​EUA: Juíza trava deportação de crianças migrantes à última hora

Uma juíza federal norte-americana suspendeu este domingo a deportação de um grupo de crianças migrantes da Guatemala, algumas das quais já se encontravam a bordo de aviões, após um recurso de emergência apresentado durante a madrugada por advogados de defesa.

O episódio dramático fez lembrar outras ações judiciais de última hora contra deportações durante a administração Trump.

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Segundo o National Immigration Law Center (NILC), uma organização de defesa dos direitos dos migrantes, o pedido de bloqueio da remoção de 10 menores não acompanhados, com idades entre os 10 e os 17 anos, foi submetido ao Tribunal Distrital de Washington, D.C. pouco depois da 1h00 da manhã (hora local).

A juíza Sparkle Sooknanan revelou que foi acordada às 2h35 da manhã para ser informada do caso e realizou uma audiência de urgência, rara num fim de semana prolongado devido a feriado nos EUA. Sooknanan emitiu uma ordem temporária de restrição que impede a deportação das crianças durante 14 dias.

Posteriormente, a magistrada alargou a medida a todos os menores não acompanhados da Guatemala, atualmente sob custódia do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (HHS).

Segundo a queixa apresentada, o número total de crianças afetadas pode ascender a várias centenas.

A decisão representa um novo embate judicial contra as políticas de deportação da era Trump, num momento em que se volta a discutir a proteção de menores migrantes nos EUA.

O lamentável declínio da leitura

Recordando o “Colloque Lippmann” de Paris, em 1938, e alertando para o recente declínio do prazer da leitura.

  1. Na quinta-feira 21 de Agosto, a primeira página do Financial Times de Londres continha um título a três colunas (e duas linhas) anunciando: “Two-decade survey tells story of how Americans lost their interest in reading”. Dois dias depois, no FTWeekend de 23/24 de Agosto, o mesmo tema era tratado em Editorial (“The FT View”) sob o título “The lamentable decline of reading” (p. 8).Basicamente, os dois textos citavam um estudo conjunto de investigadores da Universidade da Florida e do University College London segundo o qual “ler por prazer nos EUA declinou em mais de 40% ao longo dos últimos 20 anos.” Por “leitura por prazer” os investigadores entendem a “leitura de livros, jornais ou revistas, impressos ou digitais” – por contraste com as chamadas “redes sociais” ou/e breves vídeos digitais.
  2. O fenómeno não é exclusivo dos EUA. Naquela mesma semana, na Dinamarca, foi anunciada a abolição do IVA de 25% no preço dos livros – com o objectivo de contrariar “a crise na leitura” que tem sido observada no país. Por contraste, recorda ainda “The FT View”, o Presidente Donald Trump “lamentavelmente assinou uma ordem executiva terminando com o apoio federal às bibliotecas.”
  3. Por incrível coincidência, fora publicado poucas semanas antes (em Julho) uma nova biografia intelectual de Walter Lippmann (1889-1974), um dos autores americanos com maior influência intelectual no século XX – quando atingia semanalmente milhões de leitores através das suas crónicas, reproduzidas e muitas vezes traduzidas em jornais e revistas de inúmeros países (além de ter escrito duas dúzias de livros).O autor desta biografia, Tom Arnold-Forster, da Universidade de Oxford, (Walter Lippmann: An Intellectual Biography, Princeton/Oxford, 2025, 356 pp.) recorda que, a 26-30 de Agosto de 1938, teve lugar em Paris o famoso “Colloque Lippmann”. Reuniu autores já na altura reconhecidos como Raymond Aron, Friedrich Hayek, Ludwig von Mises, Michael Polanyi, Wilhelm Ropke, Louis Rougier, Jacques Rueff e Alexander Rustow, entre outros.

    O ponto de partida daquele encontro de distintos intelectuais euro-atlânticos tinha sido o livro de Lippmann The Good Society, inicialmente publicado em 1937 (e desde então inúmeras vezes re-editado, incluindo em 2017). Aí se denunciavam os totalitarismos – comunista, fascista e nazi – como inimigos da Boa Sociedade, representada pelas democracias liberais e economias de mercado do Ocidente. Aí foram lançadas as bases intelectuais daquilo a que o austríaco (mais tarde também inglês) Karl Popper (então a caminho do exílio na Nova Zelândia) chamaria A Sociedade Aberta e os seus Inimigos.

  4. Ocidente? Democracia liberal? Economia de mercado? Governo limitado pela lei? Sociedade aberta? Estes conceitos cruciais de Walter Lippmann e de Karl Popper – que foram cruciais contra o nazi-fascismo na II Guerra e depois contra o comunismo na Guerra Fria – deixaram entretanto de ser ouvidos no discurso oficial de um dos seus clássicos defensores – os EUA, (hoje protagonizados por Donald Trump).Isto mesmo foi enfaticamente observado por Sylvie Kauffmann, diretora editorial e colunista do diário francês Le Monde, num artigo publicado no Financial Times de 29 de Agosto (“Trump is oblivious to Europe’s history”, p.
    18).
  5. Esta talvez possa ser uma razão acrescida para recordar o “Colloque Lippmann” de Paris, em Agosto de 1938. E talvez possa constituir um motivo adicional de preocupação com “o lamentável declínio da leitura”.Voltarei certamente a este assunto, designadamente a propósito de outro livro recém-publicado: The Last Titans: Churchill and de Gaulle, por Richard Vinen, Bloomsbury, 400 pp).

Festival de Videoarte Fuso premeia Lais Andrade, Vera Mantero e Jonathan Uliel Saldanha

A artista luso-brasileira Lais Andrade foi este domingo duplamente premiada no FUSO – Festival Internacional de Videoarte de Lisboa, numa edição que distinguiu também Vera Mantero e Jonathan Uliel Saldanha.

Os prémios da 17.ª edição do FUSO foram anunciados e entregues no fecho do festival, no Museu da Marioneta, em Lisboa, com Lais Andrade a receber o Prémio Incentivo DUPLACENA, que resulta da votação do público, e uma menção honrosa atribuída pela direção do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT).

Lais Andrade venceu com a obra “My Ray of Sunshine”, que aborda a memória do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas.

“A obra imagina as mensagens de voz que uma mãe escravizada poderia ter enviado à sua filha”, lê-se na sinopse.

O Prémio Aquisição Fundação EDP/MAAT foi atribuído à coreógrafa Vera Mantero e ao músico e artista visual Jonathan Uliel Saldanha, que coassinam e interpretam o vídeo “The Breaking Point”, a partir das personagens do espetáculo “Esplendor e Dismorfia”, de ambos.

De acordo com a sinopse da obra, “numa existência fechada em si própria, duas criaturas genéricas, semelhantes à fisiologia humana, exploram ciclicamente laboratórios de atividades, em busca de chegar a um qualquer entendimento”.

O Fuso – Festival Internacional de Videoarte começou no dia 26 de agosto em vários espaços culturais de Lisboa, sob o tema “Verões Quentes”, inspirado no aquecimento global e nos fenómenos climáticos extremos, mas também nos acontecimentos revolucionários e períodos políticos conturbados.

O festival realizará novamente a edição Fuso Insular, que decorrerá em São Miguel, Açores, entre os dias 23 e 26 de outubro.

A Igreja Católica, a imigração, e a imigração islâmica

1. É um assunto complexo, espinhoso, inabarcável que o polarizado discurso político e uma opinião pública, frequentemente, automática e emocional aborda de forma redutora e simplista. Invariavelmente, o ambiente cultural dos nossos dias reclama por um “sim” ou um “não”, um “sou a favor ou contra”; e se o lado da trincheira não é rapidamente escolhido, surge a crítica, a rejeição, os rótulos. Em oposição a este dualismo visceral, isto é, a limitação severa da imigração, por um lado; ou a sua autorização sem qualquer tipo de limites, por outro, propõe-se uma abordagem mais racional, mais discernida, que considera múltiplas perspectivas e circunstâncias, várias complexidades e nuances. Em 1.º lugar, temos de começar por admitir que um dos principais fatores que explica a imigração em “massa“ para o Ocidente é a nossa crise de natalidade (o “inverno demogáfico”, a que se referiu o Papa Francisco). Em 2.º lugar, é verdade que muitos nacionais não estão dispostos a trabalhar nalguns ofícios (ainda que o façam noutros países, mas muito melhor remunerados), os quais acabam por ser feitos por imigrantes. Deveremos, então, começar por fazer o “mea culpa”, reconhecendo que “a crise é nossa”. Em 3º lugar temos, com base na Doutrina Social da Igreja (DSI), a posição expressa no Catecismo da Igreja Católica (CIC), sobre a imigração (ponto 2241):

– “As nações mais abastadas devem acolher, tanto quanto possível, o estrangeiro em busca da segurança e dos recursos vitais que não consegue encontrar no seu país de origem… sob a protecção daqueles que o recebem”;

– “O imigrado tem a obrigação de respeitar com reconhecimento o património material e espiritual do país que o acolheu, de obedecer às suas leis e de contribuir para o seu bem”.

