PRR 2021-2026: uma oportunidade perdida na saúde?

Quatro anos após o arranque da famosa “bazuca”, Portugal arrisca-se a perder uma oportunidade única de tratar alguns dos males do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A promessa era clara: usar 2,1 mil milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para reforçar os cuidados de saúde primários e hospitalares, os cuidados continuados e paliativos e a saúde mental, modernizar infraestruturas e equipamentos e investir decisivamente na digitalização do setor. A realidade é outra – a execução dos fundos da saúde é lenta, fragmentada e insuficiente para alcançar resultados expressivos até meados de 2026.
A saúde é dos setores com pior desempenho no PRR. Se Portugal já gastou cerca de 39% dos 22,2 mil milhões de euros disponíveis no PRR, a saúde não vai além dos 23%. As notícias sobre a execução na saúde vão sendo publicadas a conta-gotas, mas apenas 379 milhões de euros chegaram, efetivamente, às entidades executoras.
O PRR é uma gota no oceano do gasto público em saúde, mas essencial para atacar alguns dos problemas crónicos do SNS. Este financiamento destina-se a investimentos adiados por falta de verba. Temos centros de saúde degradados, hospitais envelhecidos, equipamentos obsoletos e uma digitalização incipiente.
A Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR considera que a situação da execução na saúde é crítica, especialmente no que respeita a investimentos nos cuidados de saúde primários, continuados e paliativos. Os programas de modernização tecnológica do SNS e o Sistema Universal de Apoio à Vida Ativa também precisam de maior acompanhamento para garantir a concretização. A única ação considerada alinhada com o planeamento é a dos hospitais na região de Lisboa, graças à aquisição de equipamento para o Hospital de Sintra e à reprogramação dos outros investimentos hospitalares para junho de 2026.
Falta executar a maioria das empreitadas nos centros de saúde, hospitais e nas redes nacionais de cuidados continuados e paliativos. Das 557 obras previstas em centros de saúde, hospitais e unidades de cuidados continuados, apenas 67 estão concluídas e 47 em curso. Dos 676 milhões para os cuidados de saúde primários (expansão de unidades móveis e centros de saúde, modernização operacional e reforço da capacidade local), 321 milhões para reforçar equipamentos e infraestruturas hospitalares e 235 milhões para as redes de cuidados continuados e paliativos, apenas uma pequena parte foi paga. Foram adquiridos 772 veículos elétricos, mas, por exemplo, a maioria das 81 viaturas entregues à região do Algarve continuam paradas por falta de postos de carregamento, também financiados pelo PRR.
A situação na área da saúde mental, uma prioridade no pós-pandemia, também é considerada preocupante. Apenas foi utilizada uma fração dos 88 milhões para a reforma da saúde mental. Encontram-se por criar 500 lugares em estruturas residenciais para a desinstitucionalização. Falta iniciar uma de quatro novas unidades de internamento em hospitais gerais. Das três unidades de internamento forense planeadas, cada uma com o valor de 5,7 milhões de euros, encontra-se atrasada a requalificação de duas. Apenas uma de três unidades residenciais forenses de transição para a comunidade está concluída.
A digitalização na saúde avança a passo de caracol na prometida interoperabilidade de sistemas, RSE (Registo de Saúde Eletrónico) acessível, e-prescrição mais ágil, telemedicina funcional e plataformas mais amigáveis para utentes e profissionais. A conclusão das atividades está três anos atrasada, só tendo sido pago cerca de um terço dos 300 milhões de euros disponíveis nesta área. Por exemplo, a operacionalização do RSE aguarda a publicação de normas europeias sobre diagnósticos comuns e cifrados. Entretanto, persistem sistemas incompatíveis, falhas de comunicação entre unidades e processos administrativos arcaicos que dificultam a vida a utentes e profissionais.
A ladainha dos motivos da fraca execução no setor da saúde é a mesma de sempre: falta de visão de longo prazo; burocracia excessiva, com processos de contratação pública lentos e pouco adaptados a projetos urgentes; concursos desertos porque os preços de referência estão desajustados face ao mercado; e, entre outras razões, capacidade técnica limitada. Tudo isto num contexto de instabilidade institucional – incluindo a criação da Direção Executiva do SNS e das Unidades Locais de Saúde e a extinção das Administrações Regionais de Saúde – em que se espera que múltiplas entidades centrais e locais concretizem investimentos muito diversos.
Que remédios podem ainda assegurar bons resultados, em tempo útil? Eis algumas medidas urgentes: priorizar os cuidados primários, continuados e paliativos e a saúde mental, onde a carência é mais visível e o retorno social dos investimentos é maior; reforçar as equipas técnicas da CNA, Ministério da Saúde e instituições responsáveis pela execução do PRR, dando-lhes capacidade para planear, aprovar, executar e acompanhar múltiplos projetos complexos; descentralizar decisões e dar autonomia a quem está no terreno, evitando entraves administrativos; e rever os processos de contratação pública para adequar preços e acelerar concursos.
Os investimentos do PRR em infraestruturas e equipamentos do SNS são indispensáveis, mas não são suficientes. A Comissão Europeia recomendou ao Governo que acelere a execução do PRR na área da saúde, mas nota que o SNS continua a enfrentar escassez significativa de profissionais de saúde; e que, entre 2020 e 2024, apenas cerca de metade das vagas para médicos foram preenchidas, enquanto a emigração de enfermeiros é significativa. A falta de profissionais em especialidades tão críticas como a saúde familiar, pediatria, obstetrícia, cirurgia e anestesiologia é o principal problema do SNS, impondo-se ser resolvido simultaneamente com a execução do PRR.
O Estado também deve assegurar que o investimento europeu no SNS não se destina a ser entregue ao setor privado, com a desculpa de que é onde se encontram os profissionais de saúde necessários ao serviço público. Para atrair profissionais de saúde para o SNS, a Comissão Europeia recomenda simplificar e acelerar processos de recrutamento. Para os reter, o SNS precisa de lhes oferecer carreiras estabelecidas e seguras.
Poucos cidadãos sabem onde estão a ser aplicados os milhões do PRR na saúde, quais os critérios de seleção dos projetos ou qual o seu impacto real. A opacidade mina a confiança dos profissionais e da população, que continuam a enfrentar tempos de espera excessivos, falhas de resposta nos cuidados primários e falta de alternativas em saúde mental e cuidados continuados e paliativos. Garantir a transparência nos fundos do PRR passa por publicar dados claros e detalhados sobre o progresso na execução de todas as atividades, incluindo montantes atribuídos e pagos.
O tempo das promessas já passou, esperam-se agora resultados mais visíveis no terreno. Portugal tem até agosto de 2026 para executar a totalidade dos fundos do PRR. Ao ritmo atual é pouco credível que o objetivo seja atingido sem mais reprogramações ou pedido de prolongamento do prazo. Se nada mudar, o que seria uma oportunidade única ficará na história da saúde em Portugal como mais uma promessa perdida.
António Faria Vaz, Francisco Ramos, Guadalupe Simões, Isabel do Carmo, Isabel Prado e Castro, Jennifer Santos, Joana Mira Godinho, João Durão Carvalho, João Oliveira, Manuela Silva, Mário André Macedo, Paulo Salgado Membros do Grupo de Saúde da Associação Causa Pública
Os autores escrevem segundo o acordo ortográfico de 1990
