O pastor bandido: como um abusador de menores se infiltrou numa vila portuguesa

Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.

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A vila portuguesa de Rio de Moinhos, a 16 quilômetros do centro de Penafiel, município do Porto, Norte de Portugal, nunca mais vai esquecer a manhã ensolarada de 17 de julho último. Foi naquele dia que a Polícia Judiciária prendeu um pastor evangélico de 46 anos, condenado no Brasil a 18 anos de prisão por abuso de menores.

O homem havia se infiltrado na vila depois de passar, incólume, legalmente, pela imigração portuguesa. Mesmo com o nome inserido da lista da Interpol, a Polícia Internacional, por ter fugido da Justiça brasileira, o mineiro conseguiu, há pouco mais de dois anos, vestir a roupa de cidadão de bem.

Logo que chegou em Rio de Moinhos, ele tratou de buscar abrigo na Igreja Evangélica Assembleia de Deus Madureira, de Paços de Ferreira, que, procurada pelo PÚBLICO Brasil, não se manifestou. Em nota, a Polícia Judiciária informa que o abusador de menores fazia parte de uma “comunidade religiosa, da qual era líder”.

Na visão do pastor, era o disfarce que ele precisava para não chamar a atenção. E foi assim por um bom tempo. O jeito pacato, de poucas palavras, não despertou suspeitas na vizinhança. Muito pelo contrário. Pela manhã, quando saía de casa por volta das 9h da manhã, fazia questão de esboçar um sorriso e dar bom dia a quem encontrasse pela frente. Na volta, o boa noite também era sagrado.

Durante um período, o procurado pela Justiça brasileira viveu sozinho. Mas acabou encontrando uma companheira, simulando o casamento perfeito. Contudo, a relação não foi muito longe. Seis meses antes de ele ser pego pela Polícia Judiciária, a mulher retirou o carro dela da garagem e nunca mais voltou. A vizinhança preferiu não saber o que havia se passado.

O pastor manteve a rotina. O horário de saída sempre cronometrado, o bom dia com meio sorriso, a volta para casa com horário marcado, entre 19h e 20h, e o boa noite a quem estivesse na rua. Na casa do homem condenado por pedofilia parecia que tudo continuava a correr dentro da normalidade.

Procurado pela Interpol, pastor pedófilo estava vivendo há pouco mais de dois anos em Portugal
Manuel Roberto

“Foi um susto quando vimos a polícia levando aquele homem para dentro do carro, preso”, diz ao PÚBLICO Brasil um morador da Rua do Estremadouro, com pouco mais de 500 metros de extensão. “Aqui sempre foi um local tranquilo. Jamais imaginamos que um criminoso, abusador de menores, um crime tão grave, pudesse estar escondido entre nós”, complementa ele, que pede anonimato.

Sem reação

A vizinhança do pastor bandido prefere não fazer muito alarde sobre o que se passou na manhã de 17 de julho. O desejo é de que prevaleça a imagem de tranquilidade que sempre foi característica do local. “Nunca vimos ninguém ser preso na nossa rua. Na verdade, nunca tínhamos visto a polícia entrar na nossa rua”, ressalta uma senhora também sob a condição de anonimato.

Ela lembra que, no fatídico dia, não foi apenas uma vez que a polícia transitou por ali. Pouco antes da prisão do pastor, os policiais fizeram uma ronda, conferiram se era mesmo o local que o criminoso se escondia e como seria feita a detenção. Tudo foi muito bem planejado, para que não houvesse chance de o pedófilo escapar. Foi ao sair para o trabalho que ele deu de cara com os agentes da Polícia Judiciária.

A abordagem policial foi tranquila, reconhece outro vizinho. “Os polícias pediram para ele se identificar e, com tudo confirmado, ele recebeu voz de prisão e não reagiu”, relembra. Havia algumas pessoas na rua, já incomodadas pela inabitual presença de um carro da polícia por ali. “Foi visível o constrangimento dele ser preso na porta de casa. E foi um choque para nós. Durante um bom tempo, ele se disfarçou bem”, complementa, sem dizer o nome.

Extradição para o Brasil

Na Rua do Estremadouro, ouve-se o canto dos pássaros, o uivo do vento, a corrida de cães. Um lugar perfeito para quem deseja esconder um passado de crimes. A ladeira bem íngreme para chegar ao seu final exige um certo esforço físico. A casa em que o pastor vivia, de dois andares, com vistas para as montanhas, fica quase na metade do trajeto. Ele morava no andar de cima.

Entre os moradores da rua, estima-se que a casa valha cerca de 400 mil euros. Eles dizem que, por ali, as moradias são bem ajeitadas, mas não há luxo, são imóveis, no entender deles, característicos de classe média. A residência que o pastor ocupava, por sinal, foi alugada em pouco mais de uma semana. “Depois do que aconteceu, estamos receosos. Esperamos que o que presenciamos em 17 de julho não se repita mais”, comenta mais um morador.

A expectativa de todos da Rua do Estremadouro é de que a Justiça portuguesa faça valer o que decidiu o Judiciário brasileiro, e mantenha o pastor detido. Segundo a Polícia Judiciária, logo após ser pego pelos agentes, o homem foi levado para o Tribunal de Relação do Porto, onde foi declarada a prisão preventiva dele. Ainda não há prazo para a extradição do pastor. Para isso, é preciso um pedido formal do Brasil. A última palavra para remoção do criminoso de Portugal será do Ministério da Justiça local. Procurada, a defesa do pastor não foi encontrada.