2. A Igreja aborda o tema na sua complexidade, revelando uma posição equilibrada, ponderada referindo-se tanto aos deveres das nações de acolhimento como aos deveres e obrigações daqueles que imigram. Deus fala bastante sobre “imigração” nas Escrituras: “Não maltratarás o estrangeiro e não o oprimirás, porque foste estrangeiro no Egito” (Ex 22, 21) e outras passagens (Dt 27, 19; Jr 22, 3; Ex 12, 49; etc. Mas os imigrantes também têm obrigações: “Tomai a peito o bem da cidade para onde vos exilei e rogai por ela ao Senhor, porque só tereis que lucrar com a sua prosperidade” (Jr 29, 7) e outras passagens: (1Pd 2, 11; Tt 3, 1; Pr 22, 28;  1Pd 2, 13-16). Como se pode verificar, o discurso bíblico é claro no tratamento justo e generoso que deve ser dado a refugiados e imigrantes, lembrando que os mesmos devem ser produtivos e piedosos no país que os acolhe. O legítimo direito de emigrar não é, assim, um direito absoluto. Ou seja, o país de acolhimento tem o dever de prestar assistência humanitária imediata, de acolher e integrar quem chega; mas deve ter em consideração outros âmbitos do problema, tais como, o controlo de fronteiras; o combate ao crime organizado que planeia desembarques ilegais e explora o tráfico humano; o controlo dos fluxos migratórios (qualquer que seja a sua origem); a definição de estratégias de integração, e a priorização daquelas comunidades que têm um maior potencial para o fazer. Aqueles que imigram, por sua vez, têm o dever de respeitar as leis, a cultura, os costumes, e as tradições do país de acolhimento. Ora, é exatamente aqui que se encontra um potencial foco de tensões sociais, políticas e culturais com o mundo islamismo. E porquê? Porque nas suas múltiplas especificidades e diferentes sensibilidades, existe um Islão que apesar de minoritário defende uma interpretação literal e intransigente (e intolerante) do Alcorão, e das tradições islâmicas, totalmente incompatíveis com os valores das sociedades ocidentais. E, embora a ampla maioria dos muçulmanos seja pacífica e tolerante, a pequena parcela radical pode ter um impacto político e social muito significativo, com grupos extremistas a causar revoluções e terrorismo (os exemplos estão abundantemente documentados).

3. A Igreja defende, na fidelidade ao Evangelho, a dignidade da pessoa humana: o pobre, o doente, o homem e mulher, o recém-nascido e o ainda não nascido, o jovem e idoso, e o imigrante; e respectivos deveres e direitos, nos quais se inclui, o princípio sagrado da liberdade religiosa (naturalmente, extensível aos muçulmanos). Como conciliar, contudo, liberdade e segurança? Liberdade individual e bem comum? É um desafio complexo e intrincado. Defendem vários autores, neste âmbito, que “a coisa inteligente a fazer é resgatar o princípio da reciprocidade”. Ou seja, quando um líder religioso solicita um espaço para determinado culto ou prática religiosa deve ser-lhe exigido, em contrapartida, e junto da sua embaixada, o princípio recíproco da liberdade religiosa, precisamente nas mesmas condições que o mesmo está a usufruir no país que o acolheu. É um ponto de partida interessante para se poder distinguir entre o islamismo pacífico e o islamismo fundamentalista, entre o islamismo tolerante e o islamismo que coloca em prática uma visão restritiva do Islão, com consequências na discriminação das mulheres, das minorias e na relação entre o Islão e o mundo ocidental. E um Estado de Direito tem de providenciar, para bem de todos (incluindo o dos imigrantes) os meios e recursos necessários para fazer essa distinção. E os primeiros a beneficiar com esta metodologia serão os próprios muçulmanos (ou outros), injusta e frequentemente estigmatizados por causa de minorias extremistas e violentas.

4. Quo vadis, Ocidente? O Ocidente parece ignorar os valores e princípios que moldaram a sua própria civilização e, disfarçado de tolerância, inclusão, diversidade (obsessão diversitária)… relativamente a outros valores e modos de vida, considera que defender o que de melhor tem para oferecer (o seu legado cristão) é uma violência, um fundamentalismo, uma arrogância intelectual e cultural. Ignora-se e desconstrói-se de forma suicida a dimensão religiosa que sempre o sustentou; relativiza-se a base moral colectiva que sempre o vertebrou e a partir da qual, então, se gerou uma identidade própria, um sentimento unificador de pertença, uma experiência partilhada. Todo este quadro tem vindo a contribuir para transformar o Ocidente em algo gradualmente insustentável (o resultado está à vista); numa espécie de doente ligado à máquina, paralisado, mergulhado numa crise profunda de identidade; sem clareza, sem esperança, sem futuro. Como escreveu Will Durant, “uma grande civilização não é conquistada de fora até que se tenha destruído a partir de dentro”. Também  Aristóteles nos dizia: “O que une os homens é a comunidade de ideias sobre o que é bom e o que é mau.” Quando tal visão comum se dissolve, é a própria convivência humana que se torna impraticável; quando tal visão comum se fragmenta, o que se vai gerando são, a prazo, sociedades de gueto, separadas, divididas, não sendo dignas de serem consideradas como referência; quando tal visão comum se eclipsa, significa (e na melhor das hipóteses) que elas, sociedades, coexistem e são tolerados, mas não reproduzem uma autêntica convivência. E uma mera coexistência conduz-nos, defendem vários autores, a uma espécie de “anti-comunidade” e, finalmente, a sociedades insustentáveis. Veja-se o caso americano: uma sociedade em que os negros vivem separadamente, os muçulmanos e os latinos vivem separadamente; tal como está a acontecer em França e noutros países da Europa. Nessas alegadas “sociedades,” não existe, afinal, uma verdadeira sociedade. A crescente ascensão do islamismo no Ocidente não é uma fatalidade, não é um processo “natural”; ela causada pela nossa incapacidade autodestrutiva de defender os nossos valores, as nossas tradições, o nosso legado. O antigo líder líbio Kadafi declarou: “Há sinais de que a vitória islâmica será garantida sem espadas, sem armas, sem conquistas. Não precisamos de terroristas ou homens-bomba. Os mais de 50 milhões de muçulmanos na Europa a transformarão em um continente muçulmano em poucas décadas”. Refira-se, em abono da verdade, que muitos dos ressentimentos, muita desta “revolta islâmica” se deve às tentativas imperialistas do Ocidente (utópicas e ilegítimas) de impor, precisamente, modelos pró ocidentais, capitalistas, seculares, liberais… no mundo islâmico.

5. É preciso, contudo, não cair em falsas pretensões de fazer o bem, isto é, de um “bonismo” vazio (“Bonismo” é uma espécie de “demagogia de esquerda, marcada por uma postura moralizante e orientada aos bons sentimentos (frequentemente para gratificar o próprio ego), sempre e de qualquer forma, simplificando demais os problemas e ideologizando todas as questões”). Devemos considerar, então, várias perspectivas:

– Os actos de solidariedade, o activismo humanitário deve ser discernido pela razão, nunca perdendo de vista o bem comum;

– A análise da dimensão religiosa, sempre presente nos processos de Integração, deve ser feita com critérios de realismo e de verdade, e deve resistir à tentação pouco racional de considerar “iguais” (ou diferentes) todas as religiões, e respectivas práticas religiosas, equivalendo-as de forma artificial e colocando-as todas no “mesmo saco”;

– Este, é um dever dos estados, dos governantes, e também um dever da Igreja, que não se deve envolver apenas na promoção de um pseudo “diálogo inter-religioso”, genérico, indiferenciado, sincrético;

– Para promover uma autêntica integração, a Igreja deve analisar e avaliar todas as religiões, inclusive o Islão, à luz dos princípios da Doutrina Social da Igreja;

– O Acolhimento e integração colocam problemas muito desafiadores, e a boa vontade genérica ou abstrata não é suficiente para resolvê-los.

