

Revolucionário, não admite que tem, hoje, menos fervor. Fundador do Bloco de Esquerda, antigo deputado pelos bloquistas, depois conselheiro de Estado, Francisco Louçã, 63 anos, professor de economia, nunca deixou a linha da frente do comentário político. Continua a influenciar as decisões no Bloco, elogia Catarina Martins, mas o ataque mais forte nesta entrevista Em Alta Voz vai para Santos Silva, o presidente da Assembleia da República. Louçã considera que está a cometer um “erro político” na forma como enfrenta o Chega, e que com isso quer “santificar-se na esquerda”.
É uma das personalidades que assina o manifesto a favor de uma TAP pública. O PS, na sua opinião, vai cometer o mesmo erro que o PSD ao privatizar a companhia?
A privatização em 2015 foi um processo estranhíssimo e arriscamos a ter agora uma réplica, que é uma precipitação. Há agora uma maioria absoluta, não há um Governo que estava em fim de ciclo, mas há um ministro que é mais ou menos um empecilho dentro do Governo e que parece só ter ficado para concluir esta privatização. Que aliás já teve o episódio rocambolesco de ter o chanceler da Alemanha em Portugal a dizer algumas graças sobre a facilidade que a Lufthansa terá para adquirir a companhia. Pode repetir-se esta precipitação de um mau negócio, em termos financeiros e politicamente grave do ponto de vista estratégico. A privatização em 2015, começamos a saber agora, é feita por dez milhões de euros e uma promessa de investimento, e naturalmente a assunção das responsabilidades da empresa, financiado por uma compra feita à Airbus de que a TAP se queixa de ter tido a imputação de um prejuízo de 444 milhões de euros. Foi uma tragédia. É claro que a companhia passou por dificuldades, como todas, porque teve os aviões parados durante o tempo da pandemia. Houve uma massiva injeção de capital e ela começa agora a recuperar. Portanto, podemos perguntar se Portugal tem de fazer, ao contrário de outros países, uma privatização. Na Alemanha, a Lufthansa tem dinheiros públicos, a SAS tem dinheiros públicos, a Air France tem dinheiros públicos, a KLM tem dinheiros públicos. Aparentemente, o Governo anunciou uma privatização parcial mas agora já fala de uma privatização total e podemos perguntar se isso tem sentido, do ponto de vista de uma estratégia económica para o país. Eu acho que não.
A sua resistência a esta privatização é uma resistência ideológica, porque não gosta de privatizações, ou é uma resistência por receio de que o negócio corra mal?
Até agora o negócio da TAP correu sempre mal. A TAP ia ser vendida à Swiss Air e a Swiss Air faliu; ia ser vendida à Avianca, a Avianca faliu ;foi vendida a David Neeleman, mas a Neeleman pirou-se e não investia para a recuperação da empresa, foi o Estado. Quando ouço liberais dizerem que o Estado pôs dinheiro a mais, bom, só o Estado é que podia ter posto senão a empresa tinha falido. E foram os liberais de todo o mundo que vieram de chapéu estendido aos governos para que financiassem as empresas de aviação. Agora, olho para esta e outras privatizações, aliás o manifesto que coassinei com outras pessoas refere precisamente essas outras privatizações e sem nenhum ponto de vista ideológico. Correia de Campos tem algum ponto de vista ideológico parecido com o meu sobre a questão das privatizações ou outros ex-governantes do PS? Temos opiniões totalmente diferentes. Mas uma coisa que sabemos e que está escrito no texto é que, uma a uma, as privatizações que foram feitas das grandes empresas portuguesas foram um bónus para alguns acionistas. Houve até uma que foi assinada com um membro do Comité Central do Partido Comunista Chinês, que foi a da EDP. Gosto muito de ver liberais assinarem com o Comité Central do Partido Comunista Chinês e a dizerem que isto é liberalismo. Agora, vejamos as contas. Em dez anos, os CTT pagaram 41% do investimento aos seus acionistas, a REN 57%, a ANA 36%, a Galp 50% e a EDP 60%. Perdemos quase 7 mil milhões de euros em dividendos destas empresas. E porquê? Porque são monopólios ou oligopólios. Portanto, isto não é uma empresa normal, não é uma mercearia, não é uma empresa produtora de pneus. São empresas que não têm concorrência, ou cuja concorrência é limitada, têm um poder absoluto sobre a economia portuguesa. Porque é que França não há de vender a sua energia e em Portugal devemos aceitar a estupidez de vender a nossa energia ao Estado chinês? Porque vêm dizer que é ideologia? Há algum liberal em França que se atreva a dizer para venderem ao Partido Comunista Chinês as empresas de eletricidade de França?