Análise ao ar expirado com a ajuda da IA permite detectar o cancro do pulmão

Biópsias, exames de imagem — como a tomografia computadorizada ou a ressonância magnética — ou análises ao sangue: estes são alguns dos métodos tradicionais para detectar o cancro. Embora eficazes, estes exames envolvem frequentemente procedimentos invasivos, dolorosos, dispendiosos ou demorados. Agora, uma equipa de cientistas portugueses quer mudar isto e, com a ajuda da tecnologia e da inteligência artificial, passar a detectar precocemente o cancro, nomeadamente o do pulmão, através dos chamados “compostos orgânicos voláteis”, substâncias químicas orgânicas facilmente detectáveis no ar expirado, na urina e na pele.

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Candidaturas ao Ensino Superior em queda pelo 4.º ano consecutivo

A primeira fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior termina esta segunda-feira e o número de candidatos pode ser o mais baixo dos últimos sete anos.

Até à meia-noite desta segunda-feira, segundo números da Direção-Geral de Ensino Superior (DGES), candidataram-se 47.796 estudantes, uma diferença de mais de 10 mil candidaturas para o número final de 2024. A um dia do prazo das candidaturas, o concurso do ano passado contava com 56.170 estudantes – uma diferença superior a oito mil estudantes.

Os números ainda não são finais, mas é já quase certo que as candidaturas vão baixar, naquele que será o quarto ano consecutivo de queda: o maior número de candidatos foi registado em 2021, com mais de 64 mil estudantes.

Em 2020, 2021 e 2022, as candidaturas ficaram sempre acima dos 60 mil, mas 2025 caminha para um número perto do que foi registado em 2018 ou 2019, de cerca de 50 mil estudantes.

A quebra pode explicar-se por razões demográficas, mas também por notas mais baixas nos exames nacionais de 1.ª fase, ou por razões económicas, com os preços de quartos para estudantes deslocados a ter disparado nos últimos anos.

L 98-59 f: confirmado o quinto planeta potencialmente habitável

Astrónomos revelam elenco diversificado de mundos rochosos à volta de uma pequena estrela, que está a 35 anos-luz de distância. Uma equipa de astrónomos realizou o estudo mais detalhado até à data do sistema planetário L 98-59, confirmando a presença de um quinto planeta localizado na zona habitável da sua estrela — uma região onde poderá existir água no estado líquido. Este estudo oferece novas pistas sobre a diversidade e a composição de planetas que orbitam anãs vermelhas. Situada a apenas 35 anos-luz da Terra, a anã vermelha L 98-59 já era conhecida por acolher três exoplanetas, descobertos em 2019

“Challenge Pastel de Nata” viraliza entre japoneses na Expo Osaka

“O chef José Sousa Botelho é português, mas vive no Japão há mais de 15 anos, conhece o mercado e os produtos. Conseguiu de uma forma muito certeira, diria eu, chegar facilmente a aquilo que os japoneses gostam muito, como o polvo. O polvo à lagareiro e o arroz de polvo têm imensa saída. Os japoneses adoram, sobretudo em Osaka, porque são grandes apaixonados pelo polvo, mas não o conhecem cozinhados desta forma. É algo que causa surpresa e agrado”.

De estômago cheio, os japoneses têm saído do Pavilhão de Portugal agradados com a visita. Quanto aos portugueses, têm sido “mais exigentes”, explica a comissária.

“Não perguntamos as nacionalidades, mas diria que todos os dias aparece um português. Têm vindo até mais portugueses do que imaginava. São os mais exigentes, desde a qualidade do café, até outro tipo de observações, mas a grande maioria tem dito que sente grande orgulho” no pavilhão, afirma Joana Gomes Cardoso.

“Os portugueses estão a descobrir o Japão”

A comissária que em jovem viveu no Japão acha que “os portugueses estão a descobrir o país do sol nascente”. “Era um destino caro, mas agora o iene está baixo”, indica Joana Gomes Cardoso.

“Não ficaria surpreendida que daqui a uns tempos tivéssemos mais turistas japoneses, mais estudantes japoneses e mais negócios e empresas do Japão” em Portugal, refere a comissária como desejo futuro depois da Expo.

Joana Gomes Cardoso, que diz ter ficado “surpreendida” com os “os indicadores baixos” no que toca a dinâmica económica entre Portugal e Japão, considera que esta presença em Osaka “já está a dar frutos”.

“Esta presença, em articulação com a Embaixada, acredito que deixe frutos”, sublinha, esclarecendo que só depois da Expo Osaka terminar se irá perceber a dimensão dessas sementes que ficarão a germinar.

Contudo, Joana Gomes Cardoso reconhece que há já exemplos concretos. “A Universidade Nova assinou já protocolos com as Universidades de Osaka, Nagasaki e Tóquio. Inevitavelmente vai deixar algo”, aponta.

Outro caso é de “um português que estava há dois anos a tentar fechar um negócio com uma empresa importadora japonesa para exportar amêndoa. O facto de, através do pavilhão, termos convidado os hipotéticos futuros parceiros, de os termos recebido, ele disse-nos que fechou negócio. Havia um histórico, mas foi a vinda ao pavilhão que selou o negócio”, destaca Joana Gomes Cardoso.