6. É verdade que existe um islamismo pacífico, um islamismo com o qual se pode dialogar; isso é verdade. Seria injusto não reconhecê-lo, mas existe outro que não é assim. Existe um islamismo fundamentalista (em crescimento nalguns países, como a Indonésia, Paquistão, Médio Oriente, Arábia Saudita, Moçambique, Sumália,… ) cujas práticas, à luz dos valores ocidentais, são totalmente contrárias ao bem comum, tais como: a discriminação da mulher, a discriminação dos homosexuais, a mutilação genital feminina, a proibição de conversão a outra religião, o ser aceitável poder matar-se em nome da religião, a falta de respeito pelos não não crentes ou pelos crentes de outras religiões (infiéis), a eliminação dos próprios líderes islâmicos considerados “infiéis”; existe um islamismo, cujos líderes incitam à violência (patrocinados por países poderosos como a Arábia Saudita e o Catar). A situação é particularmente difícil e delicada quando se pretende promover o diálogo inter-religioso. Com quem se está a falar? O quê e quem é que eles representam? Quais os seus seguidores? Que autoridade têm sobre todo o mundo muçulmano?

7. Temos de admitir que é um facto preocupante o número significativo de imigrantes ilegais que entram na Europa; existem cerca de 45 milhões muçulmanos na Europa, dos quais, cerca de 3% são ilegais. De acordo com os principais serviços secretos, entre 15 a 25% são radicais, do que se depreende que a grande maioria não o é; são pessoas pacíficas e tolerantes. Se considerarmos, contudo, apenas 10% de radicais (uma % por defeito), estamos a falar de 4,5 milhões (legais ou ilegais) de pessoas cujo principal propósito de vida é a expansão do islamismo e a destruição dos valores da civilização ocidental. Não é este um cenário objetivamente preocupante? Não é uma realidade objetivamente crescente em vários países da Europa? E não é função dos estados proteger o seu país, proteger a coesão do seu território, e a dos seus cidadãos, nos quais se inclui a grande maioria de muçulmanos pacíficos, e tolerantes que, em busca de uma vida digna, se viram obrigados a imigrar? Este quadro, por outro lado, fomenta e potencia os condenáveis movimentos xenófobos, que promovem o nacionalismo exacerbado e a aversão ou repulsa cega, contra uma imigração maioritariamente pacífica (e necessária). Dito isto, temos de admitir, não sendo possível que todos possam ser acolhidos, que é desejável uma seleção racional, discernida, justa. Temos, finalmente, de admitir que a imigração islâmica possui características específicas, delicadas, que a tornam particularmente problemática. Reconhecer isso é um sinal de realismo e do mais elementar bom senso, não de discriminação ou de qualquer intenção persecutória. Não se trata de estigmatizar o islamismo, mas sim de observar que, objetivamente, existem conceitos e práticas decorrentes de interpretações mais literais do Alcorão, totalmente incompatíveis com sociedades democráticas ocidentais, particularmente aquelas com uma tradição cristã.

8. Estão disponíveis dados demográficos das populações europeias, de cuja análise se pode verificar que a continuidade demográfica parece não estar a ser assegurada. De acordo, por exemplo, com projecções do Instituto Americano de Pesquisa, Pew Research Center, a população muçulmana em alguns países europeus e no continente em geral pode triplicar até 2050, representando até 14% do total. Num cenário de taxas imigratórias semelhantes a 2016 (facto que até se confirmou vir a aumentar) a população muçulmana, até 2050, representará 19,7% na Alemanha, 17,2% no Reino Unido, 18% na França, 18,2% na Bélgica, 19,9% da Áustria, 17% na Noruega e os incríveis 30,6% na Suécia (mais que o triplo dos atuais 8,1%), e 14% da população da Europa como um todo, ou seja, quase o triplo dos atuais 4,9%. O governo alemão reconheceu que “a população atual de 52 milhões na Europa dobrará nos próximos anos para 104 milhões”. Espanha, tem atualmente a mais baixa taxa de natalidade da Europa, ou seja:1,1; a Itália, Grécia e Portugal têm números semelhantes. Na Rússia, há mais de 23 milhões de muçulmanos, ou seja, um 1 em cada 5 russos é muçulmano. Anjem Choudary é um dos principais líderes muçulmanos no Reino Unido, e em entrevista à ABC, afirma que, “muito brevemente, o islamismo se tornará tão forte na Europa que impedirá a entrada de infiéis em certas áreas. Prevê-se que em breve seremos tão numerosos que alcançaremos controle, segurança e autoridade em alguns lugares, onde implementaremos a lei islâmica e impediremos a entrada de intrusos. E um dia conseguiremos estabelecê-la em todo o país”.

Não! Não são dados fantasiosos de racistas, xenófobos e extremistas de direita que procuram alimentar uma mera e redutora “teoria de substituição”, conspirativa e incendiária de receios e medos infundados; como seja um qualquer plano secreto para diminuir a população branca e respectiva influência na Europa, ou de um mero propósito para substituir os brancos… e alterar a demografia, ou qualquer estratégia eleitoral para mudar o sentido de voto, agora que surgem alegadamente milhares de novos votantes, etc, etc. Não! Estes são apenas números e dados oficiais, objetivos, que sustentam projeções e estimativas credíveis (já que partem de organismos, supostamente, credíveis), os quais, nos convidam, sem cegueiras e preconceitos, a refletir e a analisar tendências e dinâmicas demográficas, fluxos migratórios e sua natureza, eventuais padrões da população, taxas de mortalidade e natalidade; tendências político-sociológicas nos diversos países, etc, etc. Para, finalmente, a partir dos mesmos, planear, gerir, criar estratégias, definir medidas, e tomar as melhores decisões políticas, sociais, económica… sempre na procura do bem comum (incluindo naturalmente o dos imigrantes, sejam eles quais forem). O ambiente de polarização generalizada que caracteriza o atual discurso público, ideologiza e empobrece o “debate”, torna-o estéril e acaba por transformá-lo num campeonato de rótulos e chavões.

9. Finalmente, o “Realismo cristão”; ele impele-nos a não cair em versões ideológicas, simplistas e redutoras do fenómeno migratório, oscilando para a esquerda ou para a direita, de acordo com o lado da trincheira previamente escolhido. No discurso público contemporâneo, essas posições ideológicas estão totalmente polarizadas, enfatizando-se bastante uma em detrimento da outra. Quando isso acontece, perde-se o equilíbrio católico. A imigração é um assunto complexo (não é apenas uma questão política ou económica); tem também uma forte componente moral. Quando sobrevalorizamos qualquer uma das suas dimensões as posições assumidas são, mais uma vez, deformadas por excesso ou por defeito. “Realismo Cristão”, significa entender que acolher o próximo não pode ser algo cego ou meramente emocional; o acolhimento e integração deve ser realista, sistemático e verdadeiro. Neste sentido, a emergência humanitária deve ser, sem exceção, estendida a todos. Já na integração, é prudente não considerar os imigrantes de forma indiscriminada, independentemente de sua cultura e religião (sejam elas quais forem). E é isto que a Europa, revelando uma lamentável falta de lucidez e coragem, está a fazer, chamando “tolerância religiosa” ao “sincretismo e indiferença religiosa”. A política deve ser tolerante e inclusiva, mas não pode tolerar o mal; ela não pode considerar igual aquilo que é diferente, não pode considerar bom aquilo que é mau, não pode considerar verdade aquilo que é mentira. O que se pretende é preservar e consolidar um cimento moral comum que sirva de base sólida, e que torne viável o processo de integração. Só com uma base comum, inerente à própria, e inegociável, dignidade humana, é que será possível um verdadeiro acolhimento e integração. Como afirmou o Papa Francisco: «A solução não é uma abertura que renuncie ao próprio tesouro. Tal como não há diálogo com o outro sem identidade pessoal, assim também não há abertura entre povos senão a partir do amor à terra, ao povo, aos próprios traços culturais”.