Sem conhecer ainda o caderno de encargos total, não admite que possa ser interessante para o Estado ficar com uma parte da companhia privatizada e um contrato de serviço público, por exemplo uma golden share, como houve em tempos na PT?
As golden shares vieram a ser proibidas pela União Europeia.
Era só uma força de expressão, referia-me a um acordo que permita ao Estado ter uma palavra.
Claro que há várias soluções possíveis. Entre os signatários deste manifesto há também opiniões diferentes, há quem ache que pode haver uma participação minoritária de um privado, resta saber qual e como. Tenho a maior das desconfianças em relação a isso. Haverá interesse da Lufthansa em ser minoritária sem ficar com o hub de Lisboa ou sem se apropriar das rotas para a América Latina ou para a América do Norte, que são as mais rentáveis da TAP? Claro que não, porque há uma lógica de negócio por si própria. E talvez por isso é que o Governo passou do discurso sobre a privatização parcial para agora dizer que é total. E devo acrescentar: até ao início do verão, que é já agora, daqui a cerca de um mês. Portanto, nada disso vai acontecer. Há uma enorme confusão, há uma debilidade política e é por isso que talvez seja o primeiro-ministro a conduzir todo este processo. Agora, o que precisamos é de uma garantia de um serviço que a TAP estabelece no contexto dos destinos que são importantes para a população portuguesa, no contexto das pontes com a América Latina, com África e isso é decisivo. E é uma questão de estratégia, porque termos um sistema de aviação baseado na Península Ibérica, em Madrid ou em Madrid e Barcelona, não é a mesma coisa para Portugal do que ter o que está em Madrid e o que está em Lisboa e em outros aeroportos de referência. Precisamos disso e não é só por causa das ilhas, embora contem. É porque faz parte da estratégia de um país ter a sua energia, ter as suas decisões sobre os seus sistemas de transportes, sobre como se vai modernizar uma transição energética, que vai custar à TAP já agora. Parece que isso não faz parte do caderno de encargos da discussão, mas vale a pena lembrar que os aeroportos vão diminuir, os aviões vão diminuir, vão ter de diminuir, vamos ter de substituí-los pela ferrovia e outras formas de transporte mais inteligente. Enfim, por tudo isso é estratégia. Acho que é bom que a democracia faça parte da decisão sobre a estratégia nacional.
Que comentário é que lhe merece este recente otimismo económico do primeiro-ministro? É algo meramente instrumental da parte dele para tapar outros assuntos incómodos ou há substância na possibilidade de um discurso otimista face à economia?
Acho que há uma combinação dos dois elementos. Evidentemente, o Governo envolveu-se numa série de tropeções, todos autoinfligidos e auto multiplicados, basta ver o ministro Galamba a apontar a cada um dos membros do Governo, chegou a cinco, dois secretários de estado e mais três ministros, além dele próprio, sucessivamente envolvidos num escândalo que passa por uma violação das liberdades, por causa da utilização do SIS. É verdade também que o primeiro-ministro, estou certo, sem fazer interpretações subjetivas ou “psicologizantes”, acreditará que há um otimismo. Não sei se num novo ciclo económico, porque estamos a falar de um novo ciclo económico depois de 20 anos de estagnação em Portugal, e os novos ciclos económicos são poucos.
