Campanha do Livre está a profissionalizar-se e não desiste de uma nova geringonça

O arranque da campanha para as legislativas parece provar que a máquina política é daquelas que só fica oleada com o passar do tempo. Um ano depois, Rui Tavares e o Livre regressaram à rua e bastou cinco minutos numa das principais estações de comboios em Lisboa para se notarem as diferenças.
“Eu quero ver o pessoal em Portugal a votar Livre”, cantava um rapper brasileiro, mesmo ao lado da boca do metro do Cais do Sodré. É um de vários que reconheceu Rui Tavares e que fez questão de o cumprimentar. De março do ano passado para cá, as bandeiras pouco reconhecidas do Livre transformaram-se num apoio reforçado e convicto (mesmo que ainda pontual) ao Livre.
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“O PS já não é o que era. Uma nova esquerda faz todo sentido. Acho que as ideias que estão a trazer neste momento são essenciais. É o que o país precisa”, conta Marta de 21 anos, apanhada pelos jornalistas e pela caravana do Livre, mesmo antes de entrar no cacilheiro que a vai levar a Cacilhas.
Os olhares que acolhem os panfletos do Livre com agrado são o resultado de um jogo de soma duplo – são causas e efeitos da “profissionalização” do partido que se vai notando aqui e ali por estes dias de campanha.
A primeira prova está no cumprimento simpático e descontraído que o líder, Rui Tavares, faz ao antigo cabeça de lista as europeias, Francisco Paupério. No ano passado, os resultados das eleições primárias abertas que deram a vitória a Paupério geraram polémica, com a direção do Livre a levantar suspeitas sobre possível viciação de resultados.
Até ao dia das eleições (que deixaram Paupério fora do Parlamento Europeu por pouco), o ambiente nunca amainou e a presença de Rui Tavares na campanha foi esporádica, apesar de o líder ter sempre afastado qualquer mal-estar interno. Agora, as divergências adivinham-se superadas e o partido parece querer passar uma imagem de união – não fosse Paupério o número seis por Lisboa.
Mas os sinais de uma presença mais solidificada nas ruas não ficam por aqui. Uns metros à frente, o local escolhido para fazer declarações à imprensa parece profético – um grande cartaz do partido, com os três primeiros candidatos nas listas por Lisboa. É um sinal de esperança para eleger mais um deputado por Lisboa?
“Claro que gostaríamos de eleger a Patrícia Gonçalves [número três por Lisboa]”, admitiu. Mas perante a pergunta “hiper-complicada” dos jornalistas sobre metas para o dia 18 de maio, Rui Tavares diz preferir fazer prognósticos só no fim do jogo. “Um número ideal [de deputados] não vou dizer. Tem-nos corrido bem não dizer”, justificou, entre risos.
Partidos de esquerda, “digam ao que vêm”
O estilo descontraído de Rui Tavares não desapareceu – chegou de bicicleta ao Cais do Sodré e fez questão de receber nas mãos o livro de um apoiante –, mas o tom parece cada vez mais aguçado contra os adversários, de uma ponta à outra do espetro político.
“Não há um assumir claro da responsabilidade numa alternativa de governação [à esquerda]. Seria muito importante que os partidos progressistas e da ecologia dissessem ao que vêm, porque é isso que pode mobilizar o eleitorado”, assinala, no que se aproxima de um recado ao PS, mas também ao PCP e ao Bloco.
O cenário de uma geringonça 2.0 é improvável perante as mais recentes sondagens, mas Rui Tavares quer estar preparado se o cenário surpreender a 18 de maio e a esquerda conseguir jogar com maiorias no parlamento. Por isso, já decidiu até as condições para entrar num eventual governo chefiado por Pedro Nuno Santos – o reforço do apoio à Ucrânia, o reconhecimento da soberania da Palestina, a recusa de privatizações no Serviço Nacional de Saúde, a obrigatoriedade de levar os ministros a audições parlamentares prévias e, claro, os critérios éticos do chefe do governo.
“É um elevar da fasquia da ética na governação, com uma condição para o primeiro-ministro. Não pode ter uma empresa como a de Luís Montenegro – ou a fecha, a vende ou põe numa gestão profissional independente”, apontou.
O medo da alteração constitucional
A estratégia de travar uma maioria em força à direita ficou também evidente no Debate da Rádio. No meio de críticas a Luís Montenegro sobre o apagão da semana passada (nomeadamente, sobre a falta de protocolos com as operadoras móveis para o envio de alertas para os telemóveis por ondas rádio), o líder do Livre mostrou-se preocupado com a possibilidade de os partidos à direita ocuparem dois terços dos lugares no Parlamento, dando-lhes a cartada de alterar a Constituição.
O medo ficou por explicar no debate, mas à tarde Rui Tavares fez questão de esclarecer, com um exemplo que recordou do Chega para alterar o artigo 26.
“É interdito utilizar dados sobre as nossas famílias, obtidos de forma abusiva e contrária à dignidade humana. O Chega não punha um ponto final nesta frase. Punha uma vírgula, excecionando daqui tudo que tivesse a ver com segurança pública – e nem era ataque terrorista iminente, não era segurança do Estado. Era basicamente aquilo que uma chefia policial, um ministro da Administração Interna do Chega pudesse fazer”, apontou.
A nível de políticas, as críticas à AD andam de mãos dadas com o exercício de demonstrar a pertinência do Livre na última legislatura. Depois do passe ferroviário verde (uma ideia implementada pelo Governo, mas que o Livre diz ser da sua autoria), Rui Tavares vem agora sugerir que a AD pode já estar “a roubar a próxima ideia do Livre, que é o passo de mobilidade nacional, que não cobre só o modo ferroviário e rodoviário, mas várias modalidades de transporte, incluindo os barcos”.
Os ataques mais duros contra a direita têm, no entanto, como alvo a Iniciativa Liberal. O “pingue-pongue entre Ruis” promete continuar ao longo dos próximos dias – depois de Rui Rocha ter dito que não há razão para a esquerda falar em “papões” nas políticas da IL, o homónimo Tavares puxa da ciência política para rebater esse argumento.
“Querem privatizar empresas públicas para tapar um buraco de seis mil milhões de euros, números da própria Iniciativa Liberal, até ao fim da próxima legislatura. (…) Ora nós não vamos ter uma RTP para vender todos os anos. (…) Isto que a Iniciativa Liberal está a propor é completamente desviado da tradição do liberalismo europeu e é muito mais próximo de um ‘motosserrismo’, que é uma tendência dos pseudoliberais dos últimos anos”, criticou.