10. A resposta cristã à imigração não é ceder ao medo nem optar ingenuamente por soluções fáceis e inexequíveis. Fala-se muito de diálogo, e ainda bem; mas um diálogo a qualquer preço simula e mascara a verdade. E um diálogo sem a verdade, ou que não parta da verdade, não é um diálogo, é uma  corrupção, uma negociata, um truque, uma conivência. Acreditar que algumas crenças, práticas, preceitos… estruturantes do Islamismo, podem mudar, é irrealista (seria não levar a sério o Islão); seria o mesmo que pedir a um católico que passasse a defender que Jesus não é, afinal, filho de Deus; ou que Jesus, afinal, não ressuscitou. A falta de coragem para fazer este tipo de abordagem é, frequentemente, a medida da fraqueza da nossa fé. Por isso, um acolhimento autêntico, sistemático e consistente exige coragem para não abdicarmos dos valores da nossa cultura e da nossa fé, pois só assim podemos partilhá-las com liberdade, autenticidade e respeito. Fazer uma associação direta e automática entre violência e Islão é, na verdade, uma generalização grosseira e injusta. O respeito, sem demagogia, pelo Islão e pelos muçulmanos é um dever de qualquer católico. Como nos alertava Bento XVI, construir pontes entre o Islão e o Cristianismo é uma tarefa desejável e necessária mas, reflectir sobre as bases da fé e a relação da fé com a razão, tanto no mundo islâmico quanto no mundo cristão, é uma necessidade igualmente necessária e de grande actualidade.

Os emotivos (em Lagos ou em qualquer outra parte)

Terminei o meu último artigo (“Lagos de Descobertas”) com a promessa de que voltaria ao assunto das prioridades e da importância relativa da escravatura e das navegações de descobrimento dos portugueses. É claro que para um historiador ambas são importantes, tudo dependendo dos seus interesses e das investigações que tem em curso. Mas como é — ou deveria ser — para os políticos, autarcas incluídos, e para o cidadão comum? Escravatura ou Descobrimentos? Deverá ser dado à escravatura um lugar de destaque nas memórias da nossa sociedade, no ensino nas nossas escolas básicas e secundárias, e no nosso espaço público, incluindo na monumentalidade? Deverá ser-lhe dado um destaque tão grande que ultrapasse e ofusque o que tem sido habitualmente dado não apenas aos Descobrimentos, mas também aos vultos ou às realizações, heroísmos e grandezas daqueles que a linguagem do século XIX designava por “os nossos maiores”?

Os woke tendem a considerar que sim, isto é, que o foco posto na escravatura deve ser tanto ou mais luminoso e intenso do que é posto nos Descobrimentos e nos seus obreiros, e, pior do que isso, determinam ou concluem que a escravatura tinge, macula, de forma indelével e sem remissão, todo o grande acontecimento a que chamamos expansão ultramarina e colonial dos portugueses (e de outros europeus). E porque é que consideram isso? Basicamente por duas razões: em primeiro lugar pela dor e a injustiça que a escravatura transatlântica implicou, e que é absolutamente inegável; em segundo lugar, pela hiper-emotividade de muitas almas sensíveis que a observam e a julgam a partir já não das circunstâncias e práticas do tempo, mas sim das comodidades, das igualdades e das declarações dos direitos humanos do presente. Se a primeira motivação é compreensível, a segunda, isto é, o presentismo e a emotividade, é totalmente inadequada. Trata-se, aliás, frequentemente, de uma emotividade telescópica que é maior do que a revelada face a muitas injustiças do presente e do que a que foi sentida pelos que, no século XIX, em terra e no mar, combateram contra a escravatura e lhe puseram termo, o que mede bem a dimensão do disparate.

Esse disparate é muito visível na ideologia woke. Os exemplos são às centenas, mas recorro aqui ao último de que tive conhecimento. Há dias, sendo entrevistado no Expresso, o realizador Manuel Pureza, após ter elogiado um livro de Grada Kilomba, considerando-o “uma bíblia para quem quer desmontar as construções da língua e passar a dizer pessoas escravizadas em vez de escravos”, assumiu que gostaria que se ensinasse essa terminologia às crianças e manifestou o desejo de que se transmitisse não só a elas, mas a todos nós “que a (nossa) História não foram Descobrimentos, foi outra coisa”. O entrevistador, Bernardo Mendonça, intervindo, então, e querendo ajudar à festa, lançou para o ar a palavra de ordem de um artista brasileiro — “não foi Descobrimentos, foi matança” — e Manuel Pureza concordou com ela.

Matança, pergunto eu? A sério? Matança como, por exemplo, as conquistas de Gengis Khan, de Tamerlão ou da extensa lista de abomináveis matadores de que o passado está feito? O nível de desconhecimento que as pessoas têm de uma coisa que se chama história comparada nunca deixa de me surpreender. Não vou tentar contrariar as firmes convicções do realizador Manuel Pureza, que poderá informar-se por si só, se quiser. Aqui quero apenas sublinhar que este senhor, como muitos outros da sua corrente ideológica, pretende que seja dito às pessoas e ensinado nas nossas escolas que os Descobrimentos foram uma matança.

É claro que uma entrevista é pouco para avaliar alguém, mas não é de excluir que Manuel Pureza seja um emotivo — muitos woke são-no —, que põe o que tem que ver com a escravatura, a conquista militar, o colonialismo, fora dos seus respectivos contextos e de qualquer proporcionalidade razoável. Mas nessa sua eventual posição Manuel Pureza  tem muitos antecessores. Já há décadas que encontramos no nosso país aquilo que, nesta área e para além da emotividade, caracteriza o wokismo: a desmesura, a desproporção. Em 1981, por exemplo, referindo-se a uma coleira imposta a um escravo, coleira que estava no agora chamado Museu Nacional de Arqueologia, em Belém, e sobre a qual já escrevi, disse José Saramago o seguinte no seu livro Viagem a Portugal: “(a coleira) andou no pescoço dum homem (um escravo preto), chupou-lhe o suor, e talvez algum sangue, de chibata que devia ir ao lombo e errou o caminho”. A coleira é “a prova de um grande crime”. Por isso “se é preciso dar-lhe um preço, vale milhões e milhões de contos, tanto como os Jerónimos aqui ao lado, a Torre de Belém, o palácio do presidente, os coches por junto e atacado, provavelmente toda a cidade de Lisboa”.

Este exagero visa explicitar a indignação, a execração perante a escravidão dos negros, e tem obviamente uma carga e uma mensagem moral. Trata-se de um discurso hiperbólico que fica muito bem numa página de literatura, na mensagem de um pregador ou de um activista, mas as sociedades humanas não se regem nem se governam segundo essa bitola emotiva e moralizante, e a História também não. Isto quer dizer que, em bom rigor, no mundo real, a coleira do escravo não tem tanta importância como, por exemplo, Lisboa. Aliás, nem sequer no estrito campo das emoções o tem, pois há e havia em Lisboa, milhares de dramas equivalentes ou ainda mais impressionantes. E não é preciso saber muita História para estar ciente disso, ou pelo menos para o intuir. Uma vez que estamos no campo da literatura bastará lembrar a toda a gente que leu esse extraordinário romance de Victor Hugo que é Notre-Dame de Paris, o que podiam ser as desgraças, os abusos e as injustiças numa cidade europeia no século XV, aproximadamente na época em que as primeiras levas de escravos africanos chegavam a Lagos.

Saramago fez uma hipérbole para fins morais. O problema é que os woke tomam essas coisas à letra, pois na sua marcada ignorância supõem que a avaliação moral, sobretudo se for de condenação, deve prevalecer e lançar o seu manto julgador e justiceiro sobre a História. Mas não é assim e é por isso que para o cidadão português comum o cemitério com restos mortais de africanos trazidos para Portugal no século XV, em Lagos, não deve ter a mesma importância nem relevância que têm os Descobrimentos. Aliás, abra-se aqui um parêntesis para dizer que a esquerda woke é especialista em fazer uma gritaria em torno de pouca coisa. Much ado about nothing, como dizia William Shakespeare. Em torno do cemitério de Lagos há todo um estardalhaço montado, fazem-se filmes, escrevem-se artigos, estruturam-se projectos de investigação. Constou, até, que o Presidente da República terá sugerido a Lídia Jorge que, no seu discurso do dia 10 de Junho, abordasse esse assunto. Mas, pergunto eu, desvendou-se algum segredo, algo que ninguém sabia ou que os portugueses andassem há séculos a esconder? Nada disso. A chegada de escravos africanos a Lagos, e a sua vida nessa terra, está narrada em assinalável detalhe nos capítulos XXIII a XXVI da Crónica de Guiné, uma obra do século XV cujo manuscrito, encontrado em 1837, em Paris, e, depois, publicado, está desde essa época ao alcance de quem queira lê-la.