Acredita bem?
Repare, o primeiro-ministro, desde há dois anos desta parte, tem um mote que se chama PRR. Ele pensa que o PRR lhe vai dar um orçamento suplementar depois de ter aceitado, como outros Governos, uma regra orçamental de restrição sucessiva no investimento público. O investimento público eram mais de 10 mil milhões de euros, e desapareceu. Desapareceu. E como desapareceu há um efeito: não há aparelhos de TAC nos hospitais, os serviços degradam-se, não há ferrovia, isto vai-se pagando um preço e o que vem a seguir paga um preço maior porque o tempo é fatal, deste ponto de vista. Ao vir o PRR, o primeiro-ministro acreditou que tinha uma espécie de varinha mágica e foi às eleições autárquicas dizer que quem votar no PS recebe PRR. Foi às eleições, enfim, no contexto da crise política orçamental, nas últimas eleições, dizendo que o PRR vai maravilhar o país e, porventura, acreditará agora que, ao começar, ele chegará às pessoas. O problema é que este verão vão ser fechados vários serviços em hospitais porque há dinheiro para as suas reparações mas não vai haver mais médicos. Está a decorrer esta semana um concurso com 900 vagas para medicina geral e familiar e só 40% das vagas abertas foram preenchidas, não houve candidaturas e o número de pessoas que, nesse contexto, quer vir para a zona de Lisboa e de Vale do Tejo – onde há mais de um milhão de pessoas sem médico de família -, conta-se por poucos dedos.
Portanto, o PRR não resolve recursos humanos?
O PRR não resolve estrutura, resolve edifícios, corrige equipamentos que estão em atraso, não chega para compensar o que foi cortado no investimento público ao longo do tempo e, portanto, não relança uma economia onde ela tem que valer, que é na capacidade humana, na capacidade de uma jovem enfermeira, uma jovem arquiteta, um jovem engenheiro, a quem são oferecidos 800 euros, ou 900 euros, ou 1000 euros, quando já têm alguma experiência profissional, não vá ceder à tentação de emigrar, que é o que têm feito ao longo do tempo. Portanto, esta crença na varinha mágica poderá estar enraizada no Governo, mas a ideia de que havendo um edifício novo, as pessoas vão sentir uma vontade económica diferente e vão adorar o Governo, é um erro de perspetiva. Procurar resolver o problema da habitação, para dar um exemplo, distribuindo subsídios às pessoas aliviá-las, mas está a dizer ao mercado imobiliário que os preços podem ser muito mais altos, porque uma pessoa se não pode pagar mil euros e se o Governo lhe der 300, bom, a pessoa pode pagar 700 e assim vamos manter os mil euros como renda de referência. Inaugurou-se aquele edifício para estudantes com quartos a 700 euros, que desapareceram logo, depois outros a 900 euros e vários, que sobravam ainda, suponho que já estão arrendados, a 1096 euros. Este é o jogo em que há um bairro em Lisboa em que há 75% das casas são alojamento local, ou seja, todos os idosos foram corridos. Este empurrão dos preços, neste caso, vai corroer qualquer possibilidade de apoio económico que as pessoas pudessem sentir.
Seja como for, indicadores como o emprego, as exportações e a descida da inflação, estão ou não, no seu entender, a correr bem? Ou é só a economia a compensar perdas da Covid?
São duas coisas muito diferentes. Há uma compensação da covid e isso já seria bom em si próprio, porque recuperámos.
Mas aparentemente, por exemplo, o crescimento está a ser acima dos valores médios europeus. Não é só, aparentemente, é segundo os documentos e conforme dizia ontem a OCDE, somos o país da Europa que mais cresceu.
