
A campainha toca e a tradicional algazarra do recreio é substituída por um estranho silêncio. Os alunos “colam-se” aos telemóveis durante o intervalo, isolando-se no seu pequeno mundo virtual e negligenciando a socialização. Esta realidade alastra-se a cada vez mais escolas, com os encarregados de educação a procurarem uma mudança. A criação de uma petição pública que defende a limitação dos telemóveis no recreio foi a alternativa: foram até ao momento recolhidas mais de 2610 assinaturas, num problema identificado pelos especialistas.
“Verifica-se cada vez mais nos recreios que os alunos, em vez de estarem a jogar à bola, saltar à corda ou a conversar, estão agarrados ao telemóvel. Não estamos a falar apenas de adolescentes do secundário, já há meninos do primeiro ciclo com telemóvel na escola. E os pais permitem! Compreendo muito bem esta petição: os pais percebem que os filhos, em vez de estarem num momento lúdico, estão ‘agarrados à máquina’”, lamenta Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas.
Reconhecendo o potencial de aprendizagem no uso de tecnologia controlado pelos professores, Filinto Lima defende alguma regulamentação. Os autores da petição sugerem a existência de caixas, armários ou cacifos onde os telemóveis possam ser depositados no primeiro tempo lectivo. A recolha seria feita no momento em que os alunos abandonassem a escola, evitando assim o uso dos dispositivos no intervalo. O que diz a lei sobre isto?
Na prática, cada escola é livre de fazer as suas escolhas. A Lei n.º51/2012, relativa à aprovação do estatuto do aluno, proíbe apenas a utilização de aparelhos electrónicos “em locais onde decorram aulas ou outras actividades formativas”. Os telemóveis são apenas referidos nessa alínea, deixando ao critério o uso durante os intervalos. Momento em que começam a ser desenhados muitos dos casos de cyberbullying, alertam os especialistas.
“A utilização dos ecrãs pessoais está muito relacionada com a prática de cyberbullying. A maior parte é praticada com [base em] imagens e texto recolhidos em contexto de escola. Também isso [a limitação] é um comportamento preventivo e promotor do bom desenvolvimento”, explica Rosário Carmona e Costa, psicóloga e fundadora do Instituto Belong.
A partilha de imagens recolhidas nas escolas sem a expressa autorização da direcção é uma das acções proibidas no estatuto do aluno, mas a presença de telemóveis e outros dispositivos dificulta este controlo. Nas redes sociais, é comum encontrar vídeos gravados pelos alunos, seja nas salas de aula ou durante o recreio. Imagens de violência ou comportamentos inapropriados são livremente partilhados nas redes sociais, sem grande controlo possível e em clara violação do normativo legal.
“Em algumas faixas etárias, é irrealista achar que um jovem terá acesso a um equipamento altamente estimulante e o vá manter desligado e não o usar. É a mesma coisa que dizer que se está a fazer uma dieta com um chocolate no bolso para treinar o autocontrolo. Temos de olhar para os telemóveis como uma ferramenta e não como um direito adquirido”, reitera a psicóloga.
O PÚBLICO endereçou perguntas ao Ministério da Educação sobre este tema, mas não foi possível obter respostas.
Telemóveis proibidos…em 2008
Enquanto algumas escolas debatem a possibilidade de limitação dos telemóveis, há uma que é líder isolada nesta discussão, ao proibir estes dispositivos desde, pelo menos, 2008. Ainda Antes do boom do Facebook – e num momento em que o Hi5 era a principal rede social e os dados móveis uma raridade –, o colégio Moderno, instituição privada no Campo Grande, em Lisboa, proibiu a utilização destes dispositivos. Volvida década e meia, a decisão é cada vez mais elogiada.
“Achámos que, por uma questão de saúde mental, era melhor eles não estarem com os telemóveis”, relembra Isabel Soares, directora do colégio. Para esta limitação contribuiu a – bem documentada – ligação entre a exposição aos ecrãs e a diminuição da atenção, bem como o potencial de redução de socialização. O regulamento manda, os pais apoiam.
“Nunca tivemos qualquer espécie de desagrado por parte dos pais. Sabem que é a regra, assinam o regulamento interno quando inscrevem os seus filhos. Existiu apoio generalizado [ao implementar a medida]”, garante Isabel Soares, não escondendo alegria por ver os alunos a “falar e brincar saudavelmente” nos corredores.
Não há obrigatoriedade de entrega do telemóvel na chegada à escola, com os alunos a comprometerem-se a deixar os telemóveis desligados nas mochilas até ao fim das aulas. Mas como é que se faz esse controlo?
“Não somos polícias”, responde logo a directora, entre risos. Se forem apanhados a quebrar esta regra, o telemóvel é confiscado pelo contínuo e levantado na presença do encarregado de educação. Um factor dissuasivo o suficiente, na vasta maioria dos casos.
O que se faz lá fora?
A abordagem a este desafio varia consoante o país. Em 2018, as crianças francesas ficaram proibidas por lei de poder utilizar telemóvel na escola, com o objectivo de combater casos de bullying e diminuir as distracções. O projecto de lei foi aprovado por maioria, numa legislação que também atingiu os professores.
Medida idêntica à adoptada recentemente pelo estado de Nova Gales do Sul, na Austrália. “Sei que muitos pais estão ansiosos com a perversão dos telemóveis e da tecnologia nos ambientes de aprendizagem dos nossos filhos. É tempo de limpar as distracções desnecessárias e criar melhor ambientes para a aprendizagem”, resumiu Chris Minns, primeiro-ministro da Nova Gales do Sul.
Nos Estados Unidos, dados citados pela PBS mostram que 76% das escolas públicas proibiram a utilização de telemóveis nas escolas, mas também há registo de protestos dos encarregados de educação contra a medida.
Já em Itália, o enquadramento é idêntico ao português: os telemóveis estão proibidos no interior das salas, de modo a minimizar as distracções.
Para Filinto Lima, a discussão sobre a exposição dos mais novos aos ecrãs é importante, mas tem também de acontecer fora do contexto escolar. Uma das alternativas defendidas pelo responsável passa pela criação de actividades capazes de cativar os alunos durante o recreio e substituir a necessidade de usarem o telemóvel.
“Isto é um assunto não só da escola, acho que é uma preocupação da sociedade. Vemos os pequenos com o telemóvel na escola, é verdade, mas também os vemos no restaurante, no autocarro ou no carro com os pais. Penso que isso pode ter consequências negativas no seu crescimento”, lamenta.