Ao contrário do que se diz ou tenta fazer crer, não há verdades maliciosamente escondidas nem coisas varridas para debaixo do tapete da nossa memória colectiva. A escravatura de gente africana foi parte integrante da expansão ultramarina dos portugueses. É incontestável que foi uma parte violenta, sombria, injusta, muitas vezes cruel, da expansão ultramarina dos povos europeus, na qual Portugal teve um iniludível papel, sendo politicamente responsável pelo transporte transatlântico de 4,5 milhões de escravos negros — e não de 6 milhões como a esquerda woke e os seus académicos querem fazer-nos crer. Dito isto é importante perceber e sublinhar que a escravatura é uma parte e não o todo da expansão ultramarina e que ela não resume nem simboliza essa expansão. As coisas têm a dimensão e a importância relativa que têm. Nem mais nem menos. Entre 1963 e 1971 o historiador Vitorino Magalhães Godinho publicou Os Descobrimentos e a Economia Mundial, uma grande obra historiográfica, uma daquelas que, nos actuais tempos das teses de doutoramento feitas à pressão ou pela porta do cavalo, já não se escrevem. A escravatura foi um capítulo dessa sua grande obra. Um capítulo num total de vinte e sete. Conceda-se que, de então para cá, a investigação histórica sobre a escravatura fez grandes avanços e não custa admitir que, se republicasse agora a sua obra-prima, Magalhães Godinho triplicaria ou quadruplicaria a atenção e a saliência dadas à escravatura. Dedicar-lhe-ia quatro capítulos, suponhamos, e vinte e seis a outros aspectos da história económica dos Descobrimentos. É essa a dimensão e a proporção que devemos dar à escravatura no painel das nossas memórias sobre os séculos XV a XIX, e é bom que não percamos isso de vista porque os emotivos, tanto em Lagos como em qualquer outra parte, estarão sempre, a reboque das suas emoções e dos seus exageros, a puxar-nos muito para fora de pé.

Donald Chamberlain e Adolf Putin

Passadas duas semanas sobre a cimeira do Alasca, há três factos absolutamente claros. O primeiro refere-se ao respectivo guião: é o mesmo de 1938. Quase a papel químico.

Neste ano, na Europa central, aumentava a pressão expansionista da Alemanha nazi, procurando alargar a área de influência e o território. Em Março de 1938, absorve a Áustria, pelo Anschluss, apoiado numa população germanófona e nos partidários das ideias de Hitler. Um referendo aprovou a anexação.

A pressão focou-se, então, nos Sudetas, na Checoslováquia ocidental, onde viviam numerosos alemães há várias gerações. Estas populações de origem alemã, exprimiam aspirações de separação e reunião com a Alemanha, através de movimentos nacionalistas e um partido nazi. França e Reino Unido, campeões da “política de apaziguamento”, inquietos com a tensão e receosos de uma guerra, encorajavam Praga a aceitar as reivindicações iniciais. O Anschluss austríaco fortaleceu as exigências dos alemães da Checoslováquia.

Com a tensão no máximo, o primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, foi à Alemanha reunir com Hitler, para discutir a crise checoslovaca e selar a paz, junto com Mussolini e o primeiro-ministro francês, Daladier. Em 29 de Setembro de 1938, assinaram o Acordo de Munique. Segundo Chamberlain, ao regressar a Londres, fora
firmada a “paz para a nossa época”. O preço foi a cedência à Alemanha do território checoslovaco em questão. A Checoslováquia não participara das conversações de Munique.

Uma das raras vozes contra o Acordo de Munique – e defendendo a Checoslováquia – foi a de Winston Churchill que, poucos dias depois, no debate na Câmara dos Comuns, profetizou, apontando a Chamberlain: “Tinham-lhe dado a escolher entre a guerra e a desonra. Escolheu a desonra; e terá a guerra.”

Os alemães anexaram logo os Sudetas, de maioria alemã. Em Março de 1939, após a separação da República da Eslováquia (com um regime fantoche nazi), a Alemanha ocupou a parte checa que sobrara, como Protetorado da Boémia e Morávia. Em Setembro de 1939, Hitler ataca a Polónia, dando início à 2.ª Guerra Mundial. Em Maio
de 1940, invade a França, que acabaria ocupada – na parte Sul (Vichy), com um regime colaboracionista. A retirada de Dunquerque consegue evacuar, sob intensos bombardeamentos, entre 26 de Maio e 4 de Junho de 1940, 340.000 soldados da costa francesa (Dunquerque) para a cidade inglesa de Dover. Estava ao rubro a 2.ª
Grande Guerra, até hoje a mais violenta e trágica guerra da História da Humanidade.

A paz de Munique não chegou a durar um ano. As anexações alemãs prosseguiram, as grandes invasões começaram para oriente e para ocidente e, em menos de dois anos, França e Reino Unido, que, pela “política de apaziguamento”, tinham fugido da guerra, entregando outros, eram golpeados com violência: a França, vencida e
submetida; o Reino Unido, lutando bravamente pela sobrevivência.

Viajando rapidamente de 1938 para os nossos dias, impressionam as semelhanças: a Alemanha de Hitler é a Rússia de Putin (tal qual); o Anschluss da Áustria é a anexação da Crimeia (tal qual); a pressão sobre os Sudetas germanófonos é a mesma que sobre o Donbass russófono (tal qual); Chamberlain parece o modelo de Trump (tal qual, em modo histriónico); e a Ucrânia é empurrada para ficar como a antiga Checoslováquia (tal qual). Depois de tudo se entornar, Neville Chamberlain ficou muito desacreditado.

Ainda assim, assinou o acordo, quando ainda não havia combates e teria a ideia de os evitar. Mas imaginemos que a reunião de Munique se fizera com combates duros na Checoslováquia há anos e Chamberlain proclamasse igualmente que o acordo era a “paz para a nossa época”. Não ficaria só desacreditado; toda a gente o consideraria
um idiota chapado.

Passemos ao segundo facto absolutamente claro do Alasca: é já evidente que a cimeira foi um fracasso completo. Aparentemente sem apelo, nem agravo. O objetivo principal declarado por Donald Trump era obter um cessar-fogo. “Stop the killing!” era a repetida palavra de ordem, que, entretanto, parece silenciada. A desculpa é que iria
buscar-se um mais ambicioso “acordo de paz”, incluindo o desenho de um sistema de “garantias de segurança” para a Ucrânia. E haveria um encontro a dois entre Putin e Zelensky, ou a três com Trump, o que entraria já em preparação.

As duas semanas passadas chegam para mostrar que tudo foi uma floresta de enganos, ou de mal-entendidos, se não mesmo de genuínos embustes. A alegada conversa e suas várias desconversas públicas, no tema crucial das “garantias de segurança”, é bem ilustrativa da falta de vontade da Federação Russa. Aliás, se a Rússia quisesse, bastar-lhe-ia aplicar as “garantias de segurança” (sic) a que se comprometeu no Memorando de Budapeste de 1994 e tudo ficaria resolvido.

Desrespeitar estas garantias, invadir e agredir a Ucrânia e, depois, dizer que se propõe prestar novas garantias de segurança, enquanto continua a violar aquelas, é comédia cínica de evidente mau gosto. O mesmo quanto ao encontro Putin/Zelensky, que o líder do Kremlin não mostra a menor vontade de realizar. A razão é óbvia: não
quer a paz com a Ucrânia.