Também fomos dos que mais baixámos. Deixo um exemplo que usei uma vez num debate com Pedro Passos Coelho: se mergulhou oito metros e se a seguir subiu três, é magnífico, boa notícia, mas ainda está afogado, não é verdade? Portanto, as dificuldades mantêm-se. Agora, são coisas um pouco diferentes. As exportações sobem, sim, mas o que puxa as exportações é o turismo, que é uma forma um pouco falsa e artificiosa de chamar exportação. Tecnicamente é uma exportação, são pessoas que vêm para cá e que aqui compram umas sandes ou pagam um alojamento, chama-se exportação. Mas um modelo económico cuja exportação é baseada no turismo é desastroso para Portugal. Portugal está a ser desestruturado por um modelo económico baseado no turismo, por uma razão muito simples: é que faz disparar de tal modo os preços da habitação, que conjugado com a subida dos juros, já agora, torna tão impossível viver nas cidades que vai criar um apartheid à nossa volta, vai haver subúrbios em que os mais novos vão passar a viver e para onde os mais velhos são expulsos. Isto tem enormes consequências sociais e as nossas cidades estão a mudar, estão a ser rasgadas por este princípio da especulação imobiliária que o governo favorece – vistos gold, nómadas digitais, o que são capazes de inventar. O Governo entrou em rutura com a Finlândia e com a Suécia para conseguir manter um privilégio fiscal aos seus cidadãos que vivem em Portugal a pagar muito menos do que qualquer cidadão português com o mesmo tipo de rendimentos. Portanto, o Governo arriscou-se a conflitos internacionais como esse, que nos envergonham, por causa de privilégios que têm um valor muito elevado, 800 milhões de euros, a cada ano. Quando ouço dizer que não há dinheiro para professores ou para contratar trabalhadores em exclusividade no SNS, lembro-me sempre disto. É preciso ver o Governo considerar que o país é tão estúpido, tão incapaz de perceber que está a ser enganado, quando há 800 milhões de euros perdidos em benefícios fiscais para gente que não os merece, sem qualquer utilização, a não ser aumentar o preço das nossas casas. E depois, não há soluções para estas questões.
É dos que considera que está na altura de haver eleições antecipadas ou, pelo contrário, o Governo tem a obrigação de continuar a governar?
Acho que não haverá eleições antecipadas. Acho que isso é um jogo que faz um pouco parte da precipitação política.
Mas o que defende pessoalmente?
As eleições foram há um ano e meio. Deram uma maioria absoluta ao PS, num contexto muito específico, mas foi essa a decisão. O PS já terá desbaratado um terço dos seus eleitores – a fazer fé nas sondagens que a TSF e o DN publicam. De qualquer modo, o que conta é aquele resultado político [a maioria absoluta obtida nas últimas eleições legislativas]. E nesse contexto, haver eleições agora, por causa de um Galamba, parece uma coisa bastante extravagante. Mas sim, era necessário uma viragem política para tratar destes problemas com dedicação e sem tratar as pessoas por estúpidas, isso acho que sim.
Mas isso já não é uma questão de programa de Governo, é uma questão de conduta do dia-a-dia.
É uma questão da atuação. Que o governo desista do SNS é tão evidente, é tão evidente que já não lhe interessa o SNS, que já não acha ser capaz de poder organizar alguns destes serviços. E isso faz parte da vida democrática e, aliás, tem consequências, porque cria ressentimentos, cria a perceção de que a democracia é desinteressada em relação às pessoas. Que em tudo isto, esta forma de atuar, a ligeireza com que se tratou todo o episódio do SIS é uma das expressões disso e talvez mesmo uma das mais graves, por isso mesmo é que o Governo foge tanto a dar explicações sobre isso. Nisso é que a viragem tinha de ocorrer. Ou seja, esperaria que um Governo pudesse ter, não digo uma resposta clara, mas que deixasse de atropelar o país como forma de exercício de maioria absoluta.
E essa viragem que defende poderia ter, por exemplo, como base uma geringonça 2.0, ou seja, a influência do Bloco de Esquerda e do PCP, apesar da maioria absoluta?