Este país não é para os que estão “fora”

Há pouco mais de um mês foi apresentado um estudo no Fórum BCE, que decorreu em Sintra, que indica que Portugal é o segundo país europeu onde os trabalhadores permanecem, em média, mais tempo na mesma empresa — sem surpresa, o primeiro é a Grécia. Um terço dos trabalhadores portugueses trabalha para a mesma entidade patronal há pelo menos 20 anos.

Fiquemos por este dado sobre o país sem entrar na discussão que animou a reunião dos banqueiros centrais sobre a mobilidade do mercado de trabalho e a sua relação com o diferencial de inovação e produtividade entre a Europa e os Estados Unidos.

O país onde a ideia de “um emprego para vida” tem este peso é, ao mesmo tempo, o país onde o acesso aos primeiros empregos é muitas vezes feito de forma precária: contratos a prazo e recibos verdes (falsos ou verdadeiros).

Esta é uma dualidade antiga da nossa economia, ditada pela rigidez do mercado de trabalho: quem está “dentro” está protegido e os que estão “fora” mas querem entrar pagam uma parte desse custo e da fraca dinâmica que ele provoca.

Dentro das empresas, o acesso aos cargos de chefia e direcção não é diferente. Dados citados por Daniel Traça no livro “Ambição – Preparar Portugal para a geração mais bem preparada” (Oficina do Livro, Outubro de 2024) — manifestação de interesse: colaborei com Daniel Traça da edição e revisão do livro — mostram como há gerações “instaladas” que dificultam a renovação e a chegada de talento mais jovem a lugares de maior responsabilidade e decisão.

Entre 2010 e 2021, a idade média em cargos directivos aumentou de 44 para 48 anos nas grandes empresas e de 45 para 48 anos nas médias empresas. Em Portugal, o gestor de topo das empresas está, em média, há 30 anos no sector – o valor mais elevado dos países da União Europeia.

Uma falta de renovação que não é indiferente ao facto de muitos jovens preferirem desenvolver as suas carreiras no estrangeiro, onde o talento e o mérito são mais recompensados sem olhar a contextos como a idade.

Nesta viagem ao país dual podemos também olhar para o mercado de habitação. A crise de escassez e de preços elevados é notória e conhecemos bem as razões que aqui nos trouxeram: construção escassa, procura crescente e intervenções ou ameaças de intervenção política nos mercados de arrendamento ou na liberdade de propriedade.

O problema é real e é grave, em termos económicos e sociais. No entanto, sem que isso sirva de atenuante para o custo colectivo desta crise, a larga maioria da população beneficia dela. Num país onde cerca de 70% das famílias habita em casa própria, a subida do valor de mercado dos imóveis significa que a riqueza dessa fatia maioritária da população está a aumentar. Não por acaso, a habitação já representa 55% do património das famílias – que sobe para 76% no conjunto das famílias de rendimentos mais baixos.

Três retratos de um país cada vez mais dual, cheio de entraves à sua própria renovação, onde é cada vez mais notória a vantagem de estar “dentro” e os custos suportados por quem está “fora” e quer entrar. A rigidez, a hiper-regulamentação, e uma cultura de defesa do próprio “quintal” são, cada vez mais, um travão à dinâmica económica e social que os acelerados tempos modernos exigem.

A minha moral é superior à tua (3)

Quando olhamos para a história e analisamos os regimes políticos, percebemos que a democracia não é a regra, mas a excepção. A esmagadora maioria das pessoas não se apercebe disto. Não é descabido afirmar que o regresso da democracia materializou-se com a Revolução Americana. Por essa razão é necessário olhar para a influência da moral religiosa na política norte-americana.

1 A Revolução Gloriosa de 1688, um momento determinante na história britânica, reformulou profundamente a autoridade política e religiosa com efeitos duradouros no contexto atlântico. A destituição do rei católico Jaime II e a sua substituição pelos protestantes Guilherme de Orange e Maria II, consolidou a supremacia parlamentar. Ao limitar o absolutismo real e introduzir a Declaração de Direitos Inglesa, a revolução promoveu uma tolerância religiosa – embora principalmente para os protestantes –, excluindo católicos de posições de poder. Nas colónias americanas, o impacto foi imediato e profundo: episódios como a Revolta de Boston de 1689 reflectiram uma crescente resistência aos governadores reais, enquanto a revolução energizou a dissidência colonial e solidificou uma identidade protestante profundamente alinhada com a emergente autogovernação, especialmente entre puritanos que a interpretaram como validação divina da sua luta por autonomia religiosa e política.

Não é possível negligenciar a importância dos Peregrinos do Mayflower (1620), cuja acção também moldou os alicerces ideológicos da sociedade americana inicial. Fugindo da perseguição em Inglaterra, estes puritanos separatistas estabeleceram a Colónia de Plymouth sob o Compacto do Mayflower, um acordo marcante que abraçava a autogovernação e a obrigação comunitária sob orientação divina. A sua visão de uma city upon a hill ilustrava a missão de construir uma sociedade moralmente recta, enraizada na disciplina religiosa, moldando o desenvolvimento da Nova Inglaterra com ênfase no bem-estar comunitário, rigor moral e conformidade – frequentemente às custas da liberdade individual.

Juntos, estes dois movimentos históricos infundiram o pensamento político americano com uma profunda consciência moral. Por um lado. a ética puritana – focada no trabalho, piedade e responsabilidade social – tornou-se fundamental e influenciou ideais cívicos e princípios legais que enfatizavam a virtude e a providência divina. Por outro lado, a Revolução Gloriosa reforçou a supremacia protestante, intensificando a desconfiança em relação à autoridade centralizada e enraizando a resistência à influência católica na psique colonial. Estes legados ajudam a enquadrar a tensão duradoura da América entre direitos individuais e moralidade colectiva.