Enfim, o terceiro facto absolutamente claro do Alasca é o mais saliente: em guerra estávamos, em guerra continuamos. A cimeira foi, na perspetiva da paz, uma inutilidade dispendiosa, pura representação de ilusões. O festivo encontro Trump/Putin, “maravilha fatal da nossa idade”, não teve o menor efeito no terreno: prossegue, praticamente todas as noites, o bombardeio de cidades ucranianas, a começar pela capital, Kyiv, com muitas vítimas civis, atingidas e mortas em zonas residenciais. A guerra de atrição continua, como se nada tivesse acontecido, mostrando, na verdade, que nada aconteceu. A Rússia mantém os mesmos métodos para os mesmos objetivos: vergar a Ucrânia e, podendo, conquistá-la. Como é pelos frutos que se conhecem as árvores, Anchorage foi um posto de reabastecimento moral e político para a estratégia russa.

O único resultado útil para que serviria, no imediato, seria o cessar-fogo. Como se vê desde 2022, não é possível chegar a conversações de paz, sem, primeiro, calar as armas. As desconfianças são muito profundas e as vítimas numerosas e demasiado recentes para que as partes possam pensar em fazer as pazes e construir uma plataforma comum, enquanto os combates continuam. Por isso, negar ou negligenciar o cessar-fogo é sabotar a possibilidade de paz. Foi o que se passou no Alasca. E, a seguir, continuou em Washington, com os europeus a deixarem-se entreter com o resto – que, afinal, não havia.

A única coisa que importa saber é se europeus e americanos, do lado da Ucrânia, são capazes de empreender alguma ação vigorosa, no plano militar e/ou diplomático, que, no mínimo, force a Rússia a aderir em breve ao cessar-fogo. Não sendo assim, a guerra vai continuar – e tudo tenderia a ficar cada vez pior. É no terreno que a
realidade tem de mudar.

Chega quer que OE2026 reflita “mudança de espírito de política de habitação”

O líder do partido Chega, André Ventura, disse este domingo que quer um Orçamento do Estado para 2026 que “reflita uma mudança de espírito de política de habitação” e propôs algumas medidas.

Numa mensagem vídeo enviada às redações, em reação a uma série de medidas anunciadas hoje pelo presidente do PSD e primeiro-ministro, Luís Montenegro, o líder do Chega pediu investimento “de habitação pública para a classe média que está com dificuldades” e o aumento das deduções fiscais das despesas com habitação.

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“Precisamos de ajudar as pessoas para que as despesas que tenham com habitação possam deduzir mais no IRS. Aquilo que têm hoje para deduzir são migalha, quando a despesa das famílias na habitação é uma brutalidade”, disse.

No encerramento da Universidade de Verão do PSD, hoje em Castelo de Vide (Portalegre), Luís Montenegro disse que o Governo quer dar “um novo impulso à habitação”, porque o desafio na área “é gigante, mas tem que ser ultrapassado e vencido”.

Montenegro anunciou que na próxima quinta-feira vai ser assinada, com o Banco Europeu de Investimento (BEI), uma linha de crédito de mais 1.300 milhões de euros para o domínio da habitação acessível.

O Governo quer ainda criar uma ficha única digital que congregará, para já, “todos os documentos certificados do imóvel” e ainda transferir para a empresa que gere o imobiliário do Estado, a Estamo, o património do Estado que não tenha justificação de uso pelas entidades públicas.

André Ventura concordou com algumas das medidas anunciadas por Montenegro, nomeadamente sobre a redução de burocracia, mas considerou que ainda “são absolutamente insuficientes”.

“Vamos insistir para que o Orçamento do Estado para 2026 reflita uma mudança de espírito de política de habitação”, disse Ventura.

Incêndios Rurais (I): o que deve fazer o Governo?

Em 2017 dada a tragédia do elevado número de mortos associados aos incêndios não houve grande debate e aproveitamento político dos incêndios. Hoje, ainda não findo o ano de 2025 e já com mais de 260.000 hectares de área ardida, têm sido significativas as propostas políticas (projetos de lei e de resolução) que deram entrada na Assembleia República (AR). O debate político e público instalou-se, e ainda bem, mas corre o risco de ser efémero até que outro assunto ocupe a agenda. Para que os incêndios não se tornem a tragédia anunciada de cada verão é importante perceber primeiro o que já foi feito e o que deve fazer o Governo nesta matéria que abordarei neste artigo. Num artigo posterior discutirei qual deve ser o papel da Assembleia da República e as
propostas dos partidos políticos.

Após os incêndios de Pedrogão Grande e no âmbito da Assembleia da República foi criada uma comissão técnica independente que produziu relatórios que merecem, ainda hoje ser lidos pois apontam as pistas daquilo que era, e ainda é, essencial fazer tanto no domínio da prevenção como no nível operacional de combate aos incêndios. Desde então houve progressos quer institucionais, em particular com a criação da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), quer do ponto de vista de planeamento. Proliferam os planos, com especial relevo para o Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais 2020-30, com a sua tripla dimensão de Estratégia, Cadeia de Processos e Programa Nacional de Ação (PNA). Este plano, para a década, tem objetivos estratégicos e está estruturado em programas. Para cada um deles são definidos projetos com objetivos, resultados esperados, medidas, indicadores de realização, metas, orçamento e entidades envolvidas
na sua execução por tipo de função.

No objetivo de “valorização dos espaços rurais” há projetos referentes ao inventário florestal nacional, à realização do sempre inacabado cadastro da propriedade rústica (e que deveria ser grandemente impulsionado com fundos do PRR), há programas sobre o redimensionamento da propriedade rústica e seu emparcelamento ou para melhorar a gestão agregada de propriedades rústicas privadas nomeadamente as zonas de intervenção florestal (ZIF). Todos reconhecem como condição necessária, mas não suficiente, para a sua valorização económica e melhor gestão.

No âmbito do objetivo estratégico de “cuidar os espaços rurais” merecem destaque os projetos para reconversão da paisagem, remuneração dos serviços de ecossistemas, promover a articulação entre os Planos Regionais de Ordenamento Florestal e os Planos Diretores Municipais, e projetos para garantir a gestão das redes primária e secundária de gestão de combustível. Um projeto importante é o da redução de combustível através da geração de energia a partir de centrais e caldeiras de biomassa. No âmbito da proteção das populações e do património edificado estão contemplados vários projetos nomeadamente o “Aldeia Segura” e “Pessoas Seguras”, coordenado pelo Ministério da Administração Interna, tendo como responsável a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) e os municípios com apoio da GNR. Finalmente, está também contemplado o projeto de recuperação e reordenamento do território nas áreas ardidas com mais de 500 hectares. Coordenado pelo Ministério do Ambiente, o responsável seria o ICNF, e seria implementado em articulação com entidades nacionais (ANEPC, APA) e municípios.

Um terceiro objetivo estratégico é o de modificar comportamentos. Há aqui projetos relevantes de reduzir o número e o risco de queimas e queimadas, nomeadamente através de ações com a população, e de reduzir as ignições de maior risco através de reforma do enquadramento jurídico, acompanhamento de cidadãos responsáveis por fogo posto, nomeadamente no campo da saúde mental. Há também projetos para investigação das causas de incêndio e nestas de crimes de incêndio.

O PNA, que ainda contempla um quarto objetivo (“gerir o risco eficientemente”) não é perfeito e várias foram as críticas feitas nomeadamente pelo Observatório Técnico Independente (entretanto extinto) de que em muitos
casos os indicadores não são os mais adequados para uma efetiva monitorização. De qualquer modo, e sem prejuízo de melhorias que podem e devem ser feitas, nomeadamente tendo em conta as recomendações deste
Observatório no seu relatório, é o melhor plano de ação que temos para a década e a esmagadora maioria das medidas que têm sido propostas em Agosto por vários comentadores estão contempladas no plano. O que é preciso é executá-lo e monitorá-lo e essa a maior responsabilidade do governo. Poderia começar desde já no Orçamento de Estado de 2026 por criar um programa orçamental transversal aos vários ministérios envolvidos no PNA e com uma perspetiva plurianual que envolvesse todos os projetos previstos no PNA. Este programa teria a vantagem de tornar claro os objetivos, os indicadores, as metas e os recursos que o governo quer afectar já em 2026 às medidas acima referidas, por tipo de financiamento, nacional ou comunitário. Executar o PNA exige ainda um reforço dos recursos financeiros e humanos, e eventual reestruturação interna, das instituições que mais responsabilidade têm na implementação do Plano em particular o ICNF e a AGIF IP e melhor coordenação com as outras instituições da administração central e local (municípios). Deveria reinstituir-se um observatório técnico independente de carácter permanente, e não temporário, que entre outras competências teria a responsabilidade de uma análise crítica dos relatórios de monitorização e atualização do PNA que a AGIF já elabora.

