações, redistribuições e perdigotos.
Para já, a Europa pode gabar-se da superioridade dos seus SNS, dos seus modelos sociais que se traduzem em férias pagas com muitos mais dias do que as americanas, protecção contra despedimentos e um imenso etc. que a faz olhar com desdém para o modo de vida americano. Excepto que a América, e a China, crescem muito mais do que a Europa, ano após ano, o que fará com que algures num futuro não muito distante o pobre americano seja tão rico como o médio europeu. Quem quer tudo e o seu contrário acaba por ficar mais do lado do contrário.
E então, que tem isto a ver connosco? Tem que nós temos um governo social-democrata, o que seria um mal com remédio, mas um eleitorado que também é, o que é difícil tenha emenda. O ministro da Reforma vai reformar, mas sem despedir ninguém, credo; a da Saúde quer acabar com aldrabices no apoio à amamentação para além dos dois anos dos infantes, cai o Carmo e a Trindade (a misturada disto com o necessário apoio à natalidade é um equívoco – quem tem de fazer isso é quem beneficia, isto é, a comunidade, não as empresas, e os apoios necessários devem ir muito além dos que existem); o da Educação quer reformar uma estrutura vetusta, suspeita e provavelmente endogâmica, e não só se vê nisso um imenso e atrevido passo, como gente de representação apresenta a coisa, sem se rir, como um ataque à ciência. Também quer, o pobre homem, que os organismos que têm por missão dar números sobre Educação deem números fiáveis, um evidente exagero.
Eu destes escândalos recentes do Governo gosto, da dimensãozinha modesta deles não. Voltando ao princípio, que não sou desses que começam por uma ponta e a páginas tantas já não sabem onde estão com a cabeça: estes tímidos começos vão na direcção certa mas de passos grandes não estou à espera.
Sucede porém que o Tribunal Constitucional acaba de dizer (creio, fui ler o Acórdão, mas às tantas os olhos lacrimejavam de cansaço e a cabeça estava a começar a zunir por causa de tantos nós cegos que se acumulavam nas meninges, razões pelas quais desisti) que quem cá está manda vir quem diga que é filho e, parece, a mulher com quem estava casado (não apurei se isso também se aplica às outras, no caso de ser casado com várias), além dos pais, tudo provado com documentos dos países de origem, além de uma extensa lista de outras correcções, todas militando no mesmo sentido: o que está está muito bem, na realidade não são precisas alterações nenhumas. Todavia, o TC não entende necessário, ao contrário do que pretendia o Presidente Marcelo, que para alterar as leis que regulam estas matérias fosse necessário ouvir cerca de 17.000 entidades, assim se garantindo a democraticidade e a entrada de mais algumas centenas de milhar antes de acabar a audição. Isto e muito mais, com tanta minúcia e tanta complicação inacreditavelmente prolixa que ninguém vai ler até ao fim, qualquer imigrante que tenha advogado poderá contestar tudo e o seu contrário e a Agência encarregada de regular o assunto fará o que lhe der na cabeça, certa de que encontrará sempre argumentos a favor nos dias ímpares do mês, e contra nos restantes.
Sobre este assunto há muitíssimo mais para dizer, mas o artigo não é sobre imigração, mas sim sobre o pendor reformista do Governo. E aqui cabe tirar o chapéu porque comprar uma briga com o Presidente Marcelo, a personificação do consenso dissolvente, do porreirismo e das reformas de faz-de-conta, não é coisa pouca. Existe um problema de imigração, o Governo quer resolvê-lo e Marcelo quer, como sempre quis, a mesmice do atoleiro e uma fotografia com um coraçãozinho em todas as salas de todas as casas do país.
Antes desta parte gaga do Acórdão tinha escrito, para acabar:
É o que temos: a Europa perde lugar no mundo e nós com socialistas perdemos lugar na Europa e, com social-democratas, talvez o mantenhamos. Esta diferença que nos faz originais quer dizer um de centro-direita e outro de centro-esquerda. O centro, como bem sabemos, é o lugar geométrico de coisa nenhuma.
E agora acrescento que Marcelo baralha as contas porque me esqueci dele, que é um resquício dos tempos de Costa: muita parra e nenhuma uva.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.