2 No final do século XVIII, os Pais Fundadores, homens cultos, esclarecidos pela filosofia do Iluminismo e pela experiência colonial, adoptaram uma postura matizada sobre a religião na vida pública. Pensadores como Thomas Jefferson e James Madison defenderam a separação entre Igreja e Estado para preservar a liberdade individual e evitar os conflitos sectários característicos da Europa. A metáfora de Jefferson do Wall of separation, expressa na sua carta de 1802 aos Baptistas de Danbury, tornou-se um pilar da governação secular americana. Tendo sido incorporado em documentos como o Estatuto da Virgínia para a Liberdade Religiosa e a Primeira Emenda, este princípio promoveu a neutralidade religiosa no governo, salvaguardando sistemas de crenças diversos.

Embora a ética e a moralidade fossem centrais na visão dos Fundadores, estes ancoraram tais princípios na razão e na virtude cívica, e não no dogma religioso. Figuras como Benjamin Franklin e George Washington advogaram traços como justiça, temperança e diligência, combinando sensibilidades puritanas com o racionalismo iluminista. A moralidade pragmática de Franklin – focalizada na indústria, honestidade e autorrestrição – apadrinhava um esforço mais amplo na construção de uma república sustentada pela virtude e educação, não pela conformidade religiosa.

O “muro” de Jefferson permaneceu um símbolo vital na política americana, moldando debates sobre os limites entre Igreja e Estado e reforçando a mudança da ortodoxia religiosa para uma governação pluralista. Embora as primeiras colónias tendessem para o controlo teocrático, as interpretações modernas favoreceram um quadro legal guiado por uma ética universal, preservando tanto a liberdade religiosa quanto a integridade pública.

3 Bertrand Russell aprofundou a discussão deste ethos secular criticando a influência da religião na moralidade, defendendo em vez disso a razão, a felicidade e a investigação empírica como base da ética. O humanismo secular de Russell alinhava-se com as visões dos Pais Fundadores, mas foi além, desafiando códigos morais herdados e promovendo a liberdade individual livre de constrangimentos arbitrários.

Hannah Arendt, por sua vez, relacionou moralidade e política à acção e ao envolvimento humano. Salientado a responsabilidade cívica e o discurso reflexivo opôs-se ao autoritarismo, sublinhando os riscos morais da conformidade passiva – ideias reminiscentes da rebelião contra o controlo centralizado visto na Revolução Gloriosa. E o seu apelo a uma esfera pública aberta e participativa alinhava-se com o ideal secular de Jefferson e dos Pais Fundadores, promovendo uma cultura ética através do diálogo, em vez do dogma.

Similarmente, Friedrich Hayek viu a ética como algo emergente da interação social espontânea. Alertando contra sistemas morais impostos, quer pelo Estado quer pela Igreja, defendeu a liberdade individual e as liberdades de mercado, sustentando-se na tradição. A sua desconfiança da autoridade centralizada repercute os princípios iluministas e revolucionários, oferecendo um contraponto ao colectivismo puritano. A perspectiva de Hayek privilegiou a escolha e a autonomia como base da governação ética.

4 Decisões recentes do Supremo Tribunal dos EUA sugerem um novo entrelaçamento da doutrina moral religiosa com a interpretação constitucional, levantando questões sobre a durabilidade do muro de Jefferson e o papel evolutivo da moralidade religiosa na lei americana. Estes resultados sugerem uma filosofia judicial que vê a consciência religiosa como uma base legítima para políticas públicas, mesmo quando em conflito com normas legais estabelecidas ou proteções de direitos civis. Ora, esta mudança desafia a visão inspirada pelo Iluminismo dos Fundadores, que procuravam ancorar a governação na razão, no pluralismo e na liberdade individual. Enquanto a América navega por debates culturais e legais complexos, o desafio permanece: como honrar a liberdade religiosa sem permitir que crenças sectárias se sobreponham à neutralidade constitucional?

5 Como mencionei no artigo anterior, decisões judiciais baseadas na fé e na crença colocam em causa a democracia. Há anos que afirmo que o muro de separação de Jefferson é uma mera questão de consciência individual. O Estado não responde a Deus. Apenas os indivíduos, considerados individualmente, o fazem!

Penso que esta ideia é central ao pensamento jeffersoniano: a consciência é inviolável, e o papel do Estado não é arbitrar questões divinas, mas salvaguardar a liberdade individual, especialmente em questões de crença.

Isto também traça uma linha com a qual pensadores como Russell, Arendt e Hayek provavelmente concordariam. Russell, que afirmou que a consciência individual devia orientar as crenças pessoais, livres da interferência de instituições ou do Estado, considerava a autoridade religiosa como opressiva e defendeu que o papel do Estado era proteger a liberdade individual em vez de impor mandatos divinos ou morais; Arendt enfatizou a responsabilidade na esfera pública enraizada no julgamento pessoal, não na teologia institucional; e Hayek, por sua vez, viu as normas morais como resultantes da escolha individual, não de uma autoridade imposta – religiosa ou governamental.

Para além disso, a ideia de que apenas os indivíduos respondem a Deus sublinha um princípio fundamental: a legitimidade do Estado deriva da lei e da razão, não de um mandato divino. Estou convencido de que era isso que Jefferson pretendia quando concebeu a ideia do “muro”. Não o fez apenas para proteger a religião da interferência do governo, mas também para proteger o governo da dominação religiosa.