No que toca aos incêndios não é preciso inventar a roda. A esmagadora maioria dos medidas e projetos que é preciso implementar nesta década já está escrita no plano nacional de gestão integrada de fogos rurais. O que é
preciso é coragem, sabedoria, conhecimento e vontade política para as implementar mesmo que contra certos interesses instalados.

Um género de atirador

1. A ilusão da utopia

É possível que a palavra que melhor enforma o espírito da modernidade e a sua ampla confiança na ideia de progresso seja a palavra utopia. Não foi ela criada no início do século XVI por Thomas More para retratar a ambição humana de criar um lugar que, dotado de instituições justas e perfeitas, garantiria a felicidade dos homens? E não constitui este ensejo o propósito da modernidade?

É verdade que muitos recuam até Platão para traçar uma tradição utópica, encontrando n’A República um exemplo mais antigo de utopia. Mas mesmo aqui, a sofiocracia – o melhor dos governos, que seria, para Platão, o governo dos sábios – acabaria por degenerar em outras formas menos boas, de acordo com o espírito cíclico do pensamento grego. Os modernos são diferentes.

Para o pensamento moderno, a utopia seria um estádio final – aquele para o qual devemos gradual ou revolucionariamente caminhar e cuja distância é medida pela noção de progresso. Seria possível, assim, aperfeiçoar continuamente as instituições até acabar com as injustiças e as desigualdades. E perante as vozes céticas que questionavam se uma natureza decaída e imperfeita poderia garantir a utopia (dúvida que o próprio More expressou com a palavra u-topos, não lugar), começou a germinar a ideia de que não haveria uma natureza humana e que, por isso, não haveria limites nem condicionamentos ao que podemos fazer.

Ao longo do século XX, estas ideias foram amadurecidas pelo princípio de que tudo é construção social, o que significaria que nasceríamos como páginas em branco – a chamada teoria da “blank slate” ou tábua rasa – e tudo seria resultado de socialização.

O mesmo é dizer: todos os problemas do mundo resultariam de formas de socialização erradas, instituições mal organizadas e políticas públicas insuficientes. Mas todos esses males poderiam ser resolvidos politicamente.

2. A ilusão da construção social

Como acontece frequentemente com as ideias filosóficas, o seu problema reside no facto de serem interessantes no mundo das ideias, mas falharem no mundo real. Neste caso, não só os grandes projetos utópicos que foram tentados falharam em toda a linha, como o conhecimento que temos adquirido sobre o homem, o modo como
pensamos e por que razão agimos como agimos – e que vem de áreas como a antropologia, a biologia, a psicologia e o pensamento evolutivo – tem demonstrado que “a página em branco” não existe.

É verdade que não estamos totalmente determinados pelas condições naturais e evolutivas e parecemos ter algum espaço para o livre-arbítrio – ao contrário do que defende, por exemplo, Robert Sapolsky. Mas estamos, sem dúvida, condicionados não só por um corpo que resultou de um processo adaptativo, como também o modo
como obtemos informação, pensamos e decidimos resulta de mecanismos evolutivos e traços de personalidade que não escolhemos.

Os vieses cognitivos – amplamente estudados pela psicologia cognitiva – demonstram precisamente isso: são resultado de mecanismos adaptativos para aumentarmos a nossa probabilidade de sobrevivência e reprodução. (Não deixa de ser curioso como tantos crentes na construção social insistem em recomendar livros como Os perigos da perceção a quem discorda de si, sem reconhecer que este tipo de leituras desmonta precisamente a teoria de que tudo é construção social.)

Como quase sempre acontece na história do conhecimento humano, a resposta parece encontrar-se a meio: para melhor compreendermos os humanos e a sua relação com o mundo deveríamos pensar nos homens como “folhas rascunhadas”, para usar a expressão de Jonathan Haidt. Não somos um produto pré-determinado, mas estamos
condicionados por um conjunto de fatores, que resultam da biologia e da psicologia e, em larga medida, esses fatores podem ser explicados com recurso ao pensamento evolutivo.

É verdade que isto significa aceitar a existência de um conceito absolutamente antimoderno: a ideia de limites. Na realidade, e contra o que Manuel Maria Carrilho denuncia como o paradigma do ilimitado, há limites ao que podemos fazer social e politicamente – não é tudo construção social – e se insistirmos em desprezar essa realidade e o conhecimento que fomos acumulando a esse respeito, ficamos condenados a falhar repetidamente e a criar situações particularmente perversas. E nos últimos anos, em nenhuma área isso se tornou tão evidente como na discussão em torno do sexo.

3. A ilusão do género

Quando, a meio do século XX, se popularizou a ideia de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, mas nos tornamos mulheres, inaugurou-se o princípio da construção social aplicada ao sexo. A ideia seria a de que não nascemos nem homens nem mulheres, mas que nos tornamos socialmente homens ou mulheres em resultado de regras e condicionamentos sociais que levam a que homens e mulheres se comportem de acordo com códigos de conduta distintos.

A palavra “género” em muitas línguas passou, assim, a ser usada para afastar a realidade biológica (o sexo) e consagrar a ideia de que não há qualquer relação entre sexo biológico e modos de pensamento e ação tipicamente femininos ou masculinos. E ao longo da segunda metade do século XX, esta ideia foi-se expandindo com a introdução da noção de performatividade: tudo seria construção social e performance (como um papel que desempenhamos socialmente) e, em última instância, caberia ao indivíduo, dentro do seu espaço de decisão e liberdade, escolher a sua identidade de género (numa versão pop do pensamento mais complexo de Judith Butler).

Contra este argumentário, muitas pessoas têm apelado, e bem, ao bom senso como estratégia política. Mas bastaria usar argumentos científicos. Como explicam aqui os biólogos Richard Dawkins e Colin Wright, não falamos em dois sexos de forma arbitrária: nas espécies que se reproduzem sexualmente, existem apenas dois tipos de gâmetas ou células sexuais (é um sistema binário); um é de maior dimensão (nos humanos, óvulos que determinam o sexo feminino), outro de menor dimensão (nos humanos, espermatozoides que determinam o sexo masculino). É um padrão binário que se repete no mundo dos animais e das plantas, sem que haja um terceiro sexo.

No contexto moderno, marcado pela liberdade individual e pela dificuldade em lidar com a ideia de limites, não é fácil aceitar que há coisas que não resultam da nossa escolha. Mas isso não altera a realidade: a identidade sexual não é uma escolha nossa e não pode ser alterada; mais do que isso, essa identidade sexual condiciona o modo como nos comportamos (v. Diana Fleischman, Steven Pinker, Jared Diamond).

Não estamos totalmente determinados por ela (vale sempre a regra da distribuição normal), mas ela condiciona-nos em múltiplos aspetos e, nessa medida, o género não é só uma construção social: os nossos comportamentos sociais, aquilo que valorizamos e o modo como reagimos e tomamos decisões são condicionados pela nossa identidade sexual.

E como sexo e género estão interrelacionados (de formas diferentes em cada pessoa), é importante não nos deixarmos enveredar por narrativas ficcionais da identidade de género: elas impedem-nos de compreender o mundo, identificar problemas e tentar, na medida do possível, resolvê-los. A verdade é que homens e mulheres tendem a comportar-se de maneiras diferentes e a cometer, nessa medida, tipos diferentes de criminalidade e violência – o que é particularmente evidente no caso dos “mass shootings” (dados dos Estados Unidos, onde o fenómeno é pungente).

É por essa razão que não deve ser usada a palavra “atiradora”, como aconteceu com algumas peças jornalísticas, para descrever um rapaz – cujos problemas mentais foram, muito provavelmente, negligenciados com a cobertura da identidade de género. Não estamos apenas a faltar à verdade factual, mas estamos, sobretudo, a
impedir uma correta compreensão deste tipo de violência e do modo como alguns grupos tendem a ser instrumentalizados por certos movimentos. Em particular, não nos permite pensar em medidas que possam, de modo eficaz, evitar que mais crianças sejam mortas em circunstâncias semelhantes.

