UE acusada de financiar dança, desporto e saunas em nome da transição justa

A União Europeia está a financiar festivais, saunas e campos desportivos com dinheiro destinado a ajudar trabalhadores do sector energético a abandonarem projectos ligados aos combustíveis fósseis, acusam eurodeputados conservadores. Receiam que milhares de milhões de euros estejam a ser, no mínimo, desperdiçados.
Vários políticos europeus e órgãos de fiscalização da corrupção fizeram soar o alarme relativamente ao Fundo de Transição Justa da União Europeia. Este mecanismo foi criado para apoiar os trabalhadores do sector energético e as suas comunidades a abandonarem as indústrias poluentes – como os ex-trabalhadores da refinaria de Matosinhos, por exemplo.
Em resposta a um pedido da Thomson Reuters Foundation, feito ao abrigo da liberdade de informação, a Comissão Europeia disse que não podia fornecer uma lista abrangente dos projectos do fundo, pois não possuía essas informações.
A Comissão Europeia afirmou não saber quais os projectos ou empresas que beneficiam do Fundo de Transição Justa de 26,7 mil milhões de euros, lançado em 2021 para ajudar os Estados-Membros da União Europeia a abandonar os combustíveis fósseis.
A eurodeputada com telhados de vidro
“Não sabemos como o dinheiro está a ser gasto pelos Estados-membros. Isso não está certo. Deveria ser público”, disse Monika Hohlmeier, eurodeputada alemã do Partido Popular Europeu. No Parlamento Europeu, actua como vice-presidente da Comissão de Orçamentos e membro da Comissão de Controlo Orçamental, e é frequentemente nomeada relatora em temas ligados à fiscalização do orçamento europeu.
Mas Monika Hohlmeier tem liderado uma campanha para limitar o financiamento da União Europeia a organizações não-governamentais, especialmente as que actuam na área do ambiente, em actividades de advocacia e pressão política. A eurodeputada argumenta que é inapropriado usar dinheiro público para influenciar decisões políticas.
Esta posição tem sido criticada, não só por não haver provas de que a Comissão Europeia está a financiar grupos de pressão contra o Parlamento Europeu – a suspeita acaba por ser essa – como porque Hohlmeier enferma de um conflito de interesses: recebe 75.000 euros por ano da empresa alemã BayWa, que actua no sector agrícola e energético, sendo que a BayWa já recebeu 6,5 milhões euros do programa europeu LIFE (o mesmo fundo que a eurodeputada quer vedar às ONG).
Segundo o Corporate Europe Observatory, trata-se de um “exemplo clássico de hipocrisia”.
Do hidrogénio às turfeiras
Até agora, o Fundo de Transição Justa atribuiu mais de 11 mil milhões de euros aos 27 Estados-membros da União Europeia, financiando, por exemplo, a produção de hidrogénio na Polónia (país rico em carvão), restaurando turfeiras na Finlândia, apoiando as energias renováveis na Grécia e a produção de aço verde na Roménia.
Sob um modelo de “gestão partilhada”, os países da UE podem gastar o dinheiro do Fundo de Transição Justa como quiserem, desde que “permitam que as regiões e as pessoas enfrentem os impactos sociais, económicos e ambientais da transição para uma economia neutra em termos climáticos”.
Não há qualquer obrigação por parte dos países de informar as autoridades da União Europeia sobre os seus projectos — seja antes de serem financiados ou após qualquer concretização, respondeu a Comissão Europeia à Reuters.
No entanto, os críticos afirmam que esta falta de transparência e responsabilização significa que o dinheiro da União Europeia pode ser mal utilizado, seja através de corrupção, fraude ou financiamento de projectos que se revelam ineficazes ou irrelevantes.
Lançado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para garantir que “ninguém e nenhum local sejam deixados para trás” na transição para a neutralidade carbónica, o fundo destina-se a apoiar os trabalhadores e as comunidades que dependem das minas de carvão, das fábricas de aço e dos campos de turfa.
A ambiciosa meta de redução de emissões da Europa para 2030 poderá eliminar quase meio milhão de postos de trabalho, com o sector do carvão a reduzir-se provavelmente para metade nos próximos cinco anos, de acordo com uma avaliação de Bruxelas.
Repetir erros do passado?
A eurodeputada Hohlmeier afirmou que a falta de transparência significa que o Fundo de Transição Justa poderá repetir os erros do fundo europeu de recuperação da pandemia de 2021, que foi marcado por fraudes e falhas.
Antes mesmo do lançamento do Fundo de Transição Justa, o Tribunal de Contas Europeu — que visa melhorar a gestão financeira comunitária — afirmou que o fundo tinha falhas significativas e não dava a devida atenção à execução.
O Tribunal de Contas constatou, por exemplo, que os Estados-membros com necessidades semelhantes poderiam, hipoteticamente, obter financiamento igual e, então, “um poderia comprometer-se a encerrar operações intensivas em carbono e ter sucesso, enquanto outro poderia apenas reduzi-las, até temporariamente”.
Vincent Bourgeais, porta-voz do Tribunal de Contas Europeu, afirmou que o fundo seria auditado no próximo ano. “Podem ter a certeza de que o analisaremos atentamente e que faremos o nosso dever para salvaguardar os interesses financeiros da União Europeia e garantir que o dinheiro dos contribuintes está a ser bem utilizado”, declarou.
Sauna e spa na Estónia
Alguns projectos do Fundo de Transição Justa já estão a ser alvo de escrutínio. Ida-Viru, um condado no nordeste da Estónia que abriga grandes depósitos de óleo de xisto, gastou parte dos 354 milhões de euros que lhe foram atribuídos pelo Fundo de Transição Justa para pagar um festival de sauna, um centro de arremesso de machados e uma maratona de dança, informou o Ministério das Finanças estónio à Thomson Reuters Foundation.
Outros projectos do Fundo de Transição Justa incluem um hotel spa natural, uma fábrica de produtos de madeira laminada, um centro de desportos aquáticos, uma biblioteca de música digital e um acampamento de Verão de hóquei no gelo para crianças.
“É preciso questionar se este dinheiro está a ser bem gasto, se realmente substituirá os empregos que estão a ser perdidos”, afirmou Brice Bohmer, director de clima e ambiente da Transparency International, uma organização global sem fins lucrativos de combate à corrupção.
Brice Bohmer instou a União Europeia a garantir “total transparência” sobre quem recebe o dinheiro e como ele é gasto, a fim de identificar quaisquer conflitos de interesse, evitar o uso indevido e maximizar o impacto.
Diversificar actividade económica
O Ministério das Finanças da Estónia defendeu os projectos, afirmando que o dinheiro diversificou a actividade económica, afastando-a dos combustíveis fósseis, que representam quase metade da produção económica de Ida-Viru.
Os projectos permitem que os residentes “reflictam sobre um futuro mais sustentável do ponto de vista ambiental” e reforcem o património cultural e a coesão social, afirmou um porta-voz do ministério.
Tais iniciativas “não são, claramente, um mau uso do dinheiro, mas um passo necessário para garantir uma transição justa, centrada nas pessoas e sustentável para a neutralidade climática”, acrescentou o porta-voz.
A Comissão não comentou especificamente os projectos da Estónia. Um porta-voz do órgão executivo europeu afirmou este tem apenas uma “visão geral” das despesas e que só posteriormente monitoriza a aplicação do dinheiro.
O financiamento pode ser cortado se os programas não atingirem 65% das suas metas, e os Estados-membros devem negociar os planos para moldar e orientar os projectos com a Comissão Europeia antes de obterem os fundos.