À luz das mais recentes decisões judiciais, este ponto ganha peso. Se a consciência reside verdadeiramente no indivíduo, então leis moldadas por crenças religiosas específicas correm o risco de erodir essa fronteira e de subordinar o pluralismo à moralidade religiosa sectária.

Estaremos a regredir ao Absolutismo? Ou a uma teocracia? Espero sinceramente que não. E pergunto: Qual é o objectivo do Governo? Baruch Spinoza já há muito respondeu à questão:

“No, the object of government is not to change men from rational beings into beasts or puppets, but to enable them to develop their minds and bodies in security, and to employ their reason unshackled; neither showing hatred, anger, or deceit, nor watched with the eyes of jealousy and injustice. In fact, the true aim of government is liberty.” – in Theological-Political Treatise (1670).

Bem-vindo ao SNS: o clube exclusivo onde paga para não entrar

Esta é a crónica de um serviço de saúde que está a transformar o direito à saúde numa roleta russa de portas fechadas.

Mesmo defendendo, de forma acérrima, o SNS, pela qualidade, excelência e dedicação dos seus profissionais, não se pode  deixar de constatar, com enorme frustração, que se instalou dentro do setor, um novo desporto de aventura em Portugal. Infelizmente, já é praticado por muitos e não exige equipamento especial: apenas uma serena dose de paciência, disponibilidade para longos minutos de espera na linha do SNS24, vontade de percorrer centenas de quilómetros e um otimismo na boa gestão do SNS à prova de bala.

O jogo poder-se-ia chamar “Adivinhe o Serviço do SNS que Funciona Hoje”.

As modalidades são variadas: desde a “Urgência Pediátrica Surpresa”, ao “Parto Itinerante” e, claro, a categoria clássica e mais desafiante para verdadeiros elite players: “Encontre um Dentista no Centro de Saúde”. E é para e nessa categoria que se pretende chamar a vossa atenção.

Consta a lenda, velada em promessas eleitorais, sussurrada em parcas inaugurações e, por vezes, até partilhada em fóruns online, como um segredo arcano, que existem umas raras e daí tão míticas criaturas no SNS: Os Médicos Dentistas.

Tal como os Unicórnios, o acesso ao médico dentista no SNS revela-se na tal figura lendária que povoa o imaginário dos portugueses, mais rara ainda que identificar um político a cumprir todas as promessas eleitorais, numa esperançosa promessa de alívio para as patologias dolorosas que lhes afligem a boca e a carteira. Contudo, esse vislumbre é uma comédia de contornos trágicos. Encontrar um destes profissionais no serviço público é uma tarefa tão hercúlea que assenta em três lusitanos pilares essenciais: a fé, a paciência e, claro, a burocracia.

A premissa deveria ser simples: quando um cidadão, que, religiosamente, paga os seus impostos, é acometido por uma maleita, o seu primeiro impulso deveria ser procurar ajuda naquilo que julga ser seu por direito: um tal de SNS.

Ledo engano.

A realidade, crua, expõe-se nos números. Segundo o mais recente barómetro da Ordem dos Médicos Dentistas, 66% dos inquiridos nem sequer sabe que existem cuidados de saúde oral no SNS. E, ironicamente, os que afirmam saber são menos do que em 2022 — talvez por desconfiarem que possa tratar-se de uma fake news.

A desconfiança tem fundamento. Em setembro de 2024, o jornal Público denunciava a existência de 32 gabinetes dentários parados no SNS. Hoje, segundo o Sindicato dos Médicos Dentistas do Setor Público e Social, esse número pode já ultrapassar os 70.  Não admira que quem soubesse da existência de médicos dentistas no SNS desconfie agora que aqueles não passam de uma miragem.

O expoente máximo deste surrealismo nacional é, sem dúvida, a saga dos gabinetes de medicina dentária do SNS. São como as notas de 500 euros: sabemos que existem, mas raramente as vemos. Acrescente-se que muitos deles foram abençoados pelo PRR ou por autarquias em vésperas de eleições, sem que as mansas (ou virtuais)  oposições se dessem ao trabalho de questionar o retorno do investimento autárquico em benefício dos munícipes.

O Estado, num assomo de planeamento digno de uma paródia, comprou cadeiras, equipamentos e até inaugurou espaços. Provavelmente alguma das inaugurações ainda teve direito à presença da fanfarra local a entoar o “fado do desgraçadinho”, tão a propósito da efeméride em causa. O único pormenor que parece ter escapado foi de promover a contratação dos médicos dentistas numa adequada carreira para lá trabalhar e enquanto isso, milhares de consultas necessárias são desperdiçadas todos os meses por falta de uma carreira que atraia e fixe estes profissionais.

Temos, assim, consultórios-fantasma, monumentos imaculados ao desperdício, a ganhar pó, enquanto um milhão de portugueses confessa nunca ter ido a uma consulta de saúde oral, sendo que, para 300 mil deles, a razão é puramente financeira, tal como foi noticiado pelo Expresso a 24 de abril passado. É o equivalente a construirem-se umas piscinas olímpicas e depois afixar um letreiro a dizer “Proibido nadar por falta de nadador-salvador”.