No mês de agosto, deixei algumas sugestões de leitura aqui.

Na próxima sexta-feira, dia 5 de setembro, estarei na apresentação do livro mais recente de Manuel Maria Carrilho, A Nova Peste, na Fnac de Braga, pelas 18h30. Apareçam!

Para Além dos Mitos: O Imperativo da Imigração

Até meados do século, as projeções demográficas para Portugal desenham um cenário preocupante: seremos uma das nações mais envelhecidas do globo, com uma proporção de apenas dois indivíduos em idade ativa para cada idoso. Este panorama não é meramente um dado estatístico; é uma realidade económica premente que ameaça a sustentabilidade do nosso contrato social. Perante este abismo demográfico, Portugal – e, de resto, todo o Ocidente – confronta-se com uma escolha iniludível: o declínio progressivo ou uma política de imigração cuidadosamente gerida. Não existe uma terceira via.

O debate em torno da imigração persiste, lamentavelmente, refém de um mito pernicioso: o de que os imigrantes representam um fardo para a sociedade. A verdade, contudo, é diametralmente oposta. São, na realidade, um ativo vital que urge cultivar e integrar. Para as economias avançadas que, como a nossa, enfrentam um declínio demográfico irreversível, uma política de imigração estratégica e bem delineada constitui a única ferramenta pragmática para assegurar a sobrevivência económica nacional.

Esta perspetiva reconfigura, de forma decisiva, toda a discussão. As palavras-chave deixam de ser “generosidade” ou “custo social”, noções antiquadas e desajustadas, para se transformarem em “necessidade” e “imperativo económico”. A imigração, longe de ser um ato de caridade, emerge como uma estratégia indispensável para o futuro de Portugal.

A Aritmética Inevitável

No panorama global do mundo desenvolvido, a aritmética demográfica revela-se implacável. As taxas de natalidade, persistentemente abaixo do nível de substituição, e o progressivo envelhecimento da força de trabalho exercem uma pressão insustentável sobre as promessas fiscais que sustentam os nossos sistemas de pensões e de Segurança Social. Ignorar esta realidade é, no fundo, planear o incumprimento.

Nesta equação complexa, a imigração emerge como a única variável significativa que podemos, de facto, controlar. Pensemos na economia de uma nação como uma vasta empresa. Uma empresa que cessa de contratar talento jovem e ambicioso, dependendo exclusivamente da sua força de trabalho envelhecida, está irremediavelmente destinada à estagnação e, em última instância, à falência. Para as economias avançadas, a imigração estratégica constitui, portanto, a mais crucial estratégia de recrutamento de talentos de que dispomos.

Os dados são claros e revelam que os imigrantes são uma fonte profunda de dinamismo. O próprio ato de deixar o seu país de origem em busca de um novo futuro funciona como um poderoso filtro de ambição e tolerância ao risco. Um estudo da Fundação Kauffman corrobora esta tese, concluindo que os imigrantes são quase duas vezes mais propensos a criar novas empresas do que os cidadãos nativos. São, fundamentalmente, criadores de emprego e impulsionadores de inovação.

Confrontar os Mitos

Para sustentar a narrativa da imigração como uma ameaça, os seus críticos alicerçam-se em ficções que se desmoronam perante uma análise rigorosa. A primeira é o mito do dreno orçamental. A investigação mais exaustiva sobre este tema, um relatório de 2016 das Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA, concluiu que, embora os imigrantes de primeira geração incorram num modesto custo inicial (principalmente com a educação dos filhos), representam um contributo líquido positivo para os orçamentos do Estado. Crucialmente, os seus filhos, a segunda geração, estão entre os contribuintes económicos e fiscais mais sólidos de toda a população.

A segunda ficção é o espectro da criminalidade imigrante. Décadas de dados de todo o Ocidente mostra um resultado consistente e lógico: os imigrantes de primeira geração têm taxas de criminalidade significativamente mais baixas do que a população nativa. Têm os incentivos mais poderosos do mundo para serem cumpridores da lei: o receio da deportação e o desejo de validar o seu imenso sacrifício pessoal.

A crítica económica mais substancial emana daqueles cuja apreensão se centra nos salários. Os seus defensores, evocando o trabalho do economista de Harvard George Borjas, assinalam com pertinência que um súbito afluxo de imigrantes de baixa qualificação pode exercer uma pressão temporária sobre os vencimentos dos trabalhadores nativos nesse mesmo nicho laboral. Este efeito localizado, conquanto real, oferece um retrato incompleto. Tal visão descura um ponto fulcral: os imigrantes são também consumidores que arrendam habitação, adquirem bens e, por conseguinte, fomentam a procura. Conforme evidenciam os estudos dos economistas David Card e Giovanni Peri, a imigração gera, a longo prazo, um efeito residual mas inequívocamente positivo nos salários médios nacionais, ao canalizar os trabalhadores locais para funções complementares e de maior qualificação, nos domínios da gestão e da comunicação.

Na verdade, a problemática que Borjas expõe mais não faz do que revelar uma debilidade intrínseca às nossas políticas domésticas. A resposta afigura-se, pois, no robustecimento da nossa estrutura social: um salário mínimo mais elevado, uma formação profissional sólida e contínua, e uma malha de segurança social mais forte. É esta a via para sanar a causa profunda da questão, facultando-nos a lucidez para abraçar a nossa mais vital fonte de pujança económica.

O desafio que Borjas identifica revela, na verdade, uma falha da política interna. A solução reside em fortalecer a nossa própria sociedade com um salário mínimo mais elevado, formação profissional robusta e uma rede de segurança social mais forte. Esta abordagem trata a causa do problema, permitindo-nos abraçar a nossa principal fonte de dinamismo económico.

Um Enquadramento Estratégico para o Crescimento

Um princípio não se verga perante a inépcia do processo. Se o nosso sistema fiscal é um labirinto de irracionalidade, a única resposta digna é a sua reforma. Pela mesma ordem de ideias, sendo a imigração uma condição sine qua non da nossa perenidade, é um imperativo de segurança nacional forjar um sistema legal, ordeiro e eficaz, que responda às premências da nossa economia.

Para Portugal, a resposta reside num sistema moderno de duplo pilar. Em primeiro lugar, um modelo de pontos, de inspiração canadiana, para captar talento global em domínios de elevada procura, como a tecnologia e a saúde. Em segundo lugar, a criação de vistos específicos por setor, destinados a colmatar a carência aguda de mão de obra que hoje paralisa áreas nevrálgicas como a hotelaria, a agricultura e a construção. Tal desiderato impõe que a nova agência, a AIMA, seja devidamente dotada dos meios e do financiamento para cumprir o seu propósito como motor de renovação económica.

Paralelamente a este imperativo de atração, emerge um paradoxo que mina a nossa coerência estratégica: a contínua “fuga de cérebros”. De pouco vale desenhar um sistema sofisticado para importar talento, se simultaneamente assistimos à emigração de nacionais altamente qualificados, formados com significativo investimento público, em busca de salários e perspetivas de carreira que não encontram no seu próprio país. Uma política de capital humano verdadeiramente lúcida não pode ser uma via de sentido único. A estratégia tem de ser dupla: agressiva na captação de talento internacional e, com igual urgência, determinada na criação de condições competitivas para reter, valorizar e fazer regressar o imenso valor que já é nosso.

Uma população em crescimento exercerá, inelutavelmente, pressão sobre a habitação, o sistema de ensino e os transportes. Estas realidades exigem uma melhor integração e um investimento mais criterioso, enquadrados numa agenda de crescimento. A expansão económica e o alargamento da base fiscal, impulsionados pela própria imigração, constituem precisamente os recursos necessários para financiar tais investimentos. Uma parcela deste “dividendo demográfico” deverá ser orientada para o desenvolvimento das regiões do interior, convertendo a imigração num instrumento de coesão nacional.

Em última análise, o debate migratório tem de ser resgatado para o campo da lucidez e do interesse nacional. O dilema é claro: de um lado, o crescimento e a solvência; do outro, a estagnação e um definhar paulatino. Os nossos governantes têm o dever de ultrapassar os remendos casuísticos e de erguer, agora, esta estrutura estratégica. É tempo de o debate amadurecer: a questão não é mais se queremos imigração, mas como a arquitetamos para o sucesso. Disso depende a nossa prosperidade futura.

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