Não, não, isso não existe. O PS tem maioria absoluta e não fala com rigorosamente ninguém, fala com algumas dificuldades consigo próprio. O PS está a ser dilacerado pela sua maioria absoluta mas tem uma barreira completa em relação à esquerda. Quando houver eleições, haverá um novo Governo e haverá debates sobre o que será a governação, sobre o que serão os programas, sobre o que serão as alternativas, mas isso não é agora.
Sim, mas o que perguntamos é se a forma como este Governo, como esta maioria absoluta do PS tem conduzido a governação, torna premente ou não, no seu entender, que a próxima governação, a haver uma maioria de esquerda, seja de novo através de uma espécie de geringonça 2.0 ou de um entendimento à esquerda?
Acho que neste momento é impossível fazer, nem tem grande sentido, fazer especulações sobre quem irá liderar as listas do PS, isso o PS escolherá a seu tempo. Agora, o que posso constatar é o desgaste de uma maioria absoluta, num ano, é o mais rápido desgaste. Já tivemos maiorias absolutas com Sócrates, com Cavaco Silva e com a coligação PSD-CDS, à sua maneira, já tivemos de tudo aquilo que poderíamos imaginar, mas nunca se viu uma coisa deste tipo.
Mas tem ou não a ideia de que quando o PS governava sem maioria absoluta e, portanto, apoiado numa solução de esquerda, onde entrava ao Bloco, o PCP e o PEV, que se calhar governava melhor porque era mais fiscalizado?
Na geringonça nunca houve um secretário de Estado que entrasse num dia e saísse no dia seguinte, isso não existia.
Mas essa eficácia da geringonça, no seu entender, era porque tinha um programa político meramente negativo que era revogar tudo da troika ou a parte positiva?
Não, não, isso é uma acusação falsa. Acho que era por duas razões: primeiro, porque o PS era obrigado a prestar contas; e, em segundo lugar, porque havia um programa de medidas concretas. Claro que dar salário às pessoas não é negativo, é recuperar o salário que lhes roubaram. Agora, tinha muito mais medidas além disso e elas foram sendo prosseguidas com uma contratualização difícil, negociada, com muitas dificuldades. Deve haver imensos segredos que algumas memórias contarão daqui a 30 anos sobre as dificuldades dessas negociações, mas resultaram. E durante quatro anos isso cumpriu-se, tendo acabado em 2019, quando o PS disse que isso não podia continuar.
Quando acaba em 2019, olhando hoje, houve aí alguma soberba do Bloco? Ou seja, lembro-me que nessa altura já se falava de que Mariana Mortágua devia ser ministra das Finanças do governo que viesse a seguir, que a geringonça já não precisava do PCP, já seria um acordo entre Bloco e o PS, que o Bloco e o PS estavam a fazer caminho para fazer um governo de coligação os dois juntos. Terá havido, na sua opinião, alguma soberba do Bloco nessa altura?
Nenhuma dessas referências que fez vem de qualquer pessoa do Bloco. Pode vir de comentadores que o tivessem dito. O Bloco sempre se bateu, e acho que bem, mesmo que eu não estivesse lá, mas sempre se bateu para que as relações da geringonça fossem a três, porque dava muito mais poder ao PCP e ao Bloco juntos na negociação com o PS. O PCP é que não o quis e acho que erradamente. O PCP até teve aquela disposição sempre de dizer que preferiam um acordo de cavalheiros. Acho uma das coisas mais espantosas na política portuguesa, que deve ser clara no contrato perante os eleitores, que não valha a pena escrever os compromissos de Governo e que mais vale uma conversa entre amigos e entre cavalheiros. E esse problema voltou a repetir-se em 2019. Em 2019, nas eleições, o PS não conseguiu maioria absoluta, é verdade que faria maioria só com o Bloco de Esquerda, e o Bloco de Esquerda propôs um novo acordo e que sempre incluísse o PCP.
Mas o Bloco nessa altura estava preparado para ir para o Governo?
Não, o Bloco não propôs entrar no Governo.
Mas estava preparado?