A OMS apela ao acesso universal a estes cuidados e Portugal, subscritor de todas essas bonitas palavrinhas, continua a ser identificado pela OCDE como o 3º pior país da UE relativamente à satisfação das mais básicas necessidades de saúde oral. Temos consultórios sem médicos dentistas, médicos dentistas sem carreira no SNS e uma população que, ou se habitua a sorrir com a mão a tapar a boca, ou se endivida para poder mastigar sem dor

Mas seria injusto acusar o SNS de discriminar os d(o)entes. A política de “portas fechadas seletivas” é, felizmente, muito mais abrangente e democrática. Num dia, são as urgências de pediatria que encerram, convidando os pais a uma peregrinação noturna pela autoestrada, com uma criança febril no banco de trás, em busca do hospital que calhou estar de serviço. Noutro, são as urgências gerais ou as maternidades que entram neste carrossel de encerramentos intermitentes, transformando o ato de ficar doente ou de dar à luz numa verdadeira lotaria geográfica.

A justificação é sempre a mesma, entoada como um mantra pelos nossos governantes: a “falta de recursos humanos”. E, rezam as estatísticas europeias, Portugal tem mais médicos por 100.000 habitantes, do que a média comunitária. Imagine-se o que seria se assim não fosse. No que à Medicina Dentária diz respeito, é uma desculpa curiosa num país que, na europa, mais forma médicos dentistas, genericamente conotados pela sua excelência, mas que depois assiste, impávido e sereno, à sua fuga para o setor privado ou para o estrangeiro, de muitos dos mais de 13.000 profissionais inscritos na Ordem, permitindo que menos de 1% deles exerçam no SNS e cuja estabilidade laboral estará a par da estabilidade oferecida por um mar revolto a um barco a remos da arte xávega.

O cidadão fica no meio deste teatro do absurdo. Paga a sua quota para um clube cujos serviços mais essenciais estão cronicamente “em manutenção” ou funcionam com a fiabilidade de uma previsão meteorológica a longo prazo. A saúde, que a Constituição consagra como um direito universal e tendencialmente gratuito, torna-se um luxo. Quem pode, paga duas vezes: uma, nos impostos e outra, no balcão da clínica privada. Quem não pode, reza para não ficar doente ou, no caso da saúde oral, aprende a sorrir de boca fechada.

No fundo, o estado da saúde oral no SNS não é uma anomalia. É o sintoma mais visível e talvez o mais irónico de uma doença crónica que o sistema perpetua desde a criação do SNS a 15 de setembro de 1979. É a metáfora perfeita para um serviço que tem as ferramentas, os edifícios e os equipamentos, mas que se esqueceu do essencial: as pessoas para o fazer funcionar. Pessoas que cuidam e pessoas que precisam de ser cuidadas.

Assim, no que toca à saúde oral nos serviços públicos portugueses, a única coisa verdadeiramente universal e gratuita é a ironia da situação e da próxima vez que precisar do SNS, não se esqueça de consultar primeiro o mapa de serviços encerrados. E se, por milagre, encontrar uma porta aberta, desconfie. Tudo indica que, a única coisa que parece funcionar 24 horas por dia, 7 dias por semana, no SNS é a porta de saída… para o setor privado. Este último que, em variados casos, apenas sobrevive (comodamente) porque se senta à mesa do Orçamento. Inexplicável.

Fogo em Vila Real ameaça três aldeias, autarca denuncia “mão criminosa”

O fogo que teve início na Serra do Alvão estão a ameaçar três aldeias do concelho de Vila Real, com três frentes ativas ainda fora de controlo que já se alastraram ao concelho vizinho de Mondim de Basto.

À Renascença, o autarca Alexandre Favaios fala de “mão criminosa” nos incêndios dos últimos dois dias, depois de um primeiro fogo que deflagrou em São Cibrão na sexta-feira à noite e já está em fase de resolução.

Um outro, que começou na localidade de Sirarelhos, é o que preocupa mais, ameaçando as aldeias de São Miguel da Pena, Quintã e Gontães.

“Estas localidades inspiram maior cuidado e os meios estão posicionados. São aldeias que têm à sua volta uma mancha florestal particularmente significativa e isso traz exigências acrescidas”, afirma o presidente da Câmara Municipal de Vila Real.

Até ao momento, avança o autarca, “nenhuma habitação” foi afetada, não existindo também vítimas dos fogos a registar. Alexandre Favaios destaca o “enormíssimo trabalho” dos operacionais no terreno. No entanto, não deixa de apontar o dedo à “mão criminosa” destes fogos.

Quatro fogos separados por 30 km em Vila Real, autarca fala em "ataque ao território"

Ao todo, segundo a página da Proteção Civil, estavam no terreno pelas 23h20 mais de 900 operacionais e 286 meios terrestres, com o fogo mais antigo, o que começou em São Cibrão e se alastrou a Sabrosa a estar em fase de resolução.

“Aquilo que assistimos durante estes dois dias foi um ataque ao nosso território. A inconsciência, a mão criminosa, colocam em causa a casa de todos nós”, afirma, apelando para que “as autoridades investiguem o máximo possível” e que “levem os responsáveis à justiça” com “penas significativas e pesadas”.

Durante a noite, segundo a CNN Portugal, um homem foi detido por suspeita de fogo posto no concelho. A detenção foi feita pela GNR, tratando-se de um cidadão estrangeiro que foi visto, por diversas vezes, por populares a rondar locais onde deflagraram focos de incêndio na zona da Campeã.

O autarca afirmou ainda que, “se o vento colaborar”, espera que os fogos no concelho sejam dominados durante a noite.

Em Vila Real estiveram a lavrar, ao mesmo tempo, três incêndios durante a tarde deste domingo, a que se soma um quarto no concelho de Celorico de Basto, numa distância de apenas 30 quilómetros.

Obesidade Cognitiva: Um manifesto por um novo paladar na era digital

Há um sentimento, único na nossa era, que se instala após um período de scrolling sem rumo. Trata-se de uma ressaca cognitiva, um estado de simultânea agitação e torpor, de sobre-estimulação, porém, de profunda desnutrição anímica. Emergimos do fulgor do ecrã não mais sábios, mas com um zumbido latente de ansiedade e a vaga sensação de termos sido espoliados. Tal sentimento não constitui uma falha pessoal, sintoma de uma vontade débil ou de indisciplina. É, antes, um traço inerente ao seu desígnio. E para que compreendamos o que sucede às nossas mentes, cumpre-nos primeiro atentar no que sucedeu à nossa comida.

Durante milénios, a crónica humana foi uma luta contra a escassez. A grande ameaça era a subnutrição. No espaço de uma única geração, forjámos um mundo de uma abundância espantosa. Ao fazê-lo, contudo, apenas trocámos um flagelo por outro. A moderna indústria alimentar, ao otimizar-se para o consumo em massa, fê-lo com sacrifício direto da nossa saúde. É um sistema de uma astúcia notável, desenhado para forjar alimentos irresistíveis ao paladar, manipulados com as proporções exatas de sal, açúcar e gordura, para ludibriar os nossos instintos de recompensa, iludir os sinais de satisfação do corpo e a compelir-nos a querer sempre mais.

A mesma grande reviravolta abateu-se agora sobre o nosso meio informacional. Vencemos a escassez de informação só para nos afundarmos numa torrente. Neste novo ecossistema, plataformas e criadores são cativos de uma luta desapiedada pelo bem mais escasso do século XXI: a atenção do homem. Todo o objetivo de nos tornar informados, sagazes ou sequer ligados uns aos outros foi submetido ao imperativo supremo: manter-nos a fazer scroll. O resultado é o conteúdo de digestão fácil: informação concebida para ser consumida sem dispêndio, para acender a chama da indignação, para acalentar os nossos preconceitos e para evocar reações viscerais que exijam uma resposta instantânea.

Este regime de conteúdo, orquestrado por algoritmos, engendra uma nova crise de saúde pública: a desnutrição cognitiva. Tal como um corpo nutrido de alimentos industriais pode estar, em simultâneo, sobrealimentado e subnutrido, também a mente que se empanturra de iscos para a indignação, teorias conspiratórias e redomas de conforto algorítmicas se torna intelectualmente enfezada e socialmente alienada. Fica repleta das calorias vãs do conteúdo que apenas valida as crenças existentes, mas privada das vitaminas e fibras essenciais — as perspetivas discordantes, os factos matizados e as realidades complexas — necessárias para alicerçar uma visão realista do mundo.

Um estudo de 2018 do MIT, publicado na prestigiada revista Science, veio expor a crua realidade deste fenómeno: no Twitter, as falsidades têm 70% mais probabilidade de serem reencaminhadas do que a verdade. As falsidades, concluíram os seus autores, disseminam-se “mais longe, mais rápido, mais fundo e de forma mais ampla”. Esta é a prova factual da hiperpalatabilidade. Ao que tudo indica, a mentira é mais apetecível que a verdade.

A ameaça deste novo ecossistema, contudo, é muito mais insidiosa que a da indústria alimentar. Uma empresa de alimentos concebe um “Dorito” para apelar a milhões; a internet concebe um “Dorito” único e personalizado para cada indivíduo. O algoritmo é um químico particular, que apreende os nossos gostos, medos e anseios psicológicos específicos. Recolhe dados sobre os nossos cliques, as nossas hesitações e as nossas partilhas, e com eles transforma continuamente as suas ofertas, para garantir que estas nos sejam sempre, e de modo irresistível, perfeitamente palatáveis.

Presenciar este mecanismo é observar um prodígio da engenharia. Consideremos o percurso de um pai preocupado que investiga novos currículos escolares. Uma simples pesquisa pode conduzi-lo a um excerto de noticiário de um canal generalista. O algoritmo da plataforma, ao notar um vislumbre de interesse, propõe-lhe de seguida um comentário de pendor mais ideológico. Ao detetar uma resposta emocional mais forte (talvez um maior tempo de visualização, um “gosto”), o sistema intensifica a abordagem, servindo-lhe um vídeo de um conhecido “mercador da fúria”, que enquadra a questão em termos apocalípticos. A partir daí, o deslize é curto e sem fricção para um universo paralelo de conspiração e paranoia, com cada passo perfeitamente calibrado para o estado emocional em evolução do utilizador.

Este sistema é tudo menos neutro. A alegação de que as plataformas são meros hospedeiros passivos de conteúdo, um espelho que reflete os anseios da humanidade, é uma perigosa ficção. Como argumenta o pensador Tristan Harris (frequentemente apelidado de “a consciência do Vale do Silício”), vivemos numa “economia extrativa da atenção”. A plataforma possui uma arquitetura ativa e tendenciosa. A sua diretriz primordial é a de maximizar o envolvimento para gerar lucro, e os seus sistemas de aprendizagem automática descobriram que o conteúdo mais potente, divisivo e simplista é o carburante mais eficaz para esse motor. A intenção da plataforma não é malévola em sentido humano; é uma propriedade emergente do seu ADN comercial, um sistema que privilegia deliberadamente a “comida de plástico” cognitiva por ser esta a colheita mais lucrativa.