Acho que poderia estar preparado se assim o entendessem.
E queria?
Não, não queria porque não acreditava que o nível de acordo político fosse suficiente para uma gestão comum, mas respondia perante uma responsabilidade.
Mas, portanto, qualquer nova geringonça terá de ser a três, ou seja, não pode haver aquela coisa de reuniões bilaterais PS-PC ou PS-BE?
Isso sempre foi um disparate, foi imposto por sectarismo, e esse sectarismo faz mal às soluções que são importantes.
Sectarismo do PCP, no seu entender?
Do PCP, porque o PCP não o quis e o PS aproveitou-se disso, pois claro, se negociavam em separado com o Bloco e com o PCP era muito mais fácil conduzir alguns jogos orçamentais. Mas um contrato perante o país, naquele momento, foi feito igual entre vários partidos. Havia uma parte toda igual, e sabe-se, aliás, os detalhes, porque eles vieram a ser públicos. O texto que estava escrito com o Bloco era muito mais completo, muito mais exigente. E o Bloco aceitou, e também acho que bem, reduzir esse texto para que ele ficasse igual àquele que o PCP tinha, para que não fosse aproveitável pelo Governo como uma forma de criar alguma assimetria e algum conflito. Sempre quis essa aproximação, e acho que é assim que deve ser. Inteligência política é vontade unitária. Agora, o que passará daqui a alguns anos, isso ver-se-á. As circunstâncias são todas novas. A única coisa que sei é que Portugal tem de sair deste ciclo de empobrecimento, de diferenciação, de desigualdade e de políticas incompetentes e desastrosas, como as que na habitação ou na saúde nos têm degradado a vida pública. E só assim é que responderemos, aliás, ao populismo e à direita.
Esses entendimentos à esquerda serão possíveis com o nível de antagonismo que foi criado entre o primeiro-ministro, António Costa, e o Bloco de Esquerda? Há bocadinho falava de uma nova liderança do PS, que não sabe o que é que acontecerá, se virá uma nova ou não, quando, etc. Isso é um fator-chave, a liderança do PS, para um novo entendimento à esquerda?
As lideranças vivem nas suas circunstâncias, perante os seus compromissos e as responsabilidades perante os eleitores. E nenhum partido pode pôr como condição quem lidera ou deixa de liderar esse Governo. Não há ninguém que escolha, senão os próprios partidos. O PS está a percorrer um ciclo político, esse ciclo político terminará, os partidos fazem transições, a convenção do Bloco de Esquerda elegerá uma nova liderança, um dia o PS irá eleger uma nova liderança.
É um delírio total, ou não, no seu entender, pensar que um dia o PCP e o Bloco de Esquerda poderão ter qualquer entendimento pré-eleitoral?
A relação entre o PCP e o Bloco de Esquerda é muito convergente em medidas e políticas concretas nacionais. E muito divergente, agora cada vez mais, por causa da atitude em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia, e em relação a outras questões. A razão pela qual os partidos vão a eleições é porque apresentam os seus programas. O que eles têm de dizer é o que é que querem fazer com os seus resultados, e que afirmem que querem convergências políticas para objetivos que as pessoas possam ver, saber o que são. Não são acordos de cavalheiros, são verdades escritas, compromissos concretos, medidas com os seus prazos, com a forma como se podem fazer. Isso é muito importante e, oxalá, possa vir a acontecer no futuro.
O atual ambiente político, chamemos-lhe assim, grosso modo, favorece o crescimento do Chega?
Toda a degradação da democracia favorece o crescimento do Chega. E, na verdade, o PS, não sei se hoje prosseguirá essa posição, mas viu uma vantagem no Chega, porque blindaria numa bolha fechada uma parte dos eleitores de direita e, portanto, impediria o PSD de recuperar. A direita está hoje presa numa contradição e o PS aproveitou-se disso. E, portanto, usou o Chega como um contraponto.
E Santos Silva está a dar gás a isso?
Absolutamente.
A partir da sua função?
Mais do que isso. Ou seja, acho que Santos Silva pensou que se santificava perante a esquerda, na medida em que enfrentasse o Chega de uma forma exuberante no Parlamento.
Por ambições pessoais?
Pela candidatura presidencial.
Mas é grave, não é? Uma pessoa pôr ambição pessoal ao serviço de uma estratégia que, objetivamente, favorece o crescimento de uma organização de extrema-direita.
Não quero fazer juízos morais porque acho que isso deve estar fora da reflexão política. Acho que é um erro político, acho que é um erro político que se paga sabendo, no entanto, para não simplificar as coisas, que existe uma base social popular para um descontentamento polarizável pela extrema-direita. E, por isso, a única resposta essencial que a esquerda pode ter para as pessoas descontentes e zangadas é procurar que elas possam ter uma vida digna. Em habitação, nos juros que pagam, nos salários que recebem, nos contratos, nos direitos e deveres que têm perante a sociedade. Ou seja, uma democracia rica de intensidade, de capacidade de comunicação, de capacidade de diálogo é o que pode evitar a contaminação pelo esterco das redes sociais, pela vergonha dos discursos de ódio que em todos os outros países, e em alguns com grande eficácia, chegaram a levar a extrema-direita ao poder.
O Bloco é um partido muito inconstante, vai dos seis aos 19 deputados, depois desce para cinco. Como é que isso se resolve? Ou está condenado a esta inconstância eleitoral?
Lembro-me do PS pedir 43% e depois 21%, portanto, todos os partidos variam ao longo do tempo.O Bloco de Esquerda subiu consistentemente com a Catarina Martins, já tinha tido outros resultados bons, mas ela deu-lhe uma expressão extraordinária, viveu um momento de grande crispação política no debate do último Orçamento e, em consequência do medo que foi instalado, ou da decisão dos eleitores que escolheram dar uma maioria absoluta ao PS, sofreu uma derrota. Essa variação provou uma coisa ao Bloco: que é preciso manter a coerência dos seus compromissos, é preciso saber arriscar-se a perder.
Manteve essa coerência de compromissos?
E por isso perdeu.
Mas como é que isso se explica?
Porque os eleitores decidiram dar uma maioria absoluta ao PS, achavam que podia haver um governo do PSD e do Chega e que era necessário essa forma de estabilidade. Uma decisão legitima.
Não terá sido porque o Bloco, de alguma forma, ficou sem causas depois da geringonça?
Pelo contrário. Aquilo que o levou à rutura no Orçamento foi saber se o Serviço Nacional de Saúde teria as medidas essenciais para poder sobreviver, coisa que o Governo rejeitava, rejeita e continua a rejeitar, ou se o Bloco aceitava um orçamento que sacrificasse o SNS. Acho que fez bem correr o risco, pagando um preço, de mostrar às pessoas que têm alguém em quem podem confiar, nos momentos difíceis e nos momentos mais fáceis, para proteger um bem público essencial. É preciso que haja uma esquerda que dê essa garantia.
Mas pelos visto isso não foi premiado.
Não, não, foi punido até.
Ou seja, do que é que serve a coerência se depois se perde poder? Se o Bloco quer mudar a vida das pessoas, como é que muda sem poder?
Porque não muda de um dia para o outro, porque a coerência ganha-se adiante. Passei por uma fase em que tivemos 5% e depois tivemos 10%. Em 2011, o Bloco perdeu da mesma forma. Era contra a troika e a troika era a Santa Trindade que tinha baixado sobre a azinheira. E, portanto, o Bloco perdeu e recuperou a seguir e recuperará. Aliás, as vossas sondagens o que dizem é que o Bloco hoje elegeria o dobro dos deputados. E, portanto, recupera, está a recuperar. Se vai recuperar mais, veremos se o merece, se o consegue fazer.
Mas está conformado com a natureza inconstante dos resultados? É porque a inconstância é grande, passa do dobro para metade.
Dê-me por favor o exemplo de um partido que não seja assim. O CDS desapareceu e antes tinha 12%. Entrei no Parlamento com o PCP com 16 deputados, mas já teve 43. Qual é o partido que não tem variações ao longo do tempo? O PSD não tem variações ao longo do tempo? Já teve maioria absoluta, já teve 27%. Todos os partidos têm variações.
Mas ter variações em partidos que têm entre 90 deputados e 70 deputados, ou partidos que têm 12 e passam para seis ou para cinco, é diferente.
E estou a falar de um partido que tinha 15 e tem zero agora, que é o CDS. Ou de um partido que teve 40 e tal e que agora tem seis, que é o PCP. Ou de um PSD que já teve 130 ou 135 e agora não chega a 100. Portanto, a diferença pode ser de metade ou de outras variações. Acho que, porventura, o tema nem será o mais importante para a nossa conversa. Os partidos evoluem ao longo do tempo, são vistos de forma diferente e conseguem ter relações com os eleitores que são mais mobilizadas ou menos mobilizadas. Mas de uma coisa têm de dar uma garantia: é que valem por aquilo que dizem, que são palavras que contam para a vida das pessoas. E é por isso que o debate vai ser sempre sobre a vida concreta, sobre o salário, sobre a pensão, sobre o emprego, sobre a qualidade de vida, sobre os juros. E é nisso que se vai fazer a diferença entre as esquerdas e as direitas.
Catarina Martins está a deixar agora o cargo de líder do partido, mas aparentemente vai ficar na direção, há notícias nesse sentido. Isso, no seu entender, faz sentido ou era preferível que as pessoas, quando cessam essas funções, de facto saíssem?
Quando saí da liderança do Bloco, fiquei durante dois anos na Mesa Nacional e depois deixei. E, enfim, deveria ter deixado, mas a minha circunstância é muito diferente da Catarina. Eu tinha outra idade, que ela não tem e a Catarina tem um futuro de atividade política e de representação, disputará eleições, disputará intervenção, terá o seu próprio espaço. Deve tê-lo, tem essa capacidade, é amada por uma parte muito importante do povo da esquerda, é uma grande representante do que o Bloco de Esquerda pode ser no futuro, e, portanto, deve dar o seu contributo. Certamente que não será nas funções executivas, porque aí é uma equipa diferente.
Mas o que vem a seguir precisa de um tutor? Ou seja, Catarina Martins precisou de Francisco Louçã, agora Mariana Mortágua precisa de Catarina Martins, é preciso um tutor?
Não, a Catarina não precisou de mim, como é bem sabido. Estive dois anos, mas a Mesa Nacional é um órgão que reúne de vez em quando para ter uma definição de políticas gerais. Porventura, poderia não ter estado, mas o que é certo é que a Catarina afirmou-se porque é a Catarina e ninguém hoje tem qualquer dúvida sobre isso.
Pode ser candidata presidencial?
Não faço ideia, as eleições presidenciais vêm daqui a algum tempo. Hoje é muito precipitado pôr fichas sobre isso.
E a disputa interna no Bloco? Vai cair para Mariana Mortágua, provavelmente, mas há muitas acusações de que o Bloco não é um partido democrático, transparente e livre. Não havia tantas assim no seu tempo. Estas eleições podem prejudicar o Bloco para fora?
Está muito enganado. Tudo o que é dito agora era dito no meu tempo. Agora, acho curioso, e até um pouco insultuoso para os militantes do Bloco, que se fale de democracia. Deem-me um outro partido, em que qualquer militante pode publicar o que quer, escrever o que quer, que um pequeno grupo de militantes pode apresentar uma lista para a direção, em que o partido paga a esse grupo de militantes para enviar representantes a assembleias distritais em todo o país e nas ilhas para apresentarem as suas posições, em igualdade de circunstâncias, como a maioria que pode representar mais eleitores. A democracia é absolutamente garantida por regras totalmente transparentes no Bloco, como não existem em nenhum outro partido.