Perante o flagelo de saúde pública do nosso sistema alimentar, o remédio primordial e cândido foi mais informação: os rótulos nutricionais. O seu malogro era inevitável, porquanto o problema central não residia num défice de dados, mas num sistema concebido para se sobrepor ao discernimento racional. Ninguém consegue, nem conseguirá, controlar todas as variáveis quando o próprio produto é engendrado para ser viciante

De igual modo, a solução proposta para a nossa crise informacional, um apelo a uma maior “literacia mediática” ou a que os indivíduos “verifiquem os factos”. constitui uma resposta de uma inadequação profunda. É o rótulo nutricional para um poço envenenado. Como ilustra a obra do psicólogo Daniel Kahneman, as nossas mentes operam com dois sistemas: um Sistema 1, rápido e intuitivo, e um Sistema 2, lento e analítico. O ambiente informacional moderno está projetado para ativar implacavelmente o nosso impulsivo Sistema 1, ao passo que a laboriosa tarefa cognitiva da verificação factual depende do facilmente exaurível Sistema 2. Exigir do indivíduo que vistorie incessantemente a torrente de informação é reclamar uma resistência cognitiva sobre-humana, ao mesmo tempo que se imputa à vítima a culpa pela peçonha que lhe é servida. O mesmo que culpar o envenenado pelo veneno.

O problema fulcral, por conseguinte, não reside na nossa capacidade de consumir informação, mas antes na degradação das nossas faculdades cognitivas. Uma mente sã, tal como um corpo são, possui uma certa flexibilidade metabólica: é capaz de tolerar a ambiguidade, de rever os seus juízos face a novas evidências e de discernir entre diferentes graus de certeza. O regime de pura confirmação e indignação condena estes músculos mentais à atrofia. A crise derradeira prende-se menos com o teor das nossas crenças do que com a erosão da nossa própria capacidade de nos dedicarmos ao pensamento complexo, indispensável a uma democracia funcional.

A busca pela pureza individual é uma via sem saída; o que se exige é um ato de repulsa cultural. É imperativo que deixemos de culpar o consumidor e passemos a desmascarar os arquitetos do sistema. O precedente mais eficaz é a campanha contra o tabaco, que só triunfou verdadeiramente quando mudou de estratégia. Descolou a narrativa cultural de uma de escolha individual e da responsabilidade pessoal em favor de uma outra, simples e demolidora: a indústria tabaqueira é um predador manipulador que lucra com a nossa doença.

É esta a narrativa que nos cumpre agora construir para a nossa era da informação. O alvo do nosso desdém devem ser os mercadores da fúria, os empreendedores da conspiração e as plataformas que lhes servem de megafone, todos aqueles que nos encaram não como cidadãos a serem informados, mas como um recurso a ser explorado. É imperativo que desenvolvamos um novo léxico social, aprendendo a reconhecer e a rotular o “engodo para a interação” e a “pornografia da indignação” com a mesma aversão visceral que hoje nos inspira um anúncio de tabaco dirigido a crianças.

Que este apelo à repulsa não se confunda, porém, com uma rejeição da emoção em si mesma. A paixão autêntica que busca persuadir é a força vital de qualquer sociedade sã. Um vídeo de uma injustiça que desperte uma genuína indignação moral pode ser de um profundo alimento anímico. A repulsa que devemos cultivar é contra a emoção fabricada como mercadoria, contra o uso cínico e deliberado dos nossos mecanismos neurológicos como ferramenta para o lucro.

Esta mudança de perspetiva liberta-nos do ónus impossível de sermos peritos na verificação factual. Pede-nos, em contrapartida, que nos tornemos algo de bem mais exequível: um apreciador criterioso. Exorta-nos a desenvolver um paladar. Tal como se pode aprender a distinguir o alimento genuíno de lixo processado, pode-se aprender a reconhecer o sabor da manipulação. Este possui um sabor específico: a simplicidade satisfatória, a confirmação gratificante das nossas crenças prévias, o calor urgente e aditivo da cólera virtuosa. Uma vez aprendido a reconhecer tal sabor, perde-se por ele o apetite.

O vazio não será colmatado por uma solução única e centralizada, mas pelo cultivo de um “ecossistema de alimentos integrais” para a informação. Tal exige um reinvestimento cultural e financeiro numa pluralidade de fontes mais sãs: um jornalismo local revitalizado, meios de comunicação públicos robustos, publicações especializadas que privilegiem a profundidade em detrimento dos cliques, e uma disposição da nossa parte, enquanto consumidores, para pagar por informação de alta qualidade, tal como pagaríamos mais por alimento nutritivo.

O objetivo último é o de nos tornarmos forrageadores de informação. De nos vermos a desbravar uma paisagem complexa, semeada de sustento e de veneno, e de sentirmos um discreto orgulho na nossa capacidade de discernir a diferença. Confundimos uma crise nutricional com uma crise informacional, e procurámos o remédio em mais dados quando o que nos é necessário é um maior discernimento. Ao encararmos o sistema pelo que ele é, um atentado à nossa capacidade de pensar, de nos conectarmos e de florescer, reivindicamos a autonomia que ele nos procura espoliar. Podemos, assim, afastar-nos do veneno personalizado e começar, juntos, a cultivar uma dieta digna de um espírito